Um negócio de família numa casa de família

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O carteiro já não bate à porta da Casa Nobre do Correio-Mor, mas quem vier ainda é bem-?-vindo. O solar abriu-se ao turismo e Andreia Marques Pereira (texto) e Nelson Garrido (fotos) sentiram-se em casa, em ambiente acolhedor, feito de lareiras onde o Inverno se derrete, e opulento quanto baste para que não se esquecessem que estavam em terras fidalgas

É uma casa nobre e tal é por de mais evidente - é o aspecto geral de solar minhoto, é o brasão em pedra na fachada, e, como se dúvidas pudessem haver, é o nome marcado a ferro na entrada: Casa Nobre do Correio-Mor. É uma casa com história, contada desde a fachada com as argolas de ferro nas paredes viradas para a rua, onde já não há cavalos para prender; passa pelo pátio interior, um hall enorme onde o chão ainda se desenha com "gogo" (pedras) do rio, mas as diligências já não entram e deram lugar a retratos antigos, tapeçarias, armas cruzadas nas paredes; e continua casa fora com os objectos que recordam gerações que ali viveram, como um carrinho de bebé onde passeou um avô dos proprietários actuais. E com tudo isto é também, inevitavelmente, uma casa de família onde ainda se respira um ar de família a que não será alheio o facto de o solar ainda pertencer aos donos originais; e ainda que a família não seja a nossa, há algo ali que desperta a nossa memória - experimente-se andar nos quartos e sentir o soalho a ranger, experimentem-se as camas de madeira antiga que também soam sob os lençóis e cobertores à boa maneira antiga, experimentem-se as portas duplas de madeira que às vezes parecem não encaixar, mas que fecham sempre.

Estamos em Ponte da Barca, terra de pergaminhos onde o Minho se encontra à beira Lima, em ruas esguias por entre casario antigo, algum arruinado, algum humilde, algum fidalgo. Não faltam casas brasonadas, brancas com cantaria em granito, e a Casa do Correio-Mor é uma delas, bem no centro da vila, a dar para uma rua que já foi caminho romano e seguia pela ponte do rio Vade. Dizem-nos que um dos traços distintivos deste solar seiscentista são as sacadas filipinas, nove, em ferro batido que se erguem a Norte e a poente. A casa passou a ser "do" Correio-Mor no início do século XIX, quando o então proprietário foi nomeador correio-mor da região: aí começou o vaivém de carruagens e cavalos que desgastaram as lajes da entrada e do pátio interior, com pequenas ondas a mostrar a erosão do tempo.

E muito pode ter mudado com a passagem dos anos, mas algo se manteve, ainda são os descendentes dos donos originais que "habitam" a casa, agora transformada em Turismo de Habitação e parte de uma sociedade familiar para preservar a herança. É a casa ancestral da família Lacerda e Megre (onde todos ainda se reúnem em ocasiões especiais) e é um negócio de família (a Laceme Sociedade de Investimentos Agro-Turísticos).

Já percebemos que as diligências não entram na Casa do Correio-Mor, mas entram os turistas, como se entra na intimidade na casa de alguém. Foram cinco anos de restauros, ao invés do ano e meio previsto, foram cinco anos de surpresas em que se regressou um pouco ao "miolo" da casa, nada se perdendo mas tudo se reconvertendo de formas insuspeitas. Não se tema a descaracterização de que tantas vezes padecem projectos deste género (aqui a tradição ainda é o que era e a modernidade fica-lhe bem): na Casa do Correio-Mor, tudo conta uma história, nada é formatado, são as paredes e os recantos inesperados, o mobiliário e as peças de decoração. Não será necessário dizer que nenhum quarto é igual ao outro e todos têm pormenores que os tornam verdadeiramente especiais: atente-se nas mesinhas, nas cómodas, toucadores, cadeiras, sofás (alguns verdadeiramente "luxuriosos").

São três quartos duplos e sete twins, casas de banho privativas e aquecimento central (que é geral, aliás) em todos. Todos diferentes, porém todos amplos. O nosso é o "da bica" - lá está num canto da parede a antiga bica, num nicho de pedra sobre uma pequena mesinha de madeira. Este é um quarto twin, duas camas austeras, estreitas, cabeceira alta e maciça. As mesas-de-cabeceira (com tampos de mármore), a cómoda com pequeno toucador e o guarda-fatos alinham pela mesma bitola. Há sofás cor bordeaux gasta e cadeiras com almofadas iguais, os tapetes são Arraiolos - e pequenas mesinhas, uma das quais nos aguardava com água, fruta (nêsperas, morangos e bananas) e uma queijada de laranja (especialidade da terra). Uma porta-janela de um lado, uma janela de guilhotina do outro, com os banquinhos de pedra para espreitar e reposteiros a fechar. A casa de banho tem chão, lambril e tecto de madeira. Não tem pedra, outras têm-na, no jogo que se repete pela casa, com a madeira e o branco.

No quarto do dossel este é incontornável, castanho dourado a condizer com reposteiros; no quarto salgadeira, o granito abunda; no quarto da passagem há móvel embutido em granito a exibir leques; repete-se no quarto dos biombos, que tem biombos e é imenso, com duas portas-janelas na fachada nobre da casa. A decoração da casa foi da responsabilidade de uma arquitecta de interiores e não desilude quem busca antiguidade e tradição (acreditaríamos que tudo pertenceria ao espólio da casa se não soubéssemos o contrário), sem abrir mão do conforto moderno.

Mas entremos de novo na casa, para o pátio que é um hall imenso, o equivalente a uma "sala de armas" num castelo - a uma escala reduzida. O mobiliário de madeira é pesado, desde a mesa rectangular do centro aos baús de vários tamanhos e aos bancos de madeira, e está longe de encher o espaço de tectos de madeira e antigos retratos nas paredes, chão de pedra e largos remates de granito nas portas e janelas - ao fundo parte uma escadaria, paralela, em granito, paredes com tapeçarias e armas de outros tempos. É o que esperamos de um solar rural recuperado, uma aura de grandeza rústica, confortável, acolhedora, que se mantém por quase toda a casa de três andares (o último é reservado) - a excepção é o "pavilhão novo", um salão amplo que também é sala de jogos (de mesa, snooker, setas) ao nível do primeiro andar, vista para os jardim e piscina, sofás imensos, salamandra e televisão e que é o espaço mais "moderno" da casa (não estamos a contar com o ginásio e o mini-health club, com jaccuzi, banho turco e sauna, que não experimentamos por falta de tempo); o cúmulo é a sala de pequenos-almoços, a "cozinha velha", onde, sob uma enorme chaminé rematada com uma grossa trave de madeira, a pedra se mantém nas paredes, na lareira, no forno, no banco, tudo preenchido com os utensílios originais de ferro, madeira, barro. Nós, sentados em cadeiras de espaldar a uma mesa antiga recheada de apetitosa iguarias, não conseguimos tirar os olhos daquele pedaço de "museu" - pode não ser muito "nobre", mas é decerto acolhedor.

Acolhedora é também a pequena biblioteca, sofás de couro gasto, salamandra na pequena lareira de pedra, livros, e uma pequena televisão. E num pequeno recanto perto da "cozinha velha" há uma kitchnette de apoio (e perfeitamente dissimulada no cenário "antigo"), com um bar self-service e onde se podem fazer refeições ligeiras.

Pela casa, há escadinhas, corredores, arcadas, muitas portas. Mas muitos mais nichos - são para cima de quarenta, e estão por todo o lado, até nas casas de banho, rematados a granito. Foram (re)descobertos nas obras e agora têm funções de vitrinas fechadas com portas de vidro, receptáculos de porcelanas e afins, ou estão decorados com algum objecto. Um desses nichos é especial - é a antiga latrina, e lá está ela, de madeira, reduzida a objecto decorativo. Em casa antiga, um pouco de arqueologia: o "fosso", que parece um esqueleto de casa graças à recuperação (madeira e ferro entre paredes integralmente de pedra) que lhe deu apenas escadas e uma "ponte" que liga duas partes do solar - de resto é um espaço vazio como se de uma pequena torre se tratasse, com a tal arqueologia, uma trave escura que restou do quarto que ali existiu.

Cá fora, o jardim é pequenino (afinal, estamos no centro de Ponte da Barca), arranjado em caminhos de buxo e com um terraço relvado onde se encontra a piscina. Por estes dias, o frio interdita a piscina e até preferimos assim. Locais como este parece que sabem melhor à lareira, entre história e "estórias" (que os proprietários, quando estão, não desdenham em partilhar).

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