Angola: o "império da imoralidade" não foi mais imoral do que os outros

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Mergulho no destino comum de Angola e Portugal até à independência, a "História de Angola" de Douglas Wheeler e René Pélissier mostra como a colonização foi moldada pela fragilidade económica e pela instabilidade política da metrópole

Quando a primeira edição de "Angola", de Douglas Wheeler e René Pélissier, saiu nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, em 1971, o acontecimento quase passou despercebido em Portugal, onde o livro foi proibido pela censura do Estado Novo. Era um retrato único de um território à procura da independência, assente na investigação de dois académicos e historiadores, um americano e o outro francês, que se tinham conhecido em Luanda em 1966 e quiseram dar conta da guerra que começara em 1961 e da qual pouco se sabia.

O conhecimento que se tinha da realidade no terreno era incompleto e quase exclusivamente moldado pela propaganda. De um lado, dizia-se que "o único objectivo do regime de Lisboa" era "a exploração". Do outro, considerava-se que os angolanos eram "incapazes de se auto-governar".

Numa altura em que as atenções se centravam na guerra do Vietname, os esforços de um pequeno Estado ditatorial como Portugal para manter o último império colonial em África começava a suscitar o interesse de académicos e investigadores norte-americanos. Mas Wheeler e Pélissier não se debruçaram apenas sobre a guerra: recuaram vários séculos e escreveram uma história de Angola até 1975, então publicada na colecção Pall Mall Library of African Affairs, na Grã-Bretanha, e pela Praeger, nos EUA.

Esse livro, revisto e actualizado à luz dos acontecimentos que se seguiram, foi agora lançado em Portugal pelas edições Tinta da China com o título "História de Angola". Parte da descoberta do Reino do Congo, o maior reino bantu da África Central Ocidental, pelo navegador português Diogo Cão, em 1482. E termina num retrato breve da transição iniciada com o fim da guerra civil angolana em 2002. Centra-se no contexto histórico de Angola e de Portugal e mostra como os percursos dos dois países estiveram de tal forma interligados, até 1975, que nunca houve a distância devida para que colonizador e colonizado pudessem olhar um para o outro e ser capazes de evitar mal-entendidos. "Muitas vezes, tanto os portugueses como os seus amigos e inimigos africanos interpretaram de modo errado as aspirações e as capacidades do outro, não conseguindo beneficiar da consciência da sua humanidade comum", resume Douglas Wheeler num dos capítulos finais.

"História de Angola" mostra o que condicionou o desenrolar, por vezes trágico, dos acontecimentos e admite os erros de que foi feita a história do colonizador, sem porém esquecer a perspectiva das realidades políticas e das fragilidades de cada um enquanto nação. Para alguns académicos, peca por não incorporar informação nova, entretanto disponível pela abertura dos arquivos em Portugal, na ex-União Soviética, nos Estados Unidos, ou mesmo em Angola, embora aqui a consulta se faça com maior dificuldade. Os autores apresentam-no simplesmente como uma história sucinta de Angola, escrita para o público em geral.  

O trauma espanhol

Para compreender a realidade angolana, o livro retrata o mundo que existia antes da difícil conquista do território pelos portugueses. Descreve como a lógica dos reinos tradicionais e o modo de vida dos povos da região foram transformados pelas expedições militares e pela presença portuguesa. Nalguns casos, como nas regiões de reis ovimbundo, os monarcas podiam ser considerados divinos ou herdar o trono de um familiar; noutros, "havia um considerável exercício de democracia popular". 

Do lado de Lisboa, a expansão imperial servia os objectivos da renovação e da redenção de Portugal em momentos de crise, como uma oportunidade para "reviver glórias passadas". Diz Wheeler em entrevista: uma das coisas que distinguiu a colonização portuguesa das restantes colonizações europeias foi "a crença de que os recursos imperiais em África permitiam a Portugal, embora fraco na Ibéria, elevar-se acima do seu peso no plano internacional". Lisboa vivia o medo de que o fim do império em África levasse ao fim da independência de Portugal face ao país vizinho mais poderoso que era Espanha.

Luanda, por seu lado, sofreu com as crises e as fragilidades da metrópole e perdeu com a falta de um nacionalismo unido, primeiro entre indígenas e assimilados (que conviviam com os portugueses mas aspiravam à independência) e, anos mais tarde, entre os três movimentos de libertação que fizeram a guerra civil.

Ser ou não ser controverso

Não houve intenção, nem em 1971 com "Angola" nem agora com "História de Angola", de lançar a controvérsia. Quando a primeira edição do livro foi publicada, porém, o momento era controverso. Lisboa não abria mão das colónias anos depois de todas as ex-colónias da Grã-Bretanha e de França terem conquistado as suas independências. Portugal estava orgulhosamente só: era um caso isolado e mal aceite no mundo.

Na nota prévia do livro, tanto Wheeler como René Pélissier dizem estar conscientes de que poderão vir a ser acusados de parcialidade ou desonestidade, uma inevitabilidade sempre que os historiadores comentam acontecimentos próximos no tempo e "tão dolorosos quanto aqueles que os portugueses e os africanos viveram entre 1960 e o presente".

Será então este um livro inevitavelmente controverso? "História de Angola" conta como, no século XIX, se discutia o "império da imoralidade" e a "crise moral" de uma metrópole que teve de travar várias guerras para consolidar a sua presença em Angola. Mostra como o relacionamento entre portugueses e africanos começou por assentar na exploração - com a escravatura primeiro, depois com o tráfico de escravos e o trabalho forçado. E defende que a imoralidade do colonialismo, especialmente exposta sob o regime de Salazar, vinha de longe. Lembra como a revolta independentista de 1961 desencadeou um confronto brutal de ódio racial em que ambos os lados sofreram, depois dos massacres levados a cabo pela UPA (ex-FNLA) no Norte, e como Angola mergulhou em 1975 na guerra civil, com as forças angolanas divididas perante a impotência de Portugal em fazer cumprir o Acordo de Alvor (ver texto nestas páginas).

"Quando olhamos para a História mundial, encontramos muitos exemplos de processos controversos de descolonização", diz ao Ípsilon, por telefone, Douglas Wheeler, que também escreveu vários livros sobre a História de Portugal. Dá o exemplo do doloroso processo da independência da Índia e da separação do Paquistão. "Cada região se defronta com um problema diferente. E, no caso de Portugal, era muito difícil enfrentar uma revolução no país e ao mesmo tempo gerir um processo de descolonização."

"História de Angola" não pretende apontar responsabilidades, mas, ao analisar a história simultânea dos dois países, põe em evidência as falhas de uns e outros.

Inferno e Paraíso

A potência colonial mais antiga da Europa era, ao mesmo tempo, a que apresentava maiores debilidades. "A exploração durou mais tempo do que noutras colónias europeias porque a metrópole era pobre, o Estado fraco e mal representado, os poucos capitalistas da metrópole estavam pouco interessados em investir e o pequeno colono decidido a enriquecer explorando o mais fraco que ele", diz René Pélissier numa entrevista por email. "Mas isso não significa que os portugueses fossem moralmente piores do que os outros colonizadores", sublinha.

Admite que podia haver "ódio" relativamente a certos colonos e à administração, e que será "provável que persista um ressentimento nas gerações que conheceram a colonização". O historiador, que estudou a colonização contemporânea e a descolonização de Portugal e é autor de vários livros sobre Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor-Leste e a descolonização espanhola, faz contudo uma ressalva: "Quando se passou pelos horrores de 27 anos de guerra civil, com todas as suas atrocidades, podemos admitir que um ódio recente afasta o outro, mais antigo, e que, para a grande maioria que sobrevive na miséria, a época colonial aparece como um período difícil mas em que não se passava fome. Trata-se de saber onde se situa o Paraíso. Não está à mesma distância para aqueles que tiram partido da independência e para os outros que esperavam as maravilhas que ainda procuram."

 

 

A história completa do Acordo de Alvor ainda está por contar

As esperanças depositadas no Acordo de Alvor ao longo de 35 anos, tendo em vista a transferência de soberania de Portugal para uma Angola independente, rapidamente se desvaneceram. Pouco tempo depois da assinatura, há exactamente 35 anos, do texto que agendava a independência para 11 de Novembro desse ano, os três movimentos nacionalistas angolanos entravam em guerra e muitos portugueses deixavam precipitadamente o país.

MPLA, UNITA e FNLA digladiaram-se numa disputa pelo poder que fez esquecer a luta de libertação e tornou desajustada a celebração do acordo como momento fundador de uma nova nação. A independência foi consumada na data prevista, mas já num clima de guerra civil que viria a intensificar-se depois da saída de Portugal.

O momento tinha sido muito aguardado, mas o Acordo de Alvor desiludiu e foi vivido de forma atormentada pelos protagonistas dos dois lados. Não será pois de surpreender que sejam múltiplos e divergentes os olhares que sobre ele se encontram nos livros sobre a descolonização de Angola.

Na vasta bibliografia sobre o tema, uma visão domina - a de que, sob intensa pressão internacional, Portugal agiu de boa-fé enquanto os três movimentos nacionalistas, pelo contrário, mantinham a desconfiança e a hostilidade, sem qualquer intenção real de cumprir o acordo.

Mas há outras versões. As "Memórias" (Nzila, 2005) de Iko Carreira, general angolano e figura cimeira do MPLA, levam o leitor a concluir claramente que o acordo nunca foi feito para ser cumprido. "É um dos livros mais determinantes para compreender Alvor", diz António José Telo, director do Instituto de Defesa Nacional e autor, entre outros livros, de "História Contemporânea de Portugal - Do 25 de Abril à actualidade" (Presença, 2007). Iko Carreira conta episódios concretos da preparação da guerra por algumas facções angolanas a partir do final de 1974. O MPLA e a FNLA estavam a rearmar-se para a conquista violenta de Luanda muito antes de Alvor. "A única parte que acreditava no acordo era Portugal, e tanto o MPLA como a FNLA, pelo menos, o encaravam como forma de ganhar tempo", explica António José Telo ao Ípsilon. "Pela situação política que vivia, Portugal não tinha condições para evitar a guerra e o importante era acelerar a saída de Angola. O Acordo de Alvor não era para cumprir. Foi uma fachada", argumenta.

A complicar o xadrez, havia ainda as aspirações e os apoios militares dos EUA e da União Soviética, numa primeira fase, e depois da África do Sul e de Cuba, num contexto de Guerra Fria em que as várias potências jogavam a sua influência junto de cada uma das partes na guerra angolana. No meio disso, sublinha o historiador, "Portugal era muitas coisas, estava num processo de divisão". Havia portugueses envolvidos no MPLA, na FNLA, junto da UNITA e da África do Sul, que preparava a invasão de Angola pelo Sul.

Alguns livros defendem a tese de que uma afinidade ideológica entre o MFA, em Portugal, e o MPLA, em Angola, terá resultado num favorecimento a este último movimento através, por exemplo, da atribuição de pastas ministeriais com maior influência no Governo de transição que deveria ter sido formado, se o acordo tivesse avançado. Mas, nota a antropóloga da Universidade de Coimbra Catarina Antunes Gomes, "é muito plausível que o reconhecimento do MPLA tenha mais a ver com negociações geopolíticas"

Drama pessoal

A história completa do Acordo de Alvor continua por contar, dizem os investigadores entrevistados pelo Ípsilon. Os testemunhos são quase todos apaixonados, e reflectem uma visão tão comprometida que dificilmente dão um quadro completo do acontecimento. "A maior parte dos protagonistas vive os acontecimentos como um imenso drama pessoal. O mundo caiu aos seus pés e isso marcou-os profundamente e, nalguns casos, destruiu-os", considera António José Telo.

Fernando Tavares Pimenta, historiador e investigador da Universidade de Coimbra e do Instituto Universitário Europeu de Florença, nota porém que, nalguns testemunhos, como o do general Pezarat Correia, houve uma tentativa de dar um contributo histórico. Em "A Descolonização de Angola - A Jóia da Coroa do Império Colonial Português" (Editorial Inquérito, 1991), o general, que fez parte da delegação que negociou Alvor, chefiada pelo coronel Melo Antunes, contesta a ideia de um favorecimento do MPLA.

Fora dos testemunhos pessoais, o exame do americano Witney Schneidman, "Confronto em África - Washington e a Queda do Império Colonial Português" (Tribuna da História, 2005) destaca-se como um dos primeiros a fazer "uma análise mais ou menos detalhada", concluindo que o acordo "nunca poderia ter funcionado". Também Fernando Tavares Pimenta constata, na sua tese de doutoramento, "Angola, os Brancos e a Independência" (Edições Afrontamento, 2008), que a situação dos colonos portugueses foi totalmente ignorada no Acordo de Alvor. "Faltou coragem política para abordar certos assuntos", diz o historiador. E continua a faltar coragem aos historiadores para questionarem a ideia dominante de que "Portugal estava perante a inevitabilidade do fracasso". Essa visão, sublinha, passa nos testemunhos dos militares envolvidos, como os do general Silva Cardoso em "Angola. Anatomia de uma Tragédia" (Oficina do Livro, 2000) e do general Gonçalves Ribeiro em "A Vertigem da Descolonização - da agonia do êxodo à cidadania plena" (Editorial Inquérito, 2002). Livros que são também exemplos de outra dimensão das memórias da descolonização - a de que os portugueses estavam profundamente divididos e se sentiram traídos pelos companheiros. A.D.C.

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