O método de B Fachada

Foto

Tentámos chegar ao músico através da música. Demos-lhe canções. Calou-se em "God only knows", lamentou a morte de Variações e não reparou em Devendra. Confessou-se herege com Cohen. E não hesitou na resposta à pergunta: Chico ou Caetano?

Devendra Banhart canta a felicidade de saborear um pedaço de fruta em Santa Maria da Feira, mas o Fachada nem o ouve. Fala-nos de José Afonso e de como o incomoda a "utilidade partidária" que põem no "Zeca": "Tem uma perspectiva sobre o mundo, mas nem é excessivamente moralista". Compara: "Ouvir o [Georges] Braessens sem perceber o que ele está a cantar é um bocado chato, porque as músicas são parecidas, agora o Zeca? O Zeca é disco atrás de disco". Devendra continua a balançar lá atrás e Fachada há-de, por fim, reparar nele. Irónico. Taxativo. "Nunca me atraiu a barba e o banho por tomar. Passaram-me algumas coisas, mas nunca fui a fundo". Ri-se: Nunca tive... capacidade".

Ouvimo-lo dizer aquilo enquanto rodávamos disco atrás de disco, investigando os seus fascínios, empatias ou desinteresses (ele é diplomático e não diz "detesto isto", diz "não sinto empatia por"). Queríamos chegar ao músico através de música. O músico ouviu e falou, calou-se quando ouviu "God only knows", dos Beach Boys, entusiasmou-se quando ecoou a voz de Alfredo Marceneiro e nem reparou no Devendra. Mesmo no fim, confessou-se herege. Demos-lhe "Last year's man", do "Songs Of Love And Hate" de Leonard Cohen, ele preferiu que fossemos buscar "I'm Your Man": "Este soa-me demasiado sério. O ‘I'm Your Man' é o Cohen com a leveza necessária para ser Cohen".

Fachada fã

B Fachada acaba de editar novo álbum, homónimo, o sucessor desse "Um Fim-de-Semana No Pónei Dourado" a que chamou disco de Verão. "B Fachada" seria então o seu disco de Inverno. Apesar dos pianos e do tom outonal de algumas melodias, arriscamos que o Inverno será curto para ele. É disco para, pelo menos, um ano inteiro. Não foi dele, contudo, que falámos. Inevitavelmente, a sua música aflorou aqui e ali, mas o que queríamos perceber era o que existe por trás dela. Tínhamos uma teoria. Arriscávamos que, absorvido a tempo inteiro no seu "metiér", Bernando Fachada não ouve música com aquela tipicamente juvenil capacidade de maravilhamento. Ouve-a com os sentidos despertos àquilo que, quer seja uma métrica, uma figura de guitarra, uma inflexão melódica, possa retirar para as suas canções.

Quase no fim, pareceu revelar-se: "Não quero ser um ‘geek' da música. Não sou aquele gajo que sabe o nome de todos os elementos das bandas e que ouviu todas as bandas da editora tal. Estou completamente a leste disso". Isso, desde que não lhe atirem um Caetano para a frente. Não o fizemos. Demos-lhe "Caçada", de Chico Buarque. Ele mordeu o isco, mas apenas para nos arrastar até Veloso. Duas frases entre um e outro: "Tinha e tenho alguns problemas com o Chico Buarque, mas nos últimos tempos tenho estado a fazer as pazes. Sou fã incondicional do Caetano". A partir daqui, não há distanciamento. Querem conhecer o Fachada fã? Falem-lhe do autor de "Tropicália". "Para mim é quase sagrado. Tem aquelas coisas mais pirosas, mas fazem parte. Toda a gente tem coisas que não são para ouvir isoladamente e o Caetano é sempre o Caetano. O que quer que faça, terá sempre o meu aval. Porque ele é a pessoa, a voz, a imagem, o charme, as variações de humor". Na sua galeria de heróis, Caetano é caso único: "Pois, não tenho esta tolerância com outros músicos". "E Chico?", reconduzimos. Pois bem, Chico tem um problema.

A música de B Fachada faz-se de uma lírica surpreendente. Ali descobrimos um contador de histórias desalinhado, um habilíssimo encenador de improváveis. Pega em personagens, lança-as ao mundo e, com inegável prazer, mostra-nos como as banalidades da vida podem ser bem mais ricas e complexas que a ficção. Não existe um subtexto moral que nos permita compreendê-las: existe a "incoerência" que Fachada vê todos os dias e que reconhece em toda a gente. É neste ponto que regressamos a Chico Buarque.

"O meu problema com ele é uma questão de moralismo. Há um excesso de seriedade no Chico e estas coisas, o excesso de seriedade e o moralismo, andam sempre ligadas". Ainda assim, não lhe é imune: "Claro que tem uma coisa que o Zeca também tem. A música começa, eles cantam e uma pessoa esquece-se. Eu ouço as letras, mas ouço a qualidade sonora das letras e o conteúdo deixa de ter importância. O resto que está a acontecer é tão grande que o facto de serem estalinistas ou trotskistas não me faz grande diferença". A questão do moralismo é recorrente em B Fachada.

Grande com as vozes todas

Vejamos, começámos a sessão com "Hunchback", de Kurt Vile, o rock'n'roller "clássico-moderno" que viajará do Porto, onde actua no Maus Hábitos, dia 8, para tocar com ele no dia seguinte, dia 9, no Frágil, em Lisboa. "Gosto disto. Parece que está disfarçado à anos 70. São anos 70 à paisana". Passámos depois para um "clássico-clássico", Bob Dylan. Ao segundo acorde, já Fachada está a soltar uma gargalhada. "Sabia que ia levar com isto". Reconhece-lhe a "grandeza", mas não é "crente". Da América, prefere outras paragens.

"In the neighbourhood", Tom Waits. "Este é grande com as vozes todas", entusiasma-se. "Tem que se ouvir tudo. E o engraçado é que é superaudível em qualquer volume e em qualquer circunstância. Podemos ouvi-lo de fato ou nus. Isso tem a ver também com a postura dele. Não se leva muito a sério e, normalmente, quem se leva muito a sério é obrigado a uma postura que corta outros veículos."

B Fachada até dedicou uma canção, "Zappa português", a um músico que levava muito seriamente a sua iconoclastia e activismo não engajado, mas não confia em máscaras de seriedade. Rodamos "Plastic people" e ele encolhe-se. Aprecia Zappa, ouve-lhe os discos, acha que caberia pelo menos um deles numa discoteca universal de 100 álbuns. "Mas não é pop para consumir, não é digestivo". "Está noutra divisão". Sentença: "Um gajo tem que estar com pachorra para o aturar, não é todos os dias".

Resumindo, não gosta de moralismos e, como tal, prefere quem não se leva demasiado a sério, quem sabe "sabotar-se". Daí preferir o Cohen dos sintetizadores e dos coros femininos ao do depurado a voz e guitarra. "Não compro a ideia do cantautor poeta e não percebo como é que a letra pode pertencer a uma arte erudita e a música a uma popular. No meu caso, nunca existe qualquer pretensão nesse aspecto. As letras cumprem o seu papel, que é serem estruturais na canção."

Assim, não nos surpreende a sua reacção logo que se ouve o primeiro trinado de guitarra portuguesa em "A casa da Mariquinhas", de Alfredo Marceneiro. Maravilha-o o saber e técnica contidos naquela música. Acompanha a canção: "‘Janela com tabuinhas'. A métrica ali é lixada, mas não falha. Marceneiro não falha. Tem um controlo Waitsiano da voz. É o Cesário Verde do fado" - e este, registe-se, é o fado que lhe interessa. "Quem existe hoje? O Camané, claro, e a Ana Moura, numa vertente feminina. De resto, passa-se o tempo a cantar uma ideia de vida. Umas vielas e uma Alfama que já não são a vida mesmo".

Ainda Fachada disserta quando nova canção se faz ouvir. Esta, ao contrário da de Devendra, fá-lo parar. "Visões-Ficções (Nostradamus)". António Variações. É um nome regularmente associado ao seu. "Isso é pela barba e pelo cachecol", diz primeiro. Depois, põe um ar sério: "Cientificamente, é possível eu ser a reencarnação do Variações. Ele morreu no início de 1984, eu nasci no fim de 1984. Foi o tempo de fazer um estágio no céu para ficar heterossexual e regressar". Não, não era a sério.

Seriamente, fala da "infelicidade" do autor de "Anjo Da Guarda": "Morreu demasiado cedo e nunca conseguiu gravar um disco perfeito. O que conhecemos é a infância de uma grande coisa".

Ele queria ser neurótico

Conhecemos melhor B Fachada ao vê-lo ouvir música? Certamente. Os discos sucedem-se e as canções sugerem-lhe que delas fuja ou que com elas divague. Nada de monossílabos, nada de silêncios. Quanto muito, sketches rápidos. Revelemo-los.

Thelonius Monk, "Round About Midnight": "Gosto dos clássicos. Nestas coisas, confio muito na história e não sinto grande necessidade de, por exemplo, investigar os saxofonistas todos à procura de um que seja melhor que o [John] Coltrane, o Pharaoh Sanders ou o Coleman Hawkins".

Jorge Palma, "Na Terra dos Sonhos": "O ‘Só' é um disco que tem de se ouvir de seis em seis meses. Um disco perfeito do Palma. Para muita gente, eu incluído, estas são as únicas versões conhecidas destas canções".

Animal Collective, "Grass": "Sempre que as pessoas me mostram uma ou outra canção acho-os engraçados. Depois vou tentar ouvir sozinho e não resulta. Se calhar é uma música mais social", sorri.

Beach Boys, "God only knows". Aqui, detém-se. "É tudo tão perfeitinho nos discos dos Beach Boys. É incrível, mas nunca há um som fora do sítio". Segue a canção em silêncio. Volta a si e confessa: "O Brian Wilson é incrível. Tenho um bocado inveja de não poder ser um gajo neurótico que se recusa a sair do estúdio".

Com o lançamento do álbum homónimo, Fachada encerra o ano com dois discos editados. Não foram fruto de um fluxo inesperado de inspiração. Tudo trabalho, dir-nos-á.

Antes de se despedir, conta-nos que já tem programado aquilo que fará em 2010. "B Fachada" acabou de sair e ele já está a preparar novas canções e novos cenários para as canções por vir. Não sendo neurótico, tem método muito apurado.

Sugerir correcção
Comentar