O problema da mulher fatal

As revisitações periódicas da colecção Berardo trazem-nos agora, com a curadoria de Ana Rito e Hugo Barata, uma selecção de obras feitas por mulheres artistas reunidas sob o título "She is a Femme Fatale" - uma citação do titulo de uma canção dos Velvet Underground dedicada a Edie Sedgwick, a pobre menina rica da "entourage" de Warhol e protagonista de diversos filmes seus. A exposição pretende focar um período vasto da arte contemporânea - desde os anos 30 até à actualidade, com particular enfoque nas décadas de 60 e 70 - em que se investigaram conceitos como "a identidade, o género, a sexualidade ou a política", subvertendo as "leituras complacentes de alguma história da arte", nas palavras dos comissários.

A partir destas intenções, a montagem só pontualmente nos reservará algumas surpresas. E elas começam logo no início do percurso, com a fotografia de Pilar Albarracín representando uma toureira de panela de pressão na mão, e a colagem de Eileen Agar, "Snake Charmer", de 1936, um trabalho de sabor surrealista evocativo das ameaças convocadas pela figura feminina e sinuosa da serpente. O tom está dado; a "femme fatale" que o título da exposição refere, mais do que a figura andrógina, magra e frágil de Sedgwick, convoca a imagem ameaçadora da mulher que não é a mãe nem a santa, mas sim Eva, Salomé, Judite: exactamente aquela que os Surrealistas temeram, convocaram e materializaram nos mais diferentes suportes e técnicas.

Mas esse título é provavelmente irónico, pois as obras que integram esta exposição pouco têm a ver com este imaginário. O panteão da arte feminina / feminista - Louise Bourgeois, Cindy Sherman, Helena Almeida, Nan Goldin, Paula Rego - está inevitavelmente bem representado, seguindo-se artistas que, de um modo ou de outro, trabalharam sobretudo a temática da identidade: Ana Mendieta, a cuja obra tem sido dada progressiva visibilidade desde há um par de anos, Suzanne Themlitz (com uma excelente instalação, feita propositadamente), Jemina Stehli, Gina Pane, Rosangela Rennó, Adriana Varejão entre outras, com um amplo predomínio da fotografia e do filme como suportes. Três portuguesas são aqui a surpresa: Manuela Marques e Margarida Correia, ambas fotógrafas, que têm exposto regularmente nesta década, e Vera Mantero, bailarina e coreógrafa, que teve na 26ª Bienal de São Paulo uma obra em conjunto com Rui Chafes, "Comer o Coração".A exposição termina com duas obras emblemáticas: uma da mesma Pilar Albarracín, "Marmites Enragées", um conjunto de panelas de pressão que apitam e mexem aparentemente sem chama que as aqueça, e um dos manifestos das "Guerrilla Girls" (aliás, também com uma peça no átrio do museu), demonstrando, com a ajuda de uma boa dose de humor, a pouca presença feminina nos museus e grandes exposições internacionais. Queira-se ou não, é este manifesto que dá o tom geral à exposição, mesmo se muitas das peças presentes, como as das fotógrafas portuguesas referidas, recusam essa faceta combativa e panfletária da arte. É que há de facto uma clivagem na arte feita por mulheres: há artistas que defendem que arte deve ser publicidade, e há outras que pensam que não. O mesmo se poderia dizer da arte feita por homens, de resto.

A "femme fatale", desde que o conceito existe, é uma criação masculina. Por isso, teria sido interessante ver menos obras de artistas que estão há muito rotuladas como "feministas", e mais sobre aquilo que verdadeiramente move as mulheres: a identidade, sem dúvida, mas também as questões relativas à ocupação do espaço (porque não Eva Hesse, Judy Chicago, Fernanda Fragateiro), à possibilidade da pintura (Maria Beatriz, Ana Vidigal), do lugar (Ana Vieira, Patrícia Garrido), para só citar alguns tópicos? Surpreendente mesmo teria sido ver uma exposição que não partisse de lugares-comuns, mas de uma abordagem inédita. O que não invalida a qualidade das obras aqui presentes.

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