Antony Beevor, o senhor da guerra

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A publicação de "Dia D - A Batalha da Normandia" confirma a capacidade de Antony Beevor relatar os episódios mais marcantes da II Guerra como se estivéssemos a ler um romance. Ele diz que é egoísta porque escreve para si mesmo. Ainda bem que assim é.

Foi a partir da publicação de "Estalinegrado", em 1998, que Antony Beevor ficou conhecido mundialmente como escritor, mas o seu primeiro livro sobre conflitos militares data de 1982, ano em que escreveu sobre a Guerra Civil de Espanha. Seguiram-se obras sobre a batalha de Creta e sobre a libertação de Paris. Depois, veio a fama com o conflito entre alemães e soviéticos num dos episódios mais marcantes da II Guerra. O sucesso foi confirmado com o livro sobre a conquista de Berlim, e, agora, com a publicação de "Dia D - A Batalha da Normandia" (Bertrand).

Beevor destaca-se pela facilidade com que relata tácticas e decisões de grande escala (foi militar durante cinco anos) ao mesmo tempo que não se esquece do lado humano. É como se estivéssemos a reviver, de forma privilegiada, momentos da II Guerra, com zooms "in" e "out" sobre o mapa da Europa, aproximando-nos das pessoas ou mostrando-nos o panorama geral. A sua capacidade narrativa, que herdou da época em que se dedicou a escrever ficção, e a influência de John Keegan, um dos mais famosos historiadores da II Guerra ("O Rosto da Batalha"), e seu professor na Academia Militar de Sandhurst, faz com que se leia os seus livros como se estivéssemos um romance nas mãos, com a vantagem de sabermos que estamos perante casos e vivências reais.

Aos 63 anos este britânico, conforme afirmou nesta entrevista por telefone, não tem dúvidas que ainda há muito por escrever sobre a II Guerra. Só é pena que Portugal, enquanto pousada de espiões na II Guerra, não esteja nos seus planos literários, mesmo tendo em conta que o seu pai, membro das forças especiais britânicas, viveu nessa época em Lisboa com o objectivo de organizar a resistência caso a Alemanha invadisse a Península Ibérica, tendo acabado por ser expulso por Salazar.

Foi difícil escrever sobre o Dia D, assunto que já tinha sido tão explorado anteriormente?

O curioso é que não havia nenhum livro sobre isso desde a década de 80, e desde então uma série de novos documentos passaram a estar disponíveis nos arquivos, em França, Alemanha e EUA. Diários, papéis e cartas que as pessoas, ou as suas famílias, ofereceram aos arquivos e museus após a sua morte. Por outro lado, havia também questões que ainda não tinham sido estudadas, como o sofrimento dos civis franceses. Nenhum historiador militar tinha escrito sobre isso.

Um diário ou uma série de cartas são mais importantes do que um documento oficial, ou é o conjunto que permite uma olhar mais próximo do que aconteceu?

Aquilo que tento sempre fazer é integrar a História vista "de cima" com a História vista "de baixo". Porque esta última, como os diários e as cartas, são um pouco como a história oral, não nos dão o contexto. Ao integrar isso com os documentos oficiais consegue-se mostrar as consequências directas das decisões tomadas por Estaline, Hitler ou Churchill nas vidas dos soldados e dos civis apanhados na batalha.

São as duas vertentes que nos dão o conjunto, através dos documentos oficiais e das informações que nos retratam a realidade do momento, com as cartas e os diários. No entanto, fiz questão de não entrevistar nenhum veterano de guerra, porque já passou muito tempo e viram diversos filmes ou leram livros sobre o tema e foram influenciados, alterando as experiências pessoais. 

O que é que o surpreendeu mais ao escrever este livro?

Uma das coisas que mais me surpreendeu foi que os combates na Normandia, e não tanto o Dia D em si, foram muito mais selváticos do que os relatos tinham dado a entender, como as mortes de prisioneiros feitas pelos dois lados e o elevado grau e intensidade dos combates, visíveis pelas estatísticas das baixas.

Depois, foi o enorme sofrimento dos civis. Aqui há um tremendo paradoxo, quando percebemos que comandantes de exércitos de democracias estavam predispostos a matar civis porque havia enorme pressão dos seus países para reduzir as baixas dos soldados. Apostaram mais em bombardeamentos pesados e na artilharia antes de atacarem, o que fez com que houvesse muito mais mortes de civis. 

Logo nas primeiras páginas menciona uma acção de contra-informação, realizada através de um agente alemão colocado no Banco Espírito Santo em Lisboa. Quem era este agente?

Ele não é identificado nos arquivos. Mas o Banco Espírito Santo é conhecido por ter tido simpatizantes da Alemanha, e um deles agiu claramente como agente dos nazis. E esta foi uma forma que encontraram para passar informação falsa aos nazis.

Após a investida aliada, a Alemanha perdeu a ligação terrestre a Espanha e a Portugal. Em que medida é que isso afectou os alemães?

A Alemanha recebia diversas matérias-primas, como o volfrâmio, através das linhas de caminho-de-ferro, e quando o acesso foi cortado, isso fez com as indústrias alemãs ficassem sem essas matérias-primas, o que teve impacto significativo. E essa é uma das razões pelas quais Hitler estava tão relutante em retirar as suas tropas.

Começou a sua carreira de escritor com romances e depois mudou para a não ficção? Porquê essa transição? É mais fácil lidar com factos?

[risos] Não, comecei a escrever romances por engano. Estava no exército, houve uma altura em que estava aborrecido com o que estava a fazer e pensei que, como todas as pessoas da família, do lado da minha mãe, tinham sido escritores, eu também podia tentar. Comecei assim, por acaso, até que os meus editores me desafiaram [a escrever sobre a guerra], ao verificarem que eu tinha conhecimentos militares e que havia poucas pessoas a escrever sobre conflitos com essa experiência. Isso levou ao meu primeiro livro, sobre a Guerra Civil de Espanha, que sempre me fascinou. Além disso, não estava a conseguir viver financeiramente com os romances.

Acho, no entanto, que ter começado por escrever romances influenciou a minha forma de escrever, que tende a ser mais visual. Um escritor tem de escrever um livro que goste de ler. Não acho que se deva escrever para uma audiência. Devemos ser egoístas e escrever para nós próprios. E se as pessoas gostam do que escrevemos, óptimo. Acho que só assim é que um escritor pode ser verdadeiro consigo mesmo.

Porque é que escolheu a guerra para tema dos seus livros? É porque ela mostra o que há de melhor e de pior nos homens ou é algo muito mais simples?

Parte é por causa disso. A guerra é o momento mais marcante na História, socialmente, politicamente ou tecnologicamente. Provoca mais efeitos no curso da sociedade humana do que qualquer outro acontecimento. A guerra é a base das escolhas morais. E a moral é o elemento fundamental do drama humano. Para mim, não houve mais casos de dilemas morais do que no decurso da II Guerra. Todo esse aspecto da humanidade fascina-me.

Quando estava a investigar documentos para o livro sobre Paris após a libertação, demorei vários meses até que as autoridades francesas me dessem autorização para consultar os arquivos da DST [polícia de informações francesa], e li um parágrafo, onde se descrevia a história de uma alemã, mulher de um agricultor, que se tinha apaixonado por um prisioneiro de guerra francês, com quem teve um caso amoroso às escondidas quando ele trabalhou na sua quinta. Quando ele finalmente voltou para a França, ela estava tão desesperada para o voltar a ver que conseguiu infiltrar-se num comboio cheio de prisioneiros de campos de concentração que estavam a ser repatriados para França. Este relato ocupa apenas um parágrafo, mas levanta imensas questões, e foi aí que percebi que não se trata apenas das pessoas que foram feridas ou mortas na guerra. As vidas de todas as pessoas foram alteradas por causa da II Guerra. Para mim, esta foi uma enorme lição, e, de certa forma, moldou a forma como abordo estes temas.

Afirmou que a II Guerra foi o conflito com mais dilemas morais. Porquê?

Foi onde os dilemas e as decisões morais tiveram maior dimensão, comparando, por exemplo, com a I Guerra, que foi uma guerra convencional, entre nações. A II Guerra foi uma guerra civil a nível internacional, tendo a guerra civil de Espanha como primeiro acto. Houve países que se dividiram ao meio, como a França, a Alemanha, com a sua resistência, a Itália e a União Soviética, onde os que odiavam Estaline apoiaram os alemães. Não foi apenas um confronto de nações contra outras nações, mas sim algo mais complexo do ponto de vista humano.

Com a publicação  de "D-Day" parece ter completado um círculo.  Sobre o que é que vai escrever agora? 

Estou a escrever uma história completa sobre a II Guerra, algo que sempre quis fazer. Outro livro vai ser sobre o Inverno de 1944, sobre os combates nas Ardenas, devido ao choque cultural, do ponto de vista dos aliados, da selvajaria dos combates mas também porque foi a última cartada, quase desesperada, de Hitler na frente ocidental.

Então ainda há bastante para ser escrito sobre o tema?

Acho que sim, porque há ainda imensos materiais nos arquivos que ainda não foram explorados. E o fascínio das pessoas não diminuiu. Em 1995, quando se comemorou na Grã-Bretanha o fim da II Guerra, foram publicados muitos livros, mas venderam-se poucos exemplares. Achou-se que as pessoas tinham perdido o interesse. Eu estava a escrever o livro sobre Estalinegrado, e pensei que tinha escolhido a altura errada para o fazer. Mas acabou por haver uma reviravolta. E acho que há uma série de razões que explicam isso. Uma delas é que se escrevia muito do ponto de vista colectivo, e as pessoas estavam mais interessadas no destino dos indivíduos. Houve grandes mudanças com o fim da Guerra Fria e com a entrada numa sociedade pós-militar. Aconteceram muitas coisas de forma rápida, e as expectativas das pessoas face à História começaram também a mudar. Interessaram-se pelo indivíduo, e não na abordagem colectiva dos eventos.

Foi duramente atacado por responsáveis russos após ter escrito o livro sobre a conquista de Berlim. Acha que alguém que escreva sobre a História da URSS teria hoje mais dificuldades do que quem acedeu aos arquivos em meados dos ano 90?

Teria certamente muito mais dificuldades, há muitos arquivos a serem vedados a investigadores estrangeiros. Tudo começou mesmo antes do meu livro sobre Berlim ter sido publicado. Recordo-me de um historiador sueco me ter telefonado a perguntar se eu sabia que as forças policiais, o antigo KGB, estavam a registar todos os documentos que eram vistos por estrangeiros e até a cruzar informações dos vários arquivos, com computadores. Percebia-se que o ambiente estava a transformar-se de forma dramática. Os russos, depois, reagiram ao meu livro, porque estão num estado de negação face ao passado. O ano de 1945 é um tema sagrado para eles, e qualquer crítica ao exército vermelho é... ainda este ano o ministro para os assuntos extraordinários defendeu que qualquer pessoa que criticasse o papel do Exército Vermelho em 1945 devia ser julgado como criminoso, porque era o equivalente a negar o Holocausto. Acho que isso dá uma ideia clara do ambiente. Talvez o que os tenha incomodado mais no meu livro foi o facto da maioria das informações que recolhi sobre as violações em massa terem origem nos próprios arquivos do Exército Vermelho.

A História e a palavra escrita ainda são vistos como ameaças por vários governos, portanto.

Absolutamente. Principalmente quando esse governo está agarrado a um mito forte. A vitória do Exército Vermelho em 1945 é o grande momento de glória da Rússia. Qualquer coisa que diminua o seu impacto tem de ser atacado. Quando se olha para a História, para o sofrimento dos russos e dos soviéticos entre 1917 e 1989, é necessário que esse sofrimento faça sentido, agarrando-se a um momento glorioso, e o ano de 1945 é esse momento. É por isso que o defendem de forma tão desesperada.

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