História de Portugal revista e condensada

Rui Ramos, Nuno Gonçalo Monteiro e Bernardo Vasconcelos e Sousa escreveram uma nova síntese da História de Portugal. Uma obra de 900 páginas que nos mostra um país que, em vários momentos do seu passado, não foi exactamente o que pensávamos que tinha sido

Chega hoje às livrarias uma nova História de Portugal num só volume, coordenada por Rui Ramos, que foi também o responsável pela redacção dos capítulos relativos à época contemporânea. A Idade Moderna ficou a cargo de Nuno Gonçalo Monteiro e Bernardo Vasconcelos e Sousa tratou do período medieval.

As últimas tentativas de síntese da História portuguesa foram publicadas já nos anos 70 e no início da década seguinte, por autores como Oliveira Marques e José Hermano Saraiva, e mesmo a obra monumental coordenada por José Mattoso saiu há já quase 20 anos. Desde então, multiplicaram-se as investigações especializadas, sustentadas em novas metodologias científicas e enriquecidas por uma intensa colaboração com historiadores estrangeiros, mas faltava uma obra que resumisse os resultados desses trabalhos e os apresentasse ao grande público numa narrativa legível e coerente. Foi este o desafio que a Esfera dos Livros, versão portuguesa da editora homónima espanhola, lançou a Rui Ramos no final de 2005.

O modelo da obra, desde o número de páginas à divisão do trabalho por um núcleo reduzido de autores, tinha já sido testado em Espanha, onde a editora publicou nos últimos anos sínteses análogas das histórias de Castela, Aragão e Catalunha. Para compor a sua pequena equipa, Rui Ramos foi buscar dois amigos de longa data, com os quais já colaborara noutros empreendimentos, como a criação da revista Penélope. Todos eles trabalharam, também, com José Mattoso, e fizeram parte do grupo de autores da colecção de biografias dos reis de Portugal lançada pelo Círculo de Leitores, para a qual Bernardo Vasconcelos e Sousa (n. 1957) escreveu a de D. Afonso IV, Nuno Monteiro (n. 1955) a de D. José e Rui Ramos (n. 1962) a de D. Carlos.

"Já tinha a ideia de fazer uma síntese da História de Portugal, porque há 30 anos que não saía uma nova", diz Rui Ramos. O convite da editora foi um estímulo suplementar que o decidiu a não adiar mais o projecto. Sem negar as virtudes, e a necessidade, de estudos universitários "especializados, de âmbito monográfico", o historiador lamenta que esta abordagem cada vez mais "micro" tenha afastado a historiografia do grande público, que, no entanto, consome avidamente romances históricos. Especialistas e divulgadores olham-se de soslaio, os primeiros por considerarem os segundos poucos fiáveis, estes por acharem que os académicos são "complicados e ilegíveis".

O que Rui Ramos pretendeu foi "estabelecer uma ponte entre os especialistas e o grande público", devolvendo à historiografia "a vocação cívica que ela sempre teve desde que foi criada, como disciplina científica, no século XIX". E recorda o exemplo precursor de Alexandre Herculano, que "não era um professor universitário, era um escritor que, em circunstâncias muito mais difíceis do que as de hoje, fez uma obra que corresponde aos padrões de rigor da historiografia académica actual, mas que se destinava ao grande público". E que, para os padrões da época, até foi um sucesso de vendas.

Para Rui Ramos, "a razão de ser da historiografia é contribuir para a conversa cívica", e essa é justamente a utilidade de obras como a que agora coordenou, que propõem uma síntese, unindo numa narrativa inteligível géneros e períodos que se tornaram estanques: "Quem se dedica à Idade Média não quer saber da época moderna, quem estuda o século XIX não se interessa pelo século XX, quem faz história económica ignora a história política". Uma situação que atribui, também, ao facto de ser geralmente a investigação de âmbito restrito que fornece "credenciais académicas", o que levaria ao "desleixo do trabalho de síntese". Mas acha que essa indiferença pelo "escrutínio do grande público" constitui, da parte dos universitários, "uma espécie de crime", levando-os a auto-excluir-se dessa "conversa de cidadãos" que a historiografia deveria alimentar.

O PREC em 30 páginas

O propósito de chegar ao grande público ditou também a própria estrutura da obra, que reserva um espaço comparativamente generoso para a época contemporânea, com a qual os leitores se sentem presumivelmente mais identificados. O livro dedica, em média, quase exactamente uma página a cada ano da História portuguesa. Só que a distribuição é altamente desigual. Os mais de 400 anos que vão dos alvores da nacionalidade até ao último quartel do século XV foram condensados em menos de 200 páginas, ao passo que o ano e meio do PREC, de Abril de 1974 a Novembro de 1975, mereceu 30 páginas, tantas quantas as dispensadas a todo o Antigo Regime (aqui no sentido do regime que vigorou ao longo do século XVIII, antes da revolução liberal).

Todavia, e paradoxalmente, não é certo que Rui Ramos, a quem coube tratar do período que vai da instauração da República aos nossos dias, tenha tido de fazer um esforço de síntese menos violento do que o dos seus colaboradores. Desde logo porque não existiam sínteses fiáveis da história do Portugal democrático que pudessem servir de referência. "Escrevi quase 300 páginas sobre o 25 de Abril e o PREC", diz o historiador. "Era um livro à parte, que depois consegui condensar em 30 páginas, tentando que o resultado final continuasse a fazer sentido e fosse interessante de ler."

Não deve ter sido fácil. Medeiros Ferreira, que escreveu um volume complementar para a História de Portugal dirigida por José Mattoso, precisou de mais de 500 páginas para o período que vai de Abril de 1974 à adesão à CEE, em Janeiro de 1986. Rui Ramos não tem dúvidas: "Se tivéssemos escrito uma obra em quatro ou cinco volumes, tínhamos tido um terço do trabalho".

Acresce que à tendência natural para se dar mais importância ao detalhe quando se está a tratar de uma época que se testemunhou, o historiador terá também a percepção de que não pode omitir aspectos cuja ausência os leitores estranhariam, mesmo que preveja que eles provavelmente virão a ser justamente omitidos ou menorizados em futuras sínteses do mesmo período.

Ramos defende que o livro será útil não apenas ao "leitor interessado e exigente", mas também aos próprios especialistas, já que acredita que a síntese e a análise se alimentam mutuamente e que esta obra irá fornecer "um quadro de referência importante para se perceber, por exemplo, que áreas devem ser discutidas, revistas e reinterpretadas".

Mas o principal destinatário desta nova História de Portugal é mesmo o "grande público", e embora essa expressão, utilizada no contexto português, peque sempre por algum exagero, Ramos está convencido de que existe uma audiência significativa para os temas históricos, lembrando o sucesso dos chamados "romances históricos" ou a existência de um canal televisivo exclusivamente dedicado à História. E esta capacidade de comunicar com uma audiência mais ampla não está necessariamente vedada aos universitários, como o demonstram "trabalhos como os de Vitorino Magalhães Godinho ou Joel Serrão, que foram, há 40 anos, grandes sucessos intelectuais e comerciais". Exemplos a que Ramos acrescenta "os livros de José Mattoso, que, mais recentemente, atraíram muitos leitores para a História".

A obra de Mattoso e da sua equipa é também um bom exemplo de como as fontes, em História, nunca se esgotam verdadeiramente e vale sempre a pena voltar a elas. "Eles revolucionaram tudo o que sabíamos sobre as origens de Portugal, provando que uma releitura de documentos já estudados pode criar um mundo novo", diz Rui Ramos.

O "golpe de sorte" de 1640

Se o livro que coordenou não revolucionará propriamente a imagem que temos do país, a leitura que este propõe de alguns períodos específicos da História portuguesa não deixará de surpreender muitos leitores. Talvez os capítulos iniciais sejam os que reservam menos surpresas, justamente porque Mattoso, em livros como Identificação de Um País, já reviu radicalmente o período da formação da nacionalidade.

Ainda assim, Vasconcelos e Sousa admite que a sua leitura da primeira dinasta contrarie a visão tradicional que temos das relações entre a realeza e nobreza, mostrando que estas viveram em tensão permanente e que essa clivagem, ao longo dos primeiros séculos da História portuguesa, resultou por mais de uma vez em conflitos armados e guerras civis.

No entanto, ao contrário do que aconteceu na época em outros países, o que estava em causa em Portugal não era a clássica luta entre monarcas centralizadores e poderosos terratenentes, pela simples razão de que não existiam então grandes casas senhoriais no país, como viria a ser a de Bragança. "Um dos dramas da nobreza" do tempo, diz o historiador, era precisamente o facto de "não ter dimensão" e de estar "muito dependente da coroa".

Também Nuno Monteiro acredita que o livro pode revelar-se "desmistificador", apresentando leituras interpretativas que contradizem a "percepção comum". Uma ideia que poderá surpreender é a acentuada atenuação do factor anticastelhano no desenvolvimento da identidade portuguesa. Monteiro não nega que existisse genuína animosidade contra Castela em muitos períodos da História do país, mas lembra que, sobretudo até ao século XIX, os "sentimentos de pertença eram mais ambivalentes" e que a consciência de se integrar uma comunidade política ia de par com outros laços, do catolicismo às ligações à terra e à família.

É aquilo a que chama "uma certa herança de nacionalismo retrospectivo" que nos levaria a olhar, por exemplo, para o período filipino como uma mera ocupação estrangeira. "Não eram os alemães a entrar em França", sublinha. "Houve aspectos de ocupação, mas também de integração pacífica e normal." Lembrando que as próprias elites portugueses, até ao século XVIII, eram bilingues e se viam a si próprias no contexto de uma cutura peninsular, o historiador, sem querer "propor uma qualquer mitologia iberista", considera que a imagem de um país visceralmente anticastelhano no século XVII não corresponde à realidade. E acha que a Restauração de 1640 foi "um golpe de audácia e sorte, que não estava inscrito na ordem das coisas".

Mas é nos anos posteriores a 1640 que o retrato do país que Nuno Monteiro traça se torna mais surpreendente, mostrando-nos como Portugal, ao livrar-se de Espanha, também abandona de algum modo a Europa e aposta decisivamente no Atlântico. São anos em que a monarquia portuguesa estará largamente dependente do Brasil e em que o governo do pequeno rectângulo continental é, em boa medida, assegurado a nível local nos 900 concelhos que então existiam no país, cujos presidentes de câmara, entre outras prerrogativas, faziam também as vezes de juízes. Rui Ramos diz que a dimensão do poder local era tão forte que alguns autores contestam que se possa falar de governo central, no sentido actual do termo.

Só a independência do Brasil e a revolução liberal - que reduzirá para um terço o número de concelhos - irão alterar este estado de coisas. Ramos não tem dúvidas de que a revolução liberal que resultou da guerra civil dos anos 30 do século XIX foi, "de longe, a maior ruptura da História portuguesa", de consequências muito mais drásticas do que a passagem da monarquia para a República ou o fim da ditadura, em 1974.

Mas também não compra a tese de que nada de essencial mudou nas últimas décadas. "Somos uma das sociedades europeias que mais rápida e profundamente se alterou nos últimos anos", diz. Comparando o presente com os anos 70, lembra o desaparecimento do país rural, o aumento dos níveis de instrução, o envelhecimento demográfico e outros fenómenos que, sendo comuns a outros países, se processaram em Portugal, onde "a esmagadora maioria das pessoas vive hoje em casas construídas nos últimos 30 anos", a um ritmo comparativamente vertiginoso.

Sintetizando o que Portugal foi sendo desde a sua criação até ao presente, este livro retrata um país parecido com o que julgávamos conhecer, mas não exactamente igual.

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