O que se anda a fazer aos miúdos

Uma profissão de fé no poder subversivo do cinema

Não fosse Antonio Campos um miúdo de 26 anos e "Depois das Aulas" podia ser a ilustração do pesadelo de um pai que se tivesse deitado com uma súbita inquietação sobre"o que é que os miúdos andarão a fazer". Mais vale nem saber, e na verdade pai nenhum em "Depois das Aulas" sabe muito bem coisa alguma - estão longe, são uma voz ao telefone ou, no momento em que "Depois das Aulas" efectivamente deixa entrar os pais, são uma presença assarapantada na sequência de um momento traumático, e continuam sem ver ou perceber coisa alguma. O que não impede, e pelo contrário reforça, que o pesadelo lá esteja (e não só como força de expressão: o filme acaba com uma "interrupção" mais do com um "fim", abruptamente como nos pesadelos que ficam a fracções de segundo de um clímax horroroso). Tem é que ser visto dos dois lados: o que os miúdos andam a fazer é inquietante, mas não o é menos o que se anda a fazer aos miúdos. "Depois das Aulas" também é, e de que maneira, um filme sobre esta inquietação.


Larry Clark ("Kids"), pela franqueza, ou os filmes de adolescentes de Gus van Sant, mais pela cadência (ou pela dormência), são lembranças que fazem pelo menos algum sentido, mas que se diluem na atmosfera rigorosamente definida do colégio interno em que se passa a acção de "Depois das Aulas". Começa-se a pensar mais em ficção científica, e naquele colégio como uma nave espacial em missão sideral, como uma cápsula sem nada à volta. Campos gosta especialmente de Kubrick e de Haneke, e isso nota-se: há algo de "kubrickiano" no tratamento do espaço, há algo de "hanekiano" na maneira de gerir a duração e a tensão de cada plano. Há até um pouco mais de Haneke, visto que o protagonista de "Depois da Escola" é um parente não muito distante do protagonista do "Benny''s Vídeo" do realizador austríaco, "videófilo" e "videasta" amador como ele, e como ele surpreendido pela materialidade, pelo peso, que não existe nas imagens mas existe nas coisas e nos corpos verdadeiros. É outra questão que atravessa o filme, onde entramos através dos "clips" tipicamente YouTube que o rapaz vê no computador, a execução de Saddam, duas raparigas à bulha captadas por uma câmara de segurança, e (o que já não é tipicamente YouTube mas é tipicamente Internet) um excerto de um porno. Estas imagens vão ser rimadas ao longo do filme, mais notoriamente as do porno (modelo de comportamento sexual que quando finalmente se concretiza é o seu oposto: trapalhão e sem espectáculo) mas mesmo as da execução de Saddam, porque a certa altura (depois do "trauma": a morte de um par de gémeas por "overdose" decocaína adulterada, numa cena magistralmente filmada e mais tarde revista e recomposta noutras perspectivas) o ambiente no colégio se torna securitário e restritivo e porque esse tipo de reacção ao "trauma" nos reenvia para o contexto da morte de Saddam (o pós-11 de Setembro), que não é nada seguro que Campos não tenha querido glosar. Até porque esse momento corresponde ao ganho de proeminência da figura que assume a autoridade paternal (o director da escola), e porque o seu discurso justificativo, vago e redondo, ecoa os discursos justificativos, vagos e redondos, que tipicamente se ouvem da boca dos lideres políticos (de direita e de esquerda) desta nossa era tão rica em democracias paternalistas.

Neste mundo codificado, o colégio é a expressão de um universo onde tudo (do porno à política) se orienta porcritérios que definem bem o que é "apropriado" e o que não é. Ao associar explicitamente o vídeo (um "tributo" às gémeas mortas) feito pelo protagonista mas rejeitado pelo colégio ("nem sequer tem música", dizem-lhe, e também não a há em "Depois das Aulas") ao seu próprio filme, Campos transforma esta sua primeira longa numa profissão de fé no poder subversivo do cinema e, o que vai dar ao mesmo, num elogio do "inapropriado".

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