Alejandro Amenábar viaja no (nosso) tempo

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"Ágora", diz o realizador espanhol, não é um filme de época passado no século IV em Alexandria: é um filme contemporâneo passado nos dias de hoje (crise, violência, lutas religiosas e um certo fim de Deus). Vamos lá abrir os olhos com ele

Todos vimos Russell Crowe a abrir caminho em sucessivos combates da história do império romano no épico de grande orçamento "Gladiador", enquanto James Purefroy se distinguia como o dissoluto Marco António da "Roma" da BBC. Empreendimentos destes são tão enormemente dispendiosos que levam as empresas à falência: "Cleópatra", de 1963, então o filme mais caro alguma vez produzido (307,5 milhões de dólares ao câmbio actual), quase deixou a Twentieth Century Fox na bancarrota, e, bem mais recentemente, a BBC acabou por não poder pagar uma terceira série da sua caríssima "Roma", a série mais dispendiosa jamais exibida por uma televisão. Depois de um incêndio ter destruído os impressionantes cenários da produção, era difícil imaginar que alguma vez voltaríamos a ver um épico de espada e sandálias - e o degelo financeiro do ano passado tornou essa perspectiva ainda menos provável.

Menos provável não significa impossível. Com "Ágora", o pequeno realizador espanhol Alejandro Amenábar conseguiu-o, e temos de admitir, vendo toda aquela história romano-egípcia tão bem montada e actores atraentes em vestes flutuantes, que o filme foi uma coisa digna de ser vista no meio da pompa e circunstância de Cannes. 
"Nunca tinha feito um grande filme como este, mas queria realmente contar esta história da astrónoma grega Hipátia e infelizmente aconteceu que ela viveu no século IV em Alexandria, o que significava que tínhamos de recriar a cidade daquele tempo", diz o realizador. "Mas tentámos ao mesmo tempo retratar Alexandria de um modo que fosse totalmente realista para a assistência."

Mais do que fazer um filme de época, Amenábar queria fazer um filme contemporâneo passado noutro tempo: "Quanto mais pesquisava sobre aquela época, mais me apercebia de que é muito como o que se passa actualmente. Temos um grande império a desmoronar-se, com uma grande crise social, económica e cultural. E temos a inspiração para esse império - que, neste caso, é a Europa -, uma cultura mais antiga e mais refinada, a sofrer a crise como uma província do novo império. Há também a violência causada pelas diferenças religiosas, e quando se lê que os cristãos estavam a lutar contra os judeus e os pagãos percebe-se que temos problemas semelhantes hoje em dia."

Feito com 50 milhões de euros, ao longo de quatro anos, "Ágora" foi completamente financiado a partir da Europa, explica Amenábar, que obviamente nunca teria conseguido reunir essa quantia de dinheiro em 2009. Apesar do grande orçamento, o realizador teve liberdade total sobre a montagem final. Como é um dos autores mais importantes do mundo, não se diz a Amenábar o que fazer. Nunca faz a mesma coisa duas vezes e adora preparar surpresas. O público ficou estarrecido com a derradeira revelação no fim de "Os Outros" - e quem mais fez um filme premiado sobre a eutanásia, ou foi capaz de manter o normalmente enérgico Javier Bardem quieto numa cama durante semanas, em "Mar Adentro"?

Contra o fundamentalismo

Não há dúvida de que Amenábar é bom com os actores, tal como é bom a apresentar histórias humanas. Desta vez queria fazer um filme "sobre pessoas que vão além das circunstâncias do seu momento na História, e olham para as estrelas em busca de orientação". A história de Hipátia, uma astrónoma, filósofa e matemática brilhante do século IV, ajustava-se a isso. E o filme que daí resultou, escrito em conjunto com o seu colaborador habitual Mateo Gil, é particularmente interessante por se centrar numa mulher e num tempo da história de Alexandria de que pouco sabemos.

Como sempre, Amenábar escolheu o elenco com grande perspicácia. Rachel Weisz parece ter nascido para representar o papel de Hipátia, uma mulher que 14 séculos depois da sua morte ainda fazia poetas românticos escreverem sobre as suas virtudes. Hipátia afastou-se dos homens na sua demanda de conhecimento e as suas convicções científicas - nomeadamente o ateísmo - levaram-na a morrer às mãos dos cristãos. O terrível suplício a que foi sujeita é realmente a única coisa de que sabemos todos os pormenores.

"Hipátia é morta por fundamentalistas da maneira mais brutal", explica Weisz. "Esfolaram-na viva com conchas de ostra; desarticularam-lhe os ossos. É inteiramente verdade, embora seja fantasia que um escravo estava apaixonado por ela, como acontece no filme. E não sabemos se ela descobriu a forma da Terra, ou se tinha chegado à conclusão de que a Terra se move à volta do Sol, como igualmente mostramos no filme. Sabemos que estava a trabalhar em secções cónicas, mas infelizmente toda a sua investigação se perdeu."

Weisz lançou-se a fazer pesquisas para o seu papel. "Hipátia era uma grande professora, tinha discípulos muito devotados, cristãos e pagãos, e não discriminava", diz. "Existem fragmentos de cartas dos seus discípulos preferidos, como Sinésio [Rupert Evans]. Ela era aquele tipo de professora inspiradora que pode transformar a vida de um aluno. É verdade que houve discípulos que se apaixonaram por ela. Deu-lhes um lenço sujo com o seu sangue, penso que foi a maneira de lhes dizer 'Desistam! Não estou interessada!', uma boa maneira de garantir que não fariam mais nenhuma tentativa."

O principal candidato aos seus afectos, no filme, é o estudante Orestes (Oscar Isaac), que veio a tornar-se prefeito de Alexandria. Amenábar foi mais uma vez arguto na distribuição, pois Isaac, um nova-iorquino com raízes evangélicas gualtematecas, projecta uma forte presença no filme (vai ser José Ramos-Horta em "Balibó" e o Rei João em "Robin Hood"). Max Minghella, filho do já falecido Anthony Minghella, é o escravo. "As caras eram mais importantes do que a arquitectura", admite Amenábar, "porque tinham de ser parecidas com os retratos de Al Fayum que foram descobertos no Egipto. O nível de realismo é espantoso, como se alguém tivesse andado a tirar fotografias para nós há dois mil anos. Por isso, quando os vi pela primeira vez, pensei: 'Isto é para valer, quase tudo está em ruínas, não resta quase nada de Alexandria, mas temos as caras. Temos de nos colar a elas tanto quanto possível'. Até as crianças com as suas cabeças rapadas, no filme - eu estava obcecado pela ideia de mostrar isso no filme porque o pude ver nos retratos"
Face ao realismo quase maníaco da figuração, é curioso que até Isaac tenha um sotaque inglês, como as personagens em tantos épicos de espada e sandálias do passado. "Quando percebemos que todo o dinheiro estava a vir da Europa, quisemos que o filme ficasse lá, por isso fazia sentido escolher actores britânicos", justifica Amenábar. "Em Alexandria, havia imensas nacionalidades e culturas e por isso pusemos quase todos os actores do Médio Oriente a fazer o resto da população da cidade - têm todos os um único sotaque também."

Amenábar também aplicou paletas de cores diferentes para distinguir os vários grupos religiosos. Quanto à religião em si, entusiasma-o que esta história mostre uma perspectiva diferente. "Vimos tantos filmes em que vemos os cristãos a serem perseguidos e comidos por leões que pensei: 'Porque não ter um filme acerca do inverso, uma mulher que não era cristã a ser morta por causa disso? Parece-me justo!'. Mas não quero que o filme seja anticristão. Detestaria que toda a gente pensasse o mesmo que eu. É bom que cada um tenha as suas próprias ideias porque estamos a viver todos juntos nesta ágora. E foi na verdade o que aconteceu nas filmagens; foi tudo muito harmonioso. Havia muçulmanos - o actor Sammy Samir ["Munique"], que desempenha Cirilo, é muçulmano -, enquanto Ashraf Barhom [o actor árabe israelita de "O Reino" e "O Paraíso, Agora!"] é um cristão muito devoto. Havia agnósticos e havia judeus, e todas as manhãs tínhamos de trabalhar juntos. A ser contra alguma coisa, este filme é realmente contra o fundamentalismo, contra essa coisa de matares alguém para defenderes a tua ideia. Isso é quando nos tornamos insectos."

Um céu sem deuses

Como "O Gladiador", "Ágora" foi filmado em Malta. "Tentámos Espanha e Marrocos, mas em Malta temos um forte, temos edifícios do século XVIII que já lá existem, temos muito boas instalações - e é fácil por causa dos incentivos fiscais. Eles querem realmente que se vá para lá filmar", justifica Amenábar. Também foi conveniente para Weisz porque a sua família pôde acompanhá-la. O seu companheiro, o realizador Darren Aronofsky, editou "O Wrestler" enquanto ali se encontrava. "Foi bizarro", recorda ela com uma gargalhada. "Num minuto, estávamos a falar acerca do Egipto do século IV e, no minuto seguinte, acerca de Mickey Rourke e de 'wrestling'!" 

A actriz, que tem um gosto acertado na escolha de realizadores e ganhou o Oscar de Melhor Actriz Secundária pelo papel em "O Fiel Jardineiro", de Fernando Meirelles, reserva grandes elogios para Amenábar. "Ele é incrível. Apesar de haver uma data de coisas a desenrolar-se em simultâneo, tinha sempre tempo para falar à parte connosco se tivéssemos algumas perguntas - e concentrava mesmo a sua atenção em nós. Por vezes, falamos com realizadores e eles não estão realmente a ouvir-nos; estão a condescender com os actores. Mas ele responde-nos mesmo."

Amenábar vive em Madrid, embora tivesse muito gosto em fazer filmes em Los Angeles (gosta do clima). Não lhe importa se os filmes são em inglês ou em espanhol, mas faz notar descaradamente que "deixará as línguas antigas para o Mel Gibson": "Fui educado como cristão e estudei durante muitos, muitos anos. Comecei a perder a minha fé seriamente quando decidi ler a Bíblia como devia ser, por mim. Não gostei do Deus do Antigo Testamento. Achei-o uma das criaturas mais cruéis sobre as quais já li. Depois alguns dos meus padres disseram: 'Espera até leres os evangelhos, porque esses é que são o essencial. Os outros são histórias antigas.' E então li os evangelhos e havia tantas coisas que desafiavam o senso comum e o conjunto dos meus valores... Resolvi que devia haver uma maneira qualquer de se ser boa pessoa sem ter de acreditar naquilo. Na altura em que fiz 'Os Outros' já era um agnóstico e o filme reflectiu esse sentimento. Depois, quando já tinha terminado 'Mar Adentro', assumi que era ateu - querendo com isso dizer que, se há uma presença acima de nós, penso que não é nenhum dos deuses referidos na História. Prefiro chamar-lhe 'natureza'."

Ou seja: um ateu como Hipátia, uma pessoa obcecada com a lógica da ciência. "Quando pesquisei Astronomia, era tudo tão excitante, tão comovente. Uma pessoa pode sentir-se muito elevada, espiritualmente, quando pensa sobre os cientistas no princípio do século XX a discutirem acerca do princípio da incerteza, a discutirem seriamente acerca de como tudo isto deve ter começado. Acho a Astronomia muito espiritual e tentei mostá-la desse ponto de vista, tal como tentei mostrar a religião do ponto de vista sociológico."

Com "Ágora", diz ele, foram as possibilidades da Astronomia que lhe deram um ponto de vista. "Era apenas eu a olhar para o céu, numa noite há quatro anos - agora que vivemos em cidades, a poluição luminosa é tanta que tendemos a pensar que aquilo é o verdadeiro céu. Estamos mais cegos do que nunca. Mas à noite podemos ver como o universo é grande. Essa coisa de estarmos cercados por um molho de estrelas é tão impressionante que nos sentimo imediatamente parte do universo e rodeados de vida e de civilizações, de planetas que têm muitas semelhanças com o nosso, com os nossos problemas e as nossas preocupações. Surpreendentemente, quando voltei para casa e falei com os meus amigos, alguns disseram: 'Porque não haveria de haver vida à nossa volta?'. Llevámos alguns milhares de anos a perceber que não estamos no centro do universo, mas numa parte escondida da galáxia."

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