Reportagem: “E agora, como vão eles fazer?”, perguntou Haidar quando começou a tempestade
“E agora, como vão eles fazer?”, perguntava esta madrugada Aminatu Haidar a Edi Escobar, a jornalista que é a sua assistente pessoal desde que a sarauí entrou em greve de fome, dia 16 de Novembro, dois dias depois de Marrocos lhe confiscar o passaporte e a expulsar para Lanzarote, acusando-a a ter renegado a sua nacionalidade. A activista, presidente de uma ONG que luta pelos direitos dos sarauís, escrevera “Sara Ocidental” em vez de “Marrocos” no espaço para a morada de um documento de desembarque.
“Eles” são as pessoas que a apoiam e que não arredam pé do parque de estacionamento dos autocarros do aeroporto. Espanhóis activistas, voluntários, membros da Frente Polisário, ex-combatentes, jovens sarauís que já viviam nas Canárias e vieram para cá acompanhá-la. A preocupação de Haidar era a chuva, a tempestade que desabou sobre a ilha de Lanzarote às seis da manhã.
Os muitos homens que dormem na rua levantaram-se de um salto. No quarto ao lado do de Haidar, onde dormem porta-vozes do movimento como Toledo ou Fernando Peraita, quase ninguém conseguiu continuar a dormir. Hamudi, o “chefe do acampamento”, que coordena as várias mudanças de cenário que fazem parte da rotina quotidiana - montar mesa para os jornalistas, montar mesa para o jantar... - entrou com colchões e malas, com tudo o que cabia.
“A faixa, tirem a faixa, é uma obra de arte”, pediu Peraita. A faixa branca com o rosto de Aminatu foi assinada por muitos nomes no festival de cultura que a Plataforma de Apoio ao Povo Sarauí organiza nos territórios. Estava colocada fora do parque, no muro junto à estrada. Foi salva. Muitos sacos-cama e cobertores molharam-se. Muita gente ficou sem ter onde dormir o resto da noite. De pé, embrulhados em mantas, acomodaram-se como podiam à porta da casa de banho onde Haidar se lava todas as manhãs. À porta do seu quarto, onde dorme com Escobar, ou à porta do quarto ao lado, onde dorme quem cabe.
Ramírez não acordou
O quarto de apoio, com as máquinas de refrigerantes e sanduíches, já estava mais cheio do que em noites anteriores. Já lá vão 27 dias e há sempre alguém que desmobiliza, mas também há sempre alguém novo. Ontem estava José María Anta, por exemplo, um cirurgião que todos os sarauís conhecem. De cada vez que vai aos territórios ocupados, opera uns 70, conta. Muitos problemas respiratórios, outros de ouvidos.
Tiveram de caber mais, por causa da tempestade. Omar Bulsan, por exemplo, representante da Frente Polisário para os territórios ocupados, não cabia mas passou a caber. Ao lado de Inés Miranda, uma das advogadas de Haidar, que a cada trovão dava pequenos gritos. Miranda apertou-se para deixar entrar quem quis. Todos fizeram o mesmo. Um repórter da agência AFP apertou-se entre Bulsan e Miranda. Também foi preciso arranjar espaço para a pequena televisão em que todas as noites se vêm os noticiários sobre Haidar e ocasionalmente um jogo de futebol europeu.
Cá fora, a água corria como rios entre as paragens dos autocarros, vazias. Lá dentro, brincava-se com o que toda esta chuva poderia trazer de bom. Também houve quem não acordasse. Um reformado, membro do partido de Rosa Díez, a União Progresso e Democracia (uma dissidência do PSOE), de gravata cor-de-rosa e muitos autocolantes na camisa. José Fernández Ramírez decidiu vir porque não tinha assim tanto que fazer em Sevilha e queria repetir a quem quisesse ouvir que o seu partido é o único que tem nos estatutos a autodeterminação do Sara Ocidental. Nem um centímetro se moveu com o dilúvio e com os trovões, tapado só com uma bandeira sarauí.
“É livre e deve viver”Aminatu Haidar, 42 anos, é a única em greve de fome por aqui. Mas não está sozinha. Quem estava ficou. A tempestade acordou quase todos mas não assustou ninguém.
O dia nasceu com chuviscos, muito vento e mais caos do que habitualmente. Mas já tudo regressou ao seu lugar. Comentam-se os títulos dos jornais do dia, as declarações dos sindicatos da polícia que ontem desmentiram o Governo: Haidar entrou sem documentos em Lanzarote porque Madrid assim o autorizou, não porque um qualquer agente tenha decidido.
No “El País” há um longo texto que pergunta se “Somos livres para morrer?”. “Sim”, responde a maioria: sociólogos e especialistas em direito.
“Aminatu é livre, mas não está livre. Está rodeada pela nossa admiração e afecto, mas está em greve de fome, exigindo o regresso à sua casa, à sua família e à sua pátria”, escreve no mesmo jornal José María Mena, ex-procurador chefe da Catalunha. “A heroína sarauí é livre e deve viver”, continua. “Haidar não está presa. Tem direito a reivindicar as suas convicções, mesmo a custo de provocar a sua própria morte.”