Dave Eggers, o rapaz que parte corações

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Eggers compara a infância a cimento fresco: cada marca fica para sempre

É um dos "meninos de ouro" da literatura americana, transformou uma história de 300 palavras de Maurice Sendak num filme e num romance de quase 300 páginas, "O Sítio das Coisas Selvagens"

Quando nas tardes dos anos 70, na casa em que o pequeno Dave morava com os pais e dois irmãos mais velhos num subúrbio de Chicago, passava na TV "O Feiticeiro de Oz", ele via-o escondido atrás do sofá. Por isso, quando ouviu a história e folheou o livro "Where the Wild Things Are" ("Onde Vivem os Monstros"), de Maurice Sendak, não se deve ter admirado muito do sentimento de terror que o invadiu. E segundo revelou ao jornal inglês "The Telegraph", não foram apenas as imagens que o perturbaram em criança, foi também a "ambiguidade moral da história" contada.

Nessa altura, o pequeno Dave Eggers (n. 1970) estaria longe de imaginar que daí a três décadas seria co-autor do argumento de um filme baseado nessa história que o aterrorizou - feita com pouco mais palavras (no original em inglês) das que as que tem este parágrafo - e também que um dia, esse mesmo senhor Maurice Sendak que a inventou e fez os desenhos que a ilustram, lhe telefonaria para o convencer a escrever um romance ("O Sítio das Coisas Selvagens", Quetzal, 2009) que recriasse a história do irrequieto Max e dos monstros que ele encontra. Mas foi isso que aconteceu. Várias tragédias depois.

A matéria para Max

Em 1991, com 21 anos, Dave Eggers perdeu os pais com poucas semanas de intervalo, mortes causadas por cancro. Os dois irmãos mais velhos estavam a iniciar carreiras fora de Chicago, e coube a Dave acompanhar e educar o irmão mais novo, Cristopher, sete anos. Muda-se com o irmão e a namorada para Berkeley, Califórnia, e no princípio sobrevivem com o dinheiro deixado pelos pais.

Esta dolorosa experiência leva-o a escrever  o primeiro livro, "A Heartbreaking Work of Staggering Genius" (2000), livro de memórias sobre os trágicos acontecimentos, à mistura com um pouco de ficção. A recepção por parte de leitores (um milhão de exemplares nos EUA) e dos críticos atiram o seu nome para o restrito grupo dos "meninos de ouro" da literatura americana. A revista "McSweeney's", que ele criara em 1998, torna-se numa publicação de culto. Confirmando as expectativas no seu potencial literário, Eggers publica em 2002 o primeiro romance, "You Shall Know Our Velocity", que ganha o "The Independent Book Award". Mas por essa época, outra tragédia acontece na sua vida. A irmã, face ao sucesso obtido por "A Heartbreaking Work of Staggering Genius", reclama para si a parte da responsabilidade na educação do irmão mais novo acusando Eggers de mentir no livro. Pouco tempo depois, arrepende-se e deixa um "post" no sítio da net da "McSweeney's" em que confessa que o que fez foi "a really terrible La Toya Jackson moment". E suicida-se. Dave quase nunca se referiu à morte da irmã.

As histórias narradas nesse primeiro livro serviram de inspiração a Eggers para criar o rapaz Max, o do filme e o do romance. Mas não apenas as recordações relacionadas com o irmão foram utilizadas, também as suas próprias memórias. Por detrás da fachada de família feliz que aparentavam ser, Eggers referiu-se várias vezes aos problemas do pai com o álcool e às suas prolongadas ausências de casa. Dave sentia-se responsável pela felicidade da mãe e, então, à semelhança do Max do romance "O Sítio das Coisas Selvagens", também ele imitava diante dela os movimentos de um robô com a intenção de a fazer feliz provocando-lhe o riso. Em várias entrevistas menciona o facto de ter tido uma infância enclausurada, com horários pré-definidos para tudo, mas mais "selvagem" que a de Max: costumava jogar futebol com bolas de ténis em chamas, banhadas em querosene. No entanto, ressalva que era bom aluno e dócil. Estas contradições, e a força criativa que delas advém, ajudaram a capturar no papel as emoções de Max e as angústias sem nome da infância, que constituem a matéria-prima da personagem.

Cimento fresco

Ao "The Telegraph", confessou ter aceitado a proposta de Maurice Sendak para escrever o romance porque essa seria uma oportunidade de explorar as suas ideias sobre a infância, o que lhe interessava, pois fora pai havia pouco tempo. Compara a idade da infância a cimento fresco, "cada marca pode ficar lá para sempre".

Mas a sua preocupação com as marcas deixadas na infância não é assunto recente. Por entender que a escola não promove o acto de escrever, ajudou a criar em 2002, em São Francisco, uma organização sem fins lucrativos, a "826 Valencia", que ensina crianças e jovens entre os seis e os 18 anos a escrever ficção. O que nasceu em São Francisco como projecto local estendeu-se a outras cidades como LA, Nova Iorque, Chicago, Boston. Ainda nesta área da promoção da escrita, e também desde 2002, Eggers é o editor de uma antologia anual intitulada "The Best American Nonrequired Readings", que publica os melhores trabalhos de um grupo de alunos do ensino secundário que semanalmente se reúne com ele nos escritórios da "McSweeney's".

Este lado mais ou menos filantropo de Eggers, que parece querer fazer carreira como "escritor com causas", tem também forte expressão literária. Um dia, conheceu Valentino Achak Deng, refugiado sudanês estabelecido em Atlanta. Durante meses ouviu as suas histórias de menino perdido na guerra civil do Sudão, nos campos de refugiados por onde passou, como chegou aos EUA, e tomou muitas notas de tudo. Depois pôs mãos à obra e escreveu um romance brilhante, "What Is What" ("O Que é o Quê", Casa das Letras, 2009),  "autobiografia" ficcionada que se tornou num "bestseller". Com o dinheiro obtido com os direitos do livro, que foi entregue a Valentino Achak Deng, este criou uma fundação com o seu nome que se propõe construir escolas secundárias no sul do Sudão; a primeira foi inaugurada em Maio.

Mais recentemente, já em 2009, foi a vez da publicação de "Zeitoun", a história de uma família muçulmana, sírio-americana, que viu ser preso Abdulrahman Zeitoun, um habitante de Nova Orleães que se deixou ficar na cidade durante o furacão Katrina para ajudar no salvamento dos necessitados que o Estado abandonara à sua sorte, e que depois foi acusado de terrorismo pela administração Bush. Também o dinheiro obtido com os direitos deste livro (a publicar este ano em Portugal pela Quetzal) reverte a favor da Fundação Zeitoun, que se dedica à defesa dos direitos humanos.

Há quem diga que agora o que falta a Dave Eggers é já só escrever um verdadeiro romance.

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