Do kilt ao quilt

Contos, memórias, sensações que se entrelaçam ao sabor da memória - a extraordinária arte de contar de Alice Munro

Andrew Laidlaw tinha dez anos quando foi pela primeira vez a Edimburgo. O pai levou-o a subir à torre do castelo e obrigou-o a fixar um ponto distante e brilhante. Depois, disse-lhe: "Tivemos sorte com o dia... pronto, rapaz, já viste a América. Queira Deus que um dia a possas ver mais de perto". Desta forma fantasmagórica as terras para além do mar surgiram-lhe como uma miragem e também como um objectivo, uma porta para um mundo novo, intocado e fértil. Mais tarde, Andrew atravessará realmente o Atlântico com a família, numa longa, aventurosa e pitoresca viagem que está descrita no capítulo que dá o título a este livro. A reconstituição desses tempos em que na Escócia toda a gente sabia ler e escrever - graças aos bons ofícios do Reformista John Knox - mas onde se morria de fome, faz parte da intricada saga da família da autora canadiana Alice Munro, a vencedora do Booker International deste ano, cujo nome de solteira é exactamente Laidlaw, os mesmos de Ettrick, condado de Selkirk, uma "paróquia sem vantagens" como ficou registado numa descrição estatística da região, datada de 1799.

A primeira parte de "A Vista de Castle Rock" é essencialmente dedicada aos antepassados da autora, aos avós que, mesmo longe, adoptavam o sotaque das terras altas da Escócia, e aos pais que fizeram parte de gerações de colonos que desbravaram cerradas florestas de carvalhos para o cultivo das terras e se estabeleceram em quintas construídas do zero. O pai começou por ser caçador e criador de animais - raposas douradas, visons, zibelinas, ratos almiscarados - para o comércio das peles que a mãe levava para hotéis nas cidades, onde paravam turistas. O negócio durou pouco, sucessivamente afectado pela Depressão, pela Guerra e pela doença degenerativa da mãe. Estes e outros episódios, simultaneamente violentos e líricos, intensos e dramáticos, compõem estas "memórias autobiográficas" e possuem o poder, pela dinâmica da escrita e pela mestria da autora, de convocarem com a mesma intensidade, tanto os antepassados que a escritora não conheceu, como os elementos da família mais próxima, assim como os vizinhos e conhecidos, as amigas de escola e os namorados, uns, no centro da acção, outros, meros figurantes, na vasta e gloriosa "tapeçaria", laboriosa e genialmente tecida por Munro. Da Escócia do século XVII ao Canadá rural dos anos 40 do século XX, as personagens - incluindo a própria autora - ganham uma estranha vida, iridescente e vibrante, e os ciclos de esperança, de falhanço e de resignação sucedem-se numa cadência branda que afectam a jovem Alice no que diz respeito à sua adaptação às circunstâncias e à sua sempre mutável visão do universo.

A segunda parte do livro, intitulada "Casa", abrange o tempo do crescimento da autora, enquanto ela corre as estradas rurais numa velha bicicleta de rapaz, veste roupa feita em casa, sente os primeiros arroubos eróticos e cresce na quinta - onde só são introduzidos alguns melhoramentos depois da morte da mãe, pela madrasta -, enquanto observa a natureza ainda selvagem, a sociedade provinciana da vila e os hábitos das pessoas que assumem um papel mais ou menos preponderante na sua vida. Como qualquer adolescente, tenta ser popular, adora revistas de cinema e presta pouca atenção ao que se passa à sua volta: os irmãos são mencionados de passagem e a doença incapacitante da mãe, o alcoolismo de um vizinho ou os estranhos hábitos dos pais de uma colega de escola são tratados como meios de descoberta entre os afazeres rotineiros.

Munro nunca é sentimental ou hipócrita e as suas evocações mostram com acutilante clareza um universo em que o citadino e o rural se entrechocam, em que as classes sociais são rigidamente separadas e em que a vida flui numa simplicidade espartana que aguça, ainda mais, a imaginação e o sentido de observação.

A "montagem" destes relatos, semelhante à construção de um "quilt" - estas míticas mantas de retalhos são feitas a partir de contos, memórias, imagens, sensações que pacientemente se entrelaçam ao sabor da memória - constitui um exemplo da extraordinária arte de contar da autora. Da Escócia para a Nova Scotia, do Velho Mundo para o Novo, da vida dos clãs para as povoações enterradas na vastidão canadiana com as suas rígidas leis, dos "kilts" aos "quilts", toda a história se desenvolve acompanhando os tempos, impulsionada primeiro por homens destemidos, com uma larga visão do futuro e posteriormente ancorada e desenvolvida por mulheres diligentes, resistentes e dadas ao trabalho árduo.

"A Vista de Castle Rock", já se disse, não é ficção, como a autora explica, logo no início. No entanto, o seu poder narrativo é tão forte que o leitor poderá sentir-se em pleno universo ficcionado. As descrições da paisagem mítica - pensa-se imediatamente em Willa Cather -, o choque entre o banal e o transcendente, o olhar "directo ao coração" e as descrição das tarefas mais simples e inglórias são revelados como epifanias, súbitos clarões que iluminam os mais preciosos e minúsculos detalhes. Não falta ironia a esta mulher que continua a explorar a memória, o tempo e a gloriosa capacidade das pessoas para o insucesso e para a derrota, enquanto o amor e as "afinidades electivas" resistem às intempéries. Essencial para a compreensão da obra de Munro este livro desvenda um dos seus segredos: o seu ímpeto para se afastar da sua infância e da brutalidade humilhante da vida no campo e a força que a atrai constantemente de volta, como um sonho mau.

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