Kimi Djabaté merece ser uma estrela

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Tem 34 anos anos, chegou a Portugal, vindo da Guiné-Bissau, em 1995 - 14 anos depois ainda se refere à sua aldeia no presente: “Não temos electricidade até hoje” Rita Carmo

Durante anos, guitarrista e balafonista com voz de excepção, deu concertos obscuros em salas minúsculas de Lisboa. Até que uma editora americana o descobriu. Agora explode no mundo da "world music". Mas não esqueceu a Guiné-Bissau natal.

No mundo do espectáculo ter um nome é tudo. Sem nome não há concertos nem discos. Não se existe. É o mesmo que estar morto. Na prática, que significa o nome Kimi Djabaté? Um pequeno conjunto de irredutíveis segue-o a cada concerto, em salas minúsculas, umas vezes a solo, outras acompanhado por Braima Galissa, mestre da kora e um terço do excelente combo Tafetas, mas 99 por cento dos portugueses não fazem ideia de quem seja.

Mas agora a hora dele chegou.

Depois de um primeiro disco, "Tereké", que não o deixou contente por ser "muito ocidental" e com excessivo pendor "comercial", esperou, trabalhou e a sorte chegou: "Karam", o segundo disco deste nativo da Guiné-Bissau radicado há muito em Lisboa, é uma pequena maravilha.

E desta feita não é uma maravilha só para meia-dúzia de sortudos que o seguiam: o disco, diz Djabaté, "está distribuídos em África, na Europa, nos Estados Unidos da América". Porque por trás de "Karam" está uma das mais interessantes editoras de "world music": a Cumbancha.

"Tive muita sorte", dizia-nos Kimi há dias, numa esplanada do Chiado, em Lisboa. "Estava a tentar ao mesmo tempo editar por cá quando Jacob Edgar, da editora, se interessou pelo meu trabalho." Segundo João Rolo, responsável pela Leve Music, distribuidora da Cumbancha em Portugal, Kimi é "o primeiro nome numa nova série da Cumbancha, a série Discovery, que apresenta novos nomes".

Agora as coisas estão a mudar para Djabaté: no dia 16 ia "viajar para França para fazer um concerto". Tinha a impressão que se tratava de "uma apresentação para a imprensa", mas não sabia bem: ainda não está habituado a tratar desse detalhes. João Rolo confirma que sim, e que entre os media presentes estavam confirmados pesos pesados da escrita "world" como "Mondo Mix", "Songlines" e "Folk Roots".

Nenhuma destas revistas vai às cegas: "Karam" começou a ser editado internacionalmente no Verão, e as reacções estão a ultrapassar as melhores expectativas: a "Billboard", o "Boston Globe", o "Finantial Times" e a BBC3 cobriram-no de elogios. Na tabela de vendas da World Music Charts Europe, "Karam" surge este mês em terceiro lugar.

Mas mesmo perante tudo isto, quando perguntámos a Kimi se temia a importância da actuação, ele atirou sem pensar duas vezes: "Não estou nervoso. Tocar é uma coisa que me dá mesmo muita alegria - se não ouvir música não consigo dormir."

Raízes

A razão do sucesso actual de Djabaté pode explicar-se por ter uma editora forte por trás, mas também pela recusa em voltar a fazer um disco como o primeiro: "Karam" é todo raízes e as raízes de Kimi estão-lhe na garganta, sempre a saltar cá para fora em conversa.

Tem 34 anos anos e chegou cá em 1995. Sempre fez música. Uma frase é sintomática: "Nem sei com que idade comecei". Kimi, "com um ou dois anos já tinha um balafon [espécie de xilofone] pequenino". Diz que "desde pequenino" está "habituado a carregar o balafon às costas".

Isto porque é "de uma família griot", o que na cultura mandinga significa que é o portador da tradição musical. Os griots cantam a vida dos seus e são respeitados por isso. A sua aldeia, conta, tem "apenas cento e poucas pessoas e são todas griot".

A aldeia de Kimi chama-se Tabeto, fica entre Bafato e Dabo, leste da Guiné-Bissau, e ele ainda lá vai "sempre que possível". 14 anos depois de ter chegado a Portugal ainda se refere à aldeia no presente: "Não temos electricidade até hoje".

Em miúdo "tinha um rádio, que usava com pilhas ou ligado a baterias de carro" e "ouvia blues, jazz, gumbé ou afro-mandinga", que é o tipo de música que ele faz. Mas também "ouvia morna", porque "também há morna gineense" e "ouvia muito kussundé". Também ouvia "um pouco de pop", mas isso é que "[o] interessa menos".

A vida não era fácil em Tabeto e Kimi não esqueceu a dureza. Durante o período das chuvas, "que era três meses por ano", faziam agricultura. "O resto do tempo vamos de aldeia em aldeia ganhar dinheirinho". "Vamos", diz.

Kimi encontrou forma de pertencer ao Ballet Nacional da Guiné, e "numa ida a França para fazer actuações" resolveu "ficar lá, com uma prima que já lá vivia. Isto em 1995".

A ideia de Kimi era juntar-se a outros como ele. Mas correu mal. "Lá não encontrei músicos guineenses. Sempre tive intenção de encontrar griots - e não encontrava, porque estavam todos em Portugal". É bom que tenhamos noção disto, em particular porque França é tida como país por excelência de emigração dos griots: "Estavam todos em Portugal". Quantos deles se tornaram conhecidos? Nenhum.

Kimi encontrou "um bom país para viver, calmo e com uma língua comum". A música, no entanto, não lhe seria suficiente para viver se não fosse o seu estatuto de nascença.

"Como griot há pessoas que me dão dinheiro só pela minha presença. Se for convidado para um casamento, mesmo que não toque recebo dinheiro". Além disso há pessoas que lhe "pagam 100 euros ou 200 para fazer uma canção". Escreveu para Badji, também para Dabo, e Mamas Samba.

"Por enquanto felizmente não tive de lavar pratos. Pude dedicar-me exclusivamente à música".

Em família

Mas mesmo que hoje vista um belo sobretudo e um belo cachecol às riscas, o mundo de Djabaté ainda é a Guiné-Bissau. A canção que dá nome ao disco, "Karam", fala do mundo que viveu, "do sofrimento do povo guineense, da miséria. O povo não está feliz, falta-lhes muita coisa". Por todo o disco estão temas como a "Guiné, o sofrimento da [minha] mãe, a Guerra, a desigualdade", mas também, e inevitavelmente, "o amor". E África, claro: em "Karam" o coro canta mesmo e em bom inglês "I love Africa".

A mãe é um assunto que mexe com ele. "Falo do sofrimento da minha mãe porque a minha mãe sofreu muito. O meu pai morreu cedo, quando eu tinha 16 anos. Somos oito filhos e este tempo todo ela não aceitou ficar com outro homem e criou-nos sozinha. Tenho outro irmão que ficou doente, teve uma trombose e a minha mãe sofre com isso". Em "Na" é para ela que canta: "Tudo de bem ou mal que possa acontecer neste mundo/ tens de aceitar" (canta-o em mandinga - a tradução é dele).

Guitarrista e balafonista de excepção, fez o disco em família: os músicos "são os amigos", não obrigatoriamente griots. Francisco Rebelo, dos Cacique, o produtor, conhece-o desde "quando ele estava na [Galeria] ZDB [em Lisboa]" e dava aulas de balafon lá.

Djabaté escreve a arranja as canções, que por mais despojadas que sejam encontram sempre um ritmo simultaneamente dolente e irresistível.

Compõe "nos dois instrumentos e de qualquer forma a qualquer momento". Às vezes está a tocar e começa "a sentir uma coisa boa no peito", e então aproveita e não pára de compor. Uma boa parte das canções estão eivadas de tristeza, mas Kimi rejeita ter um pendor mais melancólico. "Acho apenas que se nota mais a tristeza que a alegria porque quando canto coisas tristes canto como se estivesse a viver o momento".

Quer "ter uma carreira internacional, sim", mas quer acima de tudo "ter uma vida normal de griot". "Não estou à espera de ser muito famoso", conclui. É que se lembra de onde veio. E ainda hoje, se lhe perguntarem quem são os seus heróis musicais não cita Ali Farka Touré ou outro músico conhecido. Cita os pais. "Aprendi tudo com eles", diz, num misto de alegria e saudade.

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