Arquitectura ao ritmo do samba para salvar a favela

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Na rua, os moradores ouvem explicações sobre os protótipos de casas que os arquitectos criaram dr

Demolir favelas ou grandes bairros de lata não é o caminho, diz o arquitecto português Filipe Balestra. A sua experiência no Brasil e na Índia prova que é possível intervir nesses bairros - ele chama-lhes "aldeias urbanas" - e melhorá-los. Seja fazendo nascer uma escola, como na favela da Rocinha, seja construindo 1200 casas novas, como fez na Índia

Vista de longe, a Rocinha, no Rio de Janeiro, é um amontoado de pequenas casinhas que sobem, incertas e apoiadas umas nas outras, pelo morro acima. A favela "é como o coração de mãe, cabe sempre mais um", resume um dos moradores, no vídeo que o arquitecto português Filipe Balestra, de 27 anos, fez para o seu trabalho de fim de curso para uma universidade de Estocolmo.

Foi no meio desse emaranhado de casas, onde nem se vislumbra o espaço de uma rua, que Filipe construiu uma escola. Ele chama a uma intervenção como esta arquitectura-acupunctura, e num mapa mostra um pequeno ponto cor-de-laranja perdido no meio das casas: a escola. É a terceira escola que nasce na Rocinha, onde vivem perto de 300 mil pessoas.

Sentado num café de Lisboa, Filipe abre o computador e aparecem as imagens da favela do Rio. E, onde outros veriam um espaço caótico a precisar de ser demolido, ele, entusiasmado, vê "redes sociais fortíssimas, laços familiares, amizades". Em vez de uma favela vê uma "aldeia urbana". E é por isso que defende a preservação desta "arquitectura sem arquitectos": "Em vez de deitar abaixo e construir aqueles blocos modernistas, repetitivos, completamente impessoais, nós queremos melhorar a qualidade a pouco e pouco com a ajuda dos moradores."

Numa altura em que a violência aumentou no Rio - em Outubro um conflito armado entre traficantes e polícias alastrou a várias zonas e saldou-se em mais de uma dezena de mortos, vários feridos, autocarros incendiados e até um helicóptero da Polícia Militar derrubado a partir de uma favela, numa prova de que os traficantes têm armas cada vez mais potentes - Filipe Balestra acha que é preciso cuidado na leitura da situação. "É claro que sou contra o tráfico de droga e de armas, mas admito que se os traficantes não tivessem armas tão boas a polícia, o mercado imobiliário, os políticos, iriam tirar dali as favelas para construir hotéis e habitações."

A pressão a que as favelas estão sujeitas é enorme, diz. Muitas delas estão no centro da cidade, em zonas privilegiadas, com vista para o mar. "A história das favelas tem sido de demolição e realojamento. Neste momento, se o Rio cometer um erro desses, isso vai sair mais caro à cidade do que melhorar a favela", garante. Até porque realojar aquelas pessoas nos subúrbios é mandá-las para sítios que hoje já estão a seis horas do centro. "Eles precisam de estar perto dos locais de trabalho, e a classe alta, em cujas casas muitos deles trabalham, também está habituada a tê-los perto."

Coisa para ricos...Melhorar a favela significa a tal intervenção tipo acupunctura. Mas vamos então voltar ao início desta história e perceber como é que Filipe Balestra foi parar à Rocinha. Se calhar o melhor é recuar para um tempo ainda longínquo, quando Filipe ainda não era nascido e o pai era um estudante de Arquitectura no Portugal do 25 de Abril. Com o país mergulhado na revolução, o pai de Filipe achou que, se queria acabar o curso, o melhor era fazê-lo no Brasil. Aí "apaixonou-se pela professora de Urbanismo" e Filipe nasceu. Quando era pequeno, voltou para Portugal, estudou em Edimburgo, foi para a Holanda trabalhar e, por fim, foi parar a Estocolmo, onde apresentou a proposta para o trabalho de fim de curso, que o levou de regresso ao Brasil.

Com a experiência que tinha "sentia que a arquitectura era uma coisa para ricos, enquanto um terço do mundo urbano é pobre". Escreveu e-mails para duas ONG da Rocinha dizendo que gostava de construir uma escola, e uma delas, o Instituto Dois Irmãos, respondeu-lhe: "Pode vir, já temos o terreno e algum dinheiro." O terreno era mínimo (a única rua de acesso tinha 1,2 metros de largura), entalado entre outras casas, e o dinheiro curto, 12 mil dólares (pouco mais de oito mil euros). Mas o entusiasmo não faltou - Filipe mostra as fotografias em que aparece ao lado de um pedreiro, a construir a casa com as próprias mãos. Tudo foi discutido. A cor, por exemplo: os rapazes queriam azul, as raparigas cor-de-rosa. Ficou amarelo.

Ainda o edifício não estava pronto e já havia aulas, tal era a pressa dos moradores da Rocinha de verem a nova escola a funcionar. Hoje, diz com orgulho, há cerca de 60 pessoas a terem aulas por dia, crianças de manhã e à tarde, aulas de alfabetização para adultos à noite.

"Noventa e cinco por cento dos que moram na Rocinha não têm nada a ver com tráfico de droga. São motoristas, faxineiras, trabalham na construção civil, não merecem ser catalogados como uma parte infectada da cidade." Esta catalogação, segundo o arquitecto, tem a ver com outros interesses, sobretudo os imobiliários. "Isto tem muito a ver com o facto de o Rio ter sido escolhido para os Jogos Olímpicos e o Mundial de Futebol. Há muito dinheiro a entrar na cidade. Como é que é distribuído? São teias sociais muito complexas e é muito difícil saber quem é o bom e quem é o mau."

"Vem para a Índia trabalhar"

A vontade de trabalhar em "aldeias urbanas" levou-o em seguida à Índia. Contada por ele, a história parece simples: "Um dia ouvi uma conferência em Estocolmo em que um senhor velhinho [Jockin Arputham, da National Slum Dwellers Federation] estava a falar aos suecos sobre como é viver numa favela onde é preciso dividir uma sanita com 400 pessoas. Eu apresentei-me e mostrei-lhe o projecto Sambarquitectura [da Rocinha], ele gostou imenso e disse: "Vem para a Índia, tenho trabalho para ti"." Foi com a mulher, Sara Göransson, também arquitecta, e as fotografias que desfilam agora pelo ecrã do computador mostram o mundo que encontraram em Pune, a 200 quilómetros de Bombaim.

Um bairro da lata, sim, mas sem a violência, o tráfico de droga ou a tensão das favelas brasileiras. E um grupo de mulheres sorridentes, as Mulheres Unidas, que os ajudaram em tudo. Outra diferença: aqui havia dinheiro do Estado, 4500 euros para cada família, para reabilitar cada casa, exigindo-se, em contrapartida, que a família contribuísse com 10 por cento do orçamento. "Muitos não tinham meios para conseguir os 450 euros e nós, com a Mulheres Unidas, propusemos uma alternativa, em que as pessoas ajudam a demolir a barraca e a construir a nova casa e com esse suor dão os dez por cento. Ao fazerem parte da construção, as pessoas são donas do processo e vão tomar melhor conta da casa."

Processo mais participado era impossível. Nova fotografia no ecrã: Filipe, Sara e mais alguns amigos portugueses sentados no chão a cozinhar com amigos indianos do bairro ("isto não tem nada a ver com arquitectura, mas tem tudo a ver com arquitectura", diz, sorrindo). E outra: os moradores - muitas mulheres, com roupas coloridas - reunidos na rua a ouvir explicações sobre os três protótipos de casas que os arquitectos criaram, uma com loja por baixo, outra com um espaço aberto a meio, e outra mais pequena mas com possibilidade de crescer.

Os modelos passam de mão em mão. Como não é evidente para todos a dimensão que as casas terão quando estiverem prontas, os arquitectos inventam um sistema com fios esticados no meio das ruas do bairro, para mostrar o tamanho real das casas. Depois as Mulheres Unidas tomam nota dos pedidos - ao todo, 1200 casas vão ser reconstruídas. Em tudo se poupa: em vez de fazer quatro colunas para cada casa, constroem-se duas casas lado a lado, partilhando a estrutura, e usam-se apenas seis colunas. O dinheiro que sobra pode ser usado como os moradores decidirem em conjunto.

Arquitectura sem limites

Mais uma vez é a acupunctura em acção: as casas que têm boas condições não serão tocadas; as que são realmente precárias serão substituídas por um dos modelos propostos. Depois, sublinha Filipe, "como os indianos são muito criativos, não haverá duas casas iguais, porque um vai querer pintar a sua de azul, outro de amarelo, outro de outra cor."

Já ouviu, de arquitectos e críticos, que o que está a fazer "não é arquitectura". Mas isso não o incomoda. "Então não é, tudo bem. O que importa é o que as comunidades querem, o que é possível fazer, e que resulta de uma comunicação directa entre a comunidade e os arquitectos." E a comunidade não tem necessariamente que ser pobre. "Quero ser o arquitecto das favelas mas também o da cidade formal, trabalhar para pobres e para ricos, fazer pontes, isso sim, é democrático."

Para Filipe, "é muito mais interessante falarmos de arquitectura sem definir limites - senão a arquitectura tranca-se sobre si própria e eu estou mais interessado em usá-la como instrumento para a evolução da cidade". Uma evolução em que a favela é para salvar e não para destruir. Porque "é na favela que nasce o samba, o Carnaval, a capoeira, a feijoada". E, afinal, isto é sambarquitectura.

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