A guerra é um estado inerente ao ser humano. É esta terrível assumpção que William Faulkner apresenta em "A Fábula", obra cuja acção, juntamente com a de "Soldier''s Pay" (1926), se situa durante o conflito mundial que decorreu entre 1914 e 1918. Muito antes de Saramago e de Mailer terem usado os Evangelhos para as suas ficções didácticas e morais, já este escritor americano pegava no episódio da Paixão de Cristo para ilustrar a sua visão sobre os conflitos eternos que afligem os seres humanos. E, aparentemente sem polémica, este livro longo e complexo, que o autor começou em 1943 e só terminou 11 anos depois, aparece agora em Portugal.
A intermitência da escrita ao longo de uma década agitada poderá explicar esta composição que se assemelha a uma montagem cinematográfica, suportada pela narrativa dispersa, repetitiva e por vezes confusa, entrecortada por imagens fulgurantes de beleza mas, também, por monótonas descrições como as que são dedicadas a tudo o que está relacionado com o Exército: patentes, pormenores de fardas e de equipamento, instalações militares, regras, disciplina, gestos, rotinas, etc. (uma nota: embora se perceba o cuidado da tradutora, o excesso de notas de rodapé dificulta a leitura). No entanto, a sempre iluminada escrita de Faulkner confere algum brilho a esta história passada em 1918 quando a carnificina e o horror já se tinham tornado banais e o Regimento de Infantaria do General Gragnon recebe ordens para lançar um ataque injustificável, tanto estratégica como defensivamente. O absurdo da situação desencadeia um motim e um grupo de homens, liderado por uma figura misteriosa semelhante a Jesus Cristo, recusa-se a prosseguir, o que obriga Gragnon a ordenar que os resistentes sejam fuzilados. Entretanto, e até ao dramático final, uma série de acontecimentos invulgares irá pontuar a acção: os alemães não mostram disposição para lutar - há disparos isolados para alvos não detectáveis - e uma bizarra quietude estende-se a todas as tropas, ingleses e americanos incluídos. Um sentimento de irmandade na desgraça perpassa as fileiras de um e outro lado, enquanto os oficiais tentam resolver a "crise" provocada por esse estado de não-guerra que eles não conseguem gerir (de notar a ironia de Faulkner na referência aos portugueses e espanhóis: os primeiros iriam para a guerra pela "excitação" de saírem do "buraco" onde viviam e os segundos nem lá chegavam porque eram demasiado pobres e não tinham dinheiro para a viagem). Faulkner é magistral a descrever as subtis oscilações de humor entre os homens, a inquietação e o medo, as ordens contraditórias, os boatos, a hesitação de alguns, a descrença, a indiferença e a incredulidade de outros. No ambiente fantasmagórico que se instala, um general alemão apanha um avião para conferenciar com os seus congéneres aliados, há quem se inquiete por ainda não ter ganho nenhuma medalha - como voltar a casa sem condecorações? - e existem rumores de que os instigadores do cessar-fogo percorrem a "terra de ninguém" para levar mensagens de paz aos alemães. ("Um foi suficiente para dizer ''basta'' há dois mil anos. Tudo o que precisamos de fazer é limitarmo-nos a dizer: ''Já chega disto''". pág. 61). Faulkner mantém a acção colada aos acontecimentos da semana da Paixão de Cristo: o agitador recusa a ajuda do próprio pai/Deus - o Generalíssimo dos Exércitos -, é traído por um dos companheiros, executado juntamente com ladrões e, depois de ter sido sepultado pela família, a terra aparece revolvida ao ser atingida por uma carga de artilharia que revela um caixão estilhaçado e... vazio. "A Fábula" teve uma enorme influência na literatura de guerra - ressalve-se o famoso "Catch 22" de Joseph Heller (1961) - mas não é exactamente uma "fábula", uma vez que Faulkner subverte o género, partindo de máximas e reflexões filosóficas e utilizando as personagens como peças de um "jogo" no cenário claustrofóbico das trincheiras, onde se passa grande parte da acção, retirando-lhes espessura e esbatendo-lhes os contornos. Entre a lama e a sujidade, arrastados por multidões cegas ou sob as ordens de poderes cegos, muitos dos intervenientes nesta tragédia não têm nome, sendo reconhecidos pela sua patente (o major, o sargento, o cabo) ou pela sua função (o estafeta, o oficial de dia, o ajudante de campo, a sentinela). Aqui, como em outros dos seus livros, Faulkner deixou um testemunho indelével da sua visão da condição humana, influenciada, segundo os estudiosos da sua obra, por Henri Bergson que via na intuição e não na análise exaustiva a forma de chegar à verdade e à essência do "mundo real". O conceito de élan vital apelava directamente ao idealismo do escritor, um homem permanentemente dividido entre convicções opostas, entre a estabilidade familiar e o apelo das aventuras eróticas, entre a sobriedade e o excesso, entre o Sul e o Norte, entre a ascensão social (consequência do progresso) e os velhos ideais heróicos da honra e do orgulho.
Apesar dos prémios que recebeu, este livro não é dos mais bem conseguidos de Faulkner, impondo-se, no entanto, como um poderoso manifesto anti-guerra, atravessado por imagens épicas que nos remetem para as palavras do autor no seu discurso de aceitação do Prémio Nobel: "Acredito que o ser humano não se limita a sobreviver e para sempre viverá, vencendo. Ele é imortal não porque, entre todas as outras criaturas, possui uma voz que nunca se extinguirá mas sim porque é dono de uma alma, de um espírito, capaz de compaixão e de sacrifício".