Um enigma chamado Hitler

O principal mérito da obra de Kershaw reside numa série de interpretações sugestivas para as grandes perplexidades suscitadas por Hitler e o III Reich.

Em meados da década de 90, o historiador John Lukacs estimou em mais de 100 as biografias dedicadas a Hitler desde o fim da II Guerra Mundial, algo que acabaria mesmo por motivá-lo a escrever um ensaio inteiramente consagrado a esse filão historiográfico ("O Hitler da História", 1997). Mais de dez anos volvidos, o ensaio de Lukacs bem merecia uma adenda, de tal forma notável tem sido o crescimento dos estudos biográficos centrados no ditador alemão ou em aspectos das suas políticas, assim como as polémicas suscitadas por algumas dessas obras, dentro e fora da academia (é o caso dos recentes processos judiciais que envolveram o historiador revisionista britânico David Irving, ou das teses de Daniel J. Goldhagen sobre o Holocausto e a responsabilidade colectiva dos alemães).

Na última década, todavia, a obra que maior notoriedade alcançou, tanto junto do público como da crítica especializada, foi, indiscutivelmente, a biografia em dois volumes assinada pelo historiador britânico Ian Kershaw: "Hitler, 1889-1936: Hubris" (1998) e "Hitler, 1936-2000: Nemesis" (2000). Pelo seu fôlego interpretativo e impecável erudição, os dois volumes originais foram quase universalmente aclamados como a biografia de referência de Hitler, estatuto que até então nunca havia sido reconhecido às obras de outros autores conceituados, como Alan Bullock, John Toland ou Joachim Fest. É a versão condensada desses dois volumes que agora chega até nós, sob a chancela da Dom Quixote/Leya.Num terreno tão esquadrinhado como a história do Nacional-Socialismo, dificilmente se esperariam revelações sensacionais sobre a figura de Hitler. É verdade que nos últimos anos alguma documentação inédita (os apontamentos de Himmler ou os diários completos de Goebbels, por exemplo) tem ajudado os historiadores a suprir lacunas, mas não é por aí que a biografia de Kershaw justifica os elogios de que foi alvo. O seu principal mérito reside na capacidade de oferecer uma série de interpretações sugestivas para as grandes perplexidades suscitadas por Hitler e o III Reich. Como foi possível a um demagogo de cervejaria ascender à liderança de um dos estados mais sofisticados da Europa? Como é que a sociedade alemã se deixou hipnotizar pela sua ideologia e o seguiu fanaticamente até ao abismo? Porque foram tão débeis as tentativas de resistência ao seu projecto quando este ainda não se encontrava consolidado? Um dos aspectos mais conseguidos da abordagem de Kershaw prende-se com o seu cuidado em nunca perder de vista a relação instável entre as possibilidades das acções dos indivíduos, por um lado, e os limites impostos por forças mais impessoais (aquilo que no jargão das ciências sociais é conhecido como o binómio "agência/estrutura"), por outro. Como o autor escreveu na introdução ao primeiro volume da edição inglesa, a carreira de Hitler parece ilustrar de forma exemplar a famosa sentença de Marx, segundo a qual os homens fazem a sua própria história, mas dentro de certas condições.

É essa perspectiva que lhe permite superar a dicotomia enganadora sugerida pela querela entre "intencionalistas" (para quem a história do nazismo poderia ser escrita como a execução das intenções ideológicas de Hitler) e "funcionalistas" (que vêem Hitler como um "ditador fraco", porque manietado pelo "funcionamento" de um caótico sistema de governo). Em alternativa, Kershaw propõe uma síntese em que as responsabilidades pessoais de Hitler na governação do regime e na formulação e implementação das suas políticas estão bem delimitadas, sem que isso apague a importância das dinâmicas geradas pelas estruturas do poder nacional-socialista.

Segundo Kershaw, é altamente improvável que sem Hitler a história da Alemanha levasse a direcção que levou após 1933: nenhum dos seus sequazes reunia os atributos que lhe permitiram assumir a liderança incontestada do movimento nacional-socialista, e, num segundo momento, capturar as alavancas do poder de Estado. Kershaw recorre ao sociólogo Max Weber e ao seu conceito de "autoridade carismática" para explicar os laços de natureza quase mística que Hitler forjou com os alemães. Tendo feito a sua aparição numa conjuntura especialmente dramática da história germânica, Hitler foi capaz de articular uma visão que respondia a anseios e expectativas de amplos segmentos de uma sociedade onde o culto de figuras "heróicas" estava há muito enraizado.

As componentes essenciais da Weltanschauung (cosmovisão) hitleriana eram a "remoção" dos judeus da comunidade nacional, um anti-comunismo virulento, a procura de um "espaço-vital" para a nação alemã, e a explicação do devir histórico a partir da ideia de confronto racial. Para reencontrar a sua coesão, a nação alemã teria de expulsar os elementos "impuros" e "malignos"; a partir de então, o caminho para a redenção estaria aberto. O facto de Hitler ter sempre mantido um certo grau de imprecisão acerca destas noções (e das suas implicações directas) não é suficiente para exonerar os alemães que colaboraram com o regime das suas responsabilidades morais - o extermínio em massa dos judeus poderá apenas ter sido desencadeado após 1941, mas as manifestações públicas de anti-semitismo adquiriram contornos selváticos logo após a chegada de Hitler ao poder. Como observou um dia a escritora Christa Wolf, qualquer alemão que quisesse inteirar-se sobre a barbaridade do regime nacional-socialista teria apenas de ler os jornais.

Na verdade, a biografia de Kershaw demonstra como seria ilusório reduzir o nazismo ao hitlerismo. A dominação de Hitler dependeu da propensão dos alemães para lhe reconhecerem qualidades heróicas, se identificarem com o seu projecto redentor e renunciarem à ideia de qualquer espécie de limitação legal ou institucional ao poder do Führer. No seu estilo distante, Hitler presidia a um regime em que a anarquia burocrática era a lei. As mesmas tarefas estavam muitas vezes adjudicadas a departamentos distintos, o que favorecia uma competição desenfreada para ver quem melhor conseguia cumprir a "visão do Führer". Daqui resultaram certas iniciativas que, inspiradas ou sugeridas por Hitler, pareciam depois adquirir uma dinâmica própria, como foi o caso do célebre programa de eutanásia massiva posto em marcha em 1939. "Trabalhar em prol do Führer", um conceito articulado pelo secretário do Ministério da Agricultura do governo da Prússia em 1934, torna-se assim crucial para perceber a "radicalização cumulativa" de determinados aspectos do III Reich, nomeadamente aqueles que diziam respeito às políticas raciais, incluindo as que desembocaram na "Solução Final".

Um objecto de estudo como este coloca sérios desafios ao historiador que, privilegiando a compreensão sobre o julgamento, não quer todavia contribuir para relativizar as acções de alguém como Hitler. Com notável equilíbrio, Kershaw encontrou um registo que combina isenção, subtileza e ponderação - e até mesmo um esforço mínimo de empatia - com uma ênfase persistente nas consequências criminosas do seu projecto de poder.

Embora a opção da editora portuguesa pela versão abreviada da obra de Kershaw seja compreensível - a exiguidade do mercado português dificilmente compensaria o investimento exigido pela tradução de mais de 2000 páginas -, ela priva-nos infelizmente de todo o trabalho de contextualização que a edição original oferece. Ainda assim, o leitor tem aqui uma excelente introdução a uma personagem que, ao que tudo indica, continuará a interpelar a nossa consciência por muito tempo ainda.

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