Feministas querem obra de arte no Parque Eduardo VII para recordar manifestação

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Isabel Telinhos (à esquerda) vestiu-se de vamp há 35 anos e acabou agredida e insultada pelos homens Daniel Rocha

A distância face a 1975 não se espelhava apenas na arquitectura citadina, no trânsito ou nos rostos das cerca de 40 pessoas que hoje se reuniram no alto do Parque Eduardo VII, à hora de almoço e sob chuva intensa, para assinalar os 35 anos da manifestação feminista então convocada pelo Movimento de Libertação das Mulheres (MLM).

Coincidência ou não, hoje, ao apelo da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta responderam tantas pessoas quantas as mulheres da concentração que pretendiam recordar. E ninguém se coibiu de levar pelo menos uma peça de roupa roxa, a cor do movimento feminista, fosse luvas, cachecol, camisa, camisola ou até chapéu-de-chuva.

No grupo desta manhã havia, por exemplo, duas deputadas (a bloquista Helena Pinto e a socialista Catarina Marcelino), uma consultora de marketing estratégico e empresária (Célia Metrass), duas escritoras (Maria Teresa Horta e Luísa Paiva Boléo), uma historiadora doutorada (Irene Pimentel), uma antiga e uma actual secretária de Estado (Ana Benavente e Elza Pais), uma pintora (Ana Vidigal).

Mas também ali estava o deputado eleito pelo PS Miguel Vale de Almeida e muitas caras que marcaram presença nas escadas da Assembleia da República, na passada semana, aquando da comemoração da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. E duas mulheres-polícia que vigiavam a concentração. Profissões quase todas vedadas às mulheres portuguesas há 35 anos - essa limitação era apenas uma das razões para a manifestação de 1975.

No panfleto que distribuiu para convocar a concentração naquela altura, o MLM afirmava querer “denunciar publicamente as várias formas de que se reveste a opressão da mulher em Portugal”, queimando, numa fogueira, objectos que simbolizassem essa subjugação. Uma noiva queimaria a flor de laranjeira, a dona de casa o avental e uma vamp o biquíni.

Terá sido uma notícia publicada no Expresso uns dias antes dessa manifestação, em que se anunciava um “strip-tease de contestação” que serviu de rastilho para o que acabou por acontecer naquela segunda-feira. Não foi a fogueira que se acendeu mas sim os ânimos de dois mil homens que ali acorreram e que acabaram por insultar e agredir as activistas que tiveram que fugir à fúria masculina traduzida em gritos, pontapés, empurrões, bofetadas e apalpões, descreve Maria Teresa Horta, presente na acção.

“Um mar de homens”

O tempo chuvoso de hoje não ajudou a fazer a homenagem devida, queixavam-se algumas mulheres. Eram as mais novas – algumas nem ainda nascidas em 1975 -, que davam o mote, cantando uma versão adaptada de uma conhecida canção popular. “Oh machão, machão/ Quem te lava a roupa?/ A minha mulher/ Oh terrintintin/ Pois é coisa pouca…”, cantava-se à porta do número 28 da Avenida Sidónio Pais - na esquina com o agora El Corte Inglés -, a casa de Manuela Barbosa (fundadora do MLM) de onde as activistas saíram naquela tarde de Janeiro.

Hoje concentraram-se à porta, “guardadas” por dois polícias – a que se juntaram depois mais três -, e seguiram depois em direcção ao parque, em frente. Atravessam a rua e vai de seguir por um dos caminhos sob as árvores, para a esquerda. Célia Metrass, debaixo do chapéu-de-chuva, abanava a cabeça e torcia o nariz. Não era aquela a direcção. Chamadas para trás, encaminham-se então pela calçada, subindo em direcção às colunas do alto do parque.

“Há 35 anos esta zona estava cheia de homens, era um mar deles”, diz Célia Metrass, também fundadora do MLM, que conduz o grupo. “Era uma multidão ululante e raivosa de homens que atacaram um pequeno grupo de mulheres que traziam filhos pela mão”, acrescenta Maria Teresa Horta. Célia Metrass lembra-se de ter sido agredida e de até terem chamado um médico para assistir uma das manifestantes.

Das três mulheres “mascaradas”, Isabel Telinhos era a vamp e foi das mais maltratadas, recorda. Já a noiva, lembra Teresa Horta, escapou: “Numa noiva não se toca, é imaculada, devem ter pensado os homens”. A iniciativa desta manhã, realça a poetisa, “não é uma romagem: é uma forma de dizer que uma vez por todas que em 1975 não esteve aqui um grupo de maluquinhas, que não pretendíamos fazer strip-tease ou queimar soutiens. Isso é o que se diz para nos denegrir e sobretudo para denegrir a luta das mulheres portuguesas.”

Em 1975 as activistas conseguiram concentrar-se do lado de cima da rua, onde hoje começa o jardim Amália Rodrigues. E é aí que a UMAR quer instalar, com a colaboração da autarquia lisboeta, uma obra de arte que marque o local como uma referência do movimento feminista português.

Já há várias sugestões, desde uma inscrição na calçada dizendo “Elas estiveram aqui”, até um pequeno palanque, com cadeiras em volta, numa espécie de um “speaker’s corner” londrino – mas neste caso feminista. “Queremos que seja um espaço que as feministas possam usar para conversar”, realça Manuela Tavares, dirigente da UMAR.

Até porque, avisam muitas activistas, boa parte dos símbolos que se queriam queimar há 35 anos ainda continuam actuais. Recusando uma leitura “pessimista” e reconhecendo que “o estatuto da mulher nas sociedades ocidentais mudou muito”, Célia Metrass diz, porém, que “todas as mulheres sentem ainda na pele, de uma forma mais ou menos evidente, algumas discriminações, seja na profissão, nas relações sociais ou familiares”. “Qualquer mulher só pode ser feminista. Ser feminista significa que defende os direitos da mulher”, remata Célia Metrass.

Lei da paridade também para o Governo?

Para apoiar a iniciativa de hoje da UMAR apareceram igualmente alguns homens, na sua maioria activistas de movimentos pela igualdade de direitos, como o deputado independente eleito pelo PS Miguel Vale de Almeida. A lei da paridade, diz o deputado, é a única maneira de diminuir as discriminações da mulher no acesso ao poder político, embora reconheça que nem sempre ela é rigorosamente cumprida.

“Quanto mais se cumprir, mais pessoas tenderão a aparecer para se candidatarem”, afirma Vale de Almeida. E estaria disposto a propor um mecanismo de fiscalização mais eficaz? “Não sei, isso teria que ser discutido dentro do grupo parlamentar.”

Para Helena Pinto, do Bloco de Esquerda, a lei da paridade aprovada em 2006 foi “um avanço muito grande”, mas peca por englobar apenas os cargos de representação política – para os lugares na Assembleia da República, no Parlamento Europeu e nas autarquias -, deixando de fora os órgãos executivos.

A deputada defende que as normas da paridade deveriam ser extensível à composição do Governo e à administração pública, que deve dar o exemplo ao tecido empresarial privado. O incumprimento da lei é punível com multas, mas Helena Pinto é mais radical: “As multas não servem de nada, os partidos preferem pagar e fazer o que entendem. A proposta do Bloco de Esquerda foi no sentido de as listas que não cumpram os requisitos serem liminarmente recusadas e os líderes dos partidos serem efectivamente responsabilizados por isso.”

“O Governo fala tanto sobre a paridade e a participação das mulheres, até fez disso bandeira eleitoral e depois não cumpre”, reclama Helena Pinto, dando como exemplo as secretarias de Estado, com uma composição eminentemente masculina – há 32 homens e apenas cinco mulheres.

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