Cristiano Ronaldo balança entre o Doutor Jekyll e Mister Hyde
Na última e mais negra versão, Cristiano foi acusado de, frente ao Almeria, ter visto um cartão amarelo só para poder mostrar os músculos torneados e salientes (dias antes, o As fazia a primeira página com a notícia de que o CR9 efectua três mil abdominais todos os dias, mesmo quando vai jogar). Tudo num jogo em que ainda iludiu o árbitro (levou-o a assinalar um penálti inexistente) e em que acabou expulso por pontapear um adversário. Neste último lote, houve ainda quem fosse ao pormenor de salientar que Ronaldo não festejou imediatamente o golo do colega Benzema, que aproveitou a sequência do penálti falhado para marcar.
Logo no final do jogo da liga espanhola, Ronaldo justificou a falta dos festejos com a sua maneira de ser "exigente e perfeccionista", enquanto a expulsão, disse, resultou de uma "reacção instintiva" de quem é um "ser humano" que assume ter ficado "desiludido consigo próprio". Já agora, vale a pena recordar que Luís Figo foi expulso oito vezes na liga espanhola, num quadro negro das estrelas em que também constam Beckham (quatro), Zidane, Ronaldinho Gaúcho, Cruyff e Maradona (todos com duas).
No dia seguinte, a Marca fez manchete com a promessa do português de que "não voltará a acontecer" nada de igual, frase que - garante o jornal desportivo - foi repetida a todos que interpelaram o jogador, incluindo o director- geral Jorge Valdano. O diário madrileno aproveitou ainda para lembrar que Ronaldo teve outras situações difíceis durante os seis anos em que jogou em Inglaterra (onde, é bom lembrar, foi expulso quatro vezes). "Também ali, ao princípio, o acusaram de individualista, de pensar só nele mesmo e não na equipa, de perder os nervos ante os antagonistas com demasiada facilidade, de protestar com os árbitros", podia ainda ler-se no mesmo jornal.
Logo após o jogo, houve jornalistas que perguntaram a Manuel Pellegrini que castigo podia ser aplicado a um jogador tão "pouco solidário". O treinador respondeu como pôde, mas os vários jornais exploraram até à exaustão a questão. Uns punindo e gozando Ronaldo, outros defendendo-o em forma tão ou mais acalorada em artigos de opinião. "Se ser egoísta significa não dar uma palmadita a tempo, mas participar em três golos e ser a chave de uma recuperação [no marcador], eu quero muitos egoístas desses na minha equipa", escreveu Carlos Carpio na Marca. Três páginas à frente, Roberto Gómez preferiu o outro lado da moeda: "Alguém que custou quase 100 milhões de euros e que está considerado como o melhor não pode cometer essas falhas, mesmo que depois fique tudo na mesma, porque no Real Madrid sempre há uma justificação por parte dos responsáveis do clube (...). Ele tem de saber que está no Real Madrid, o maior clube do mundo, e que gestos como estes não se lhe podem permitir".
Ao mesmo tempo, a imprensa catalã aproveitou a cerimónia da entrega da Bola de Ouro a Messi para fazer comparações de personalidade entre o "anjo" argentino e o "diabo" português. Joan Maria Batlle escreveu o seguinte no El Mundo Deportivo: "Cristiano ficou novamente nu perante as suas misérias. Esse vedetismo exagerado, esse egocentrismo que lhe pode voltar a fazer passar mal. A foto com a equipa celebrando o golo de Benzema e ele sozinho, cabisbaixo, à margem do grupo lamentando o penálti que acabara de falhar, diz muito pouco em favor do seu compromisso colectivo (...) Messi meteu dois golaços no Riazor (...). Servem para demonstrar, uma vez mais, quem é o autêntico "Balón de Oro". E aclaram por que Leo é um futebolista querido em todas as partes e Cristiano só na equipa onde joga".
No dia seguinte, a Marca publicava um cartoon humorístico em que as legendas no balão mostravam um Ronaldo a pedir desculpa pela sua "falta de solidariedade, egoísmo e exibicionismo", mas em que se destacavam principalmente as cores garridas e exuberantes das penas de pavão, abertas em leque, que lhe saíam do corpo. No mesmo dia, o diário mais vendido em Espanha ocupava a última página com uma dissertação de Júlio César Iglesias à volta do céu (Kaká) e o inferno (Ronaldo): "Visto e revisto, não temos outra saída que irmos ao confessionário. Reconhecemos que Kaká, o homem impoluto, é um grande futebolista e um bom "muchacho". Mas, com a vénia do Comité de Competições, alguns de nós preferem o mau. Que Deus nos perdoe". No dia anterior, o mesmo espaço havia sido ocupado com uma crónica de Roberto Palomar, de sinal contrário: "Não estamos perante um jogador que faria uma transfusão sanguínea a um companheiro. Cristiano pediu perdão. Era o mínimo que podia fazer".
Estavam as coisas neste pé quando surgiu o recital de Ronaldo em Marselha. Dois golos do português, com a foto do primeiro a dar sustento à manchete da Marca. "El Balón de oro", lia-se num arranjo que incluía ainda um gráfico com a mentirosa trajectória do "míssil terra-ar" ao longo de 37 metros. O arranque da crónica do jogo, da autoria do conhecido e sempre exigente Santiago Segurola, também não deixava dúvidas da redenção (pelo menos no jornal madrileno) do craque português: "Cristiano Ronaldo explicou em Marselha a verdadeira diferença entre a solidariedade e a cosmética dos abraços. As formas contam, mas o jogo, os golos e o compromisso definem o valor de um futebolista e o seu efeito sobre a equipa (...). Com Ronaldo, o Madrid melhora notavelmente em todos os aspectos. Sente-se confiante porque dispõe de uma arma nuclear".
Ronaldo segue como o melhor marcador da Liga dos Campeões (seis golos), apesar de só ter jogado 288 minutos na prova. Pelo Real Madrid já alinhou em 11 jogos, tendo marcado 12 golos, sendo que, com ele em campo, a equipa ganhou 91 por cento das vezes. Mas, tal como na ficção de horror, Ronaldo precisa decidir se quer apenas constar na história com um iluminado Dr. Jekyll ou se quer continuar a arriscar ser visto como um Mr. Hyde, um homem com um monstro escondido dentro dele. É que a dimensão das suas diatribes ganham outra dimensão quando são protagonizadas com a camisola do Real Madrid, cujo mediatismo ainda há dias foi reconhecido por Ada Yonath. Segundo a última vencedora do Prémio Nobel da Química, o clube madrileno "interessa mais do que qualquer invenção". Mas, isso vale tanto para o bem como para o mal, como Ronaldo terá de aprender à sua custa...
Mourinho continua igual a si próprioSe Cristiano Ronaldo continua na crista da onda em Espanha, para o bem e para o mal, José Mourinho continua a justificar o título de "enfant terrible" em Itália. A diferença é que as polémicas em que este último se envolve são estratégicas e intencionais, fazendo parte da gestão de tensões, internas e externas, que sempre constaram do seu compêndio de treinador de sucesso.
E pouco lhe importa o raro e rápido (entre 25 de Janeiro e 5 de Dezembro) recorde que o diário La Stampa lhe atribuiu: “Quatro expulsões num ano confirmam a alcunha de ‘Special One’: nenhum técnico em Itália o tinha conseguido”. Ou que o Corriere dello Sport tenha garantido que o seu lugar estaria em perigo se o Inter de Milão não se apurasse para os oitavos-de-final da Champions – tudo porque o instável presidente Massimo Moratti, que há muito anda de candeias às avessas com o português, não encaixou bem a forma como o seu clube foi atropelado em Barcelona. A uma e outra coisa, Mourinho reagiu à sua maneira: “Li que já haviam encontrado um substituto, mas isso não é um problema para mim. Se fosse despedido, estaria de regresso ao trabalho numa semana”.
E, depois de anteontem ter batido o Rubin Kazan, nem a imprensa portuguesa escapou: “Até me espanta ver cá uma televisão portuguesa, só cá vieram porque vos cheirava a esturro e cheirava-vos à possibilidade de sangue, mas o Inter continua na Liga dos Campeões”... Mourinho tem cada vez mais cabelos brancos, mas no resto mantém-se igual a si próprio.