Quando os anos 80 decidiram ter consciência social

Com muita laca ou permanente, maquilhagem e chumaços nos ombros, estrelas da música pop desfilaram por um estúdio de Londres para gravar Do They Know It"s Christmas em apenas um dia. O esforço da Band Aid conseguiu milhões contra a fome na Etiópia

Há 25 anos, ainda Bono tinha cabelo comprido e não usava óculos escuros, ainda Phil Collins estava a transformar-se de baterista dos Genesis em cantor de baladas, ainda Sting não era conhecido pelas tiradas sobre meditação e Bob Geldof não era sir - há 25 anos, foi lançado o single Do They Know It"s Christmas? que juntou algumas das maiores estrelas britânicas e irlandesas da altura.

Cantores e músicos de superbandas como Duran Duran, Spandau Ballet ou Wham!, mais associadas à superficialidade do que a causas profundas, juntaram-se para uma iniciativa inédita: conseguir ajuda para lidar com uma catástrofe humanitária.

O músico português Luís Represas lembra-se bem do fenómeno Band Aid: "Foi uma das coisas mais fantásticas e novas no mundo inteiro", recorda, numa conversa telefónica com o P2. "Um grupo de músicos de renome internacional juntar-se em nome de uma causa à partida longínqua, descer do seu pedestal e juntar-se para um projecto até então inédito, foi incrível", diz Represas.

Tudo começou com uma reportagem da BBC sobre a fome na Etiópia. Bob Geldof viu as imagens de crianças vítimas da fome - "uma fome bíblica no século XX", como descreveu o jornalista da emissora britânica, que fez cerca de um milhão de mortos.

Depois dessas imagens, Geldof escreveu a letra da música e Midge Ure, dos Ultravox (que tinham tido em 1981 o seu maior êxito com o tema Vienna), compôs a música.

Os dois convenceram 43 vocalistas e músicos de bandas como Spandau Ballet, Duran Duran, Wham!, U2 ou Status Quo, e artistas como Sting, Paul Young ou Paul Weller, a fazer parte da Band Aid (o nome era um trocadilho com a palavra inglesa para "penso rápido", também querendo dizer que a ajuda conseguida seria como colocar um penso rápido numa ferida profunda). Geldof até conseguiu que Boy George voasse dos Estados Unidos, onde estava numa digressão com os Culture Club, para participar no projecto.

Juntaram-se ainda David Bowie e Paul McCartney, que gravaram e enviaram as suas participações (o verso inicial tinha sido escrito para David Bowie, mas o músico acabou por participar apenas nos coros).

24 horas no estúdio

O prazo foi apertado: um dia para gravar. A 24 de Novembro, Ure e Geldof usaram o estúdio do produtor Trevor Horn, em Londres, por onde desfilaram as estrelas da altura para cantar e tocar - do verso inicial cantado por Paul Young "It"s Christmas Time..." até ao coro-pedido: "Feed the World".

Bono começou por se recusar a cantar um dos versos que lhe cabia "And tonight thank God it"s them instead of you", mas Bob Geldof acabou por convencê-lo. "Ainda hoje não gosto do modo como soa", confessou recentemente a agora superestrela.

Já Boy George, que vinha de propósito dos Estados Unidos, só chegou ao estúdio às seis da tarde para gravar a sua voz.

Ure e Geldof acabaram de misturar o tema no dia seguinte e foram levá-lo às rádios. "Este disco foi gravado a 25 de Novembro de 1984. São agora oito da manhã de dia 26. Estamos aqui há 24 horas e acho que é altura de irmos para casa", disse Geldof numa mensagem gravada.

A 29 de Novembro de 1984, o single chegou às lojas e foi directamente para o número um do top de vendas. Começava a trajectória impressionante do êxito Do They Know It"s Christmas?, que foi durante anos o single mais vendido no Reino Unido (até ter sido destronado pelo hino de Elton John à princesa Diana, Candle in the Wind, em 1997). Resultado: cinco milhões de libras (ao câmbio actual, cerca de 5,5 milhões de euros) para ajudar a combater a fome.

A gravação do tema dos Band Aid foi seguida de iniciativas como o Live Aid - organizado por Geldof e Ure, que juntou, a 13 de Julho de 1985, 72 mil pessoas no Estádio de Wembley, em Londres, e 90 mil no Estádio JFK, em Filadélfia - ou a gravação do tema We are the world pelo grupo USA for África.

Mais tarde foram ainda gravadas mais duas versões de Do They Know It"s Christmas?, em 1989 e 2004, e houve também a reedição do Live Aid, o Live 8, em 2005. O fundo estabelecido pela Band Aid Trust ainda rende cerca de dois milhões de libras por ano.

O regresso à Etiópia

A ajuda do penso rápido foi mesmo isso - ajuda de emergência. As causas permanecem: "A realidade é que este problema foi criado pela política e apenas a política o pode resolver", dizia Bob Geldof na altura do Live 8, em 2005.

Hoje, a Etiópia está a atravessar a pior crise alimentar desde a grande fome de há 25 anos. O país já pediu ajuda de emergência para 6,2 milhões de pessoas. E o Programa Alimentar Mundial estimava, em Outubro, que fossem precisos cerca de 190 milhões de euros de ajuda nos próximos seis meses.

A causa mais imediata são as secas, mas também as políticas que mantêm os agricultores em terrenos do Estado, explica o analista da BBC Martin Plaut. Os terrenos vão sendo subdivididos e as parcelas são tão pequenas e sobreexploradas que nem com condições normais seriam suficientemente produtivas. O problema é agravado com a subida de preços dos alimentos.

Midge Ure voltou à Etiópia marcando os 25 anos sobre o Band Aid - o compositor tinha viajado ao país para acompanhar a entrega da primeira leva de ajuda após o Band Aid. "É desesperadamente triste ver crianças esfomeadas na Etiópia de novo", disse Ure ao jornal britânico Sunday Telegraph durante a viagem, que fez no final de Outubro.

Bob Geldof também regressou ao país, há apenas alguns dias. Foi recebido por uma mistura de jovens e sobreviventes da fome de 1984, conta a AFP. "O que se passou aqui tocou profundamente todos os seres humanos fora da Etiópia", declarou Geldof, que visitou ainda o local para onde está previsto um hospital que será construído com ajuda de vários organismos, incluindo verbas do Band Aid.

Abraço a Moçambique

O projecto Band Aid deu origem a uma catadupa de outras iniciativas - na América Latina, Canadá e em vários países europeus da Noruega à Alemanha, passando por Portugal. Em 1985, vários artistas portugueses, de Luís Represas a Tonicha, de Carlos Mendes a Lena D"Água, de Sérgio Godinho a Rui Veloso, de José Mário Branco a Paco Bandeira, participaram no tema Abraço a Moçambique, conduzido pelo maestro Pedro Osório: "Vamos abrir outro mar/Fazer a ponte cá dentro do peito/Dar um abraço que é dado a cantar/E o mar fica assim mais estreito", era o refrão.

"Foi fantástico", lembra Represas. "Acho que nunca nos tínhamos juntado todos." Sem a pressão das 24 horas do Band Aid original, Luís Represas recorda que a gravação foi como uma festa.

Já em relação ao que resultou do esforço, não faz a mínima ideia dos fundos arrecadados. "Na altura, as coisas eram muito puras e ingénuas, fizemos aquilo de coração aberto e não passava pela cabeça de ninguém que pudesse haver aproveitamento. Não faço mesmo a menor ideia, mas mesmo que tivesse dado dez tostões já tinha valido a pena." A par da ajuda conseguida, também é importante que a música tenha conseguido colocar Moçambique na ordem do dia, diz Represas.

Quanto ao projecto Band Aid, apesar das boas intenções, não foi isento de críticas. Houve quem apontasse o dedo a visões simplistas de África como um todo ("where nothing ever grows" - "onde nunca nada cresce"), houve quem criticasse o facto de a ajuda ser dada sem uma palavra para o regime ditatorial etíope, que gastava metade do seu orçamento em bens militares. E houve ainda quem objectasse à qualidade da música, como Morrisey, então vocalista dos The Smiths: "Pode-se ter grande preocupação pelo povo da Etiópia, mas é diferente infligir tortura diária ao povo de Inglaterra. Foi um disco horrível, considerando a massa de talento envolvida."

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