O D. Quixote agora é de Coimbra

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O cenário é um monte de entulho e de estrelas. Há carros velhos que podem ser foguetões, uma autêntica sucata à espera de ser transformada. Ali, tudo é possível. Um pouco como na nossa cabeça, "cheia de tralha que pode ser muita coisa", diz a encenadora, Isabel Craveiro. Estamos em La Mancha, perdão, em Coimbra. E é por essas bandas, onde o "famoso Mondego atravessa terras do Choupal", que este D. Quixote se aventura. O Teatrão tem em cena, até Janeiro, o espectáculo "D. Quixote (de Coimbra)" na Oficina Municipal do Teatro.

Não é um D. Quixote doutros tempos. É de agora e de Coimbra. Ainda que atribuir-lhe um bilhete de identidade com referências precisas ao espaço e ao tempo possa parecer uma contradição, porque ele, e as personagens que o acompanham nas aventuras, podem ser quem quiserem, onde quiserem. É tudo, só, uma questão de imaginação. "É um D. Quixote que pode estar em qualquer sítio, onde nós quisermos, porque todo o jogo do espectáculo é transformarmos coisas que aparentemente não têm uso em coisas novas e vigorosas", diz a encenadora.

Neste caso, o jogo foi pô-lo em Coimbra. O dramaturgo Jorge Louraço Figueira - que criou o texto a partir da obra de Cervantes, com excertos das versões de António José da Silva, Monteiro Lobato, Yevgeni Shvarts e Orson Welles - escreve que a versão foi apelidada "como sendo 'de Coimbra', entre parêntesis, porque a personagem principal oscila entre o lugar imaginário de La Mancha e os lugares do Mondego, desde a Serra da Estrela, até à Figueira, passando pela Lusa Atenas, e entre os séculos XVI e XXI".

D. Quixote até é "meio motard": "Houve um certo prazer numa transgressão daquilo que é o convencional, daquela que é a imagem que nós todos temos do D. Quixote. Aqui ela aproxima-se um bocadinho mais de nós e também é isso que procuramos, quando a situamos em Coimbra. É torná-la nossa. É dizer que ela somos nós também", frisa a encenadora.

Em palco, num cenário de pó e de céu, com dois planos, D. Quixote vê gigantes e guerreiros onde (aparentemente) não os há. Sancho Pança tem medo de os ver. Ele sabe "o que é o poder da imaginação". É ele que diz: "Cuidado, senhor! Olhe que da imaginação nascem as causas." E, em palco, a tralha transforma-se: " A razão pela qual enchemos o cenário de entulho é porque ele representa o uso, a velhice, o desperdício e nos obriga a agir para fazer o novo, o vigoroso, o futuro, a partir do que temos", escreve Jorge Louraço Figueira.

Atrás de D. Quixote andam a sobrinha e a governanta que, com o pretexto de o protegerem das fantasias e da má figura, fantasiam também. Disfarçam-se, são reis e princesas a representar dentro da peça. Uma discussão metateatral levada ao ponto de, na própria peça, a governanta se sentir, a certa altura, exausta de representar: "Ai, estou cansada, porque isto de representar são muitas emoções fortes", diz.
É um espectáculo para todas as idades. Se as crianças se deixam ir com o movimento em palco, com o riso, a luz e as motas, os livros e os vídeos, os adultos lêem nas entrelinhas. Encantamentos, peripécias, vitórias e derrotas, envenenamentos e feridas, amores e muitas aventuras, na companhia de um vento faz-de-conta, em planícies que podem ser da terra ou da lua. Tudo ao som dos acordes criados por Afonso Rodrigues e Filipe da Costa (Afonso é o Sean Riley e Filipe um dos Slowriders) que não podiam ser mais apropriados para esta ideia de viagem.

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