Os espaços que eles inventam

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Em Lisboa há lugares onde os artistas expõem durante uma noite. Edifícios pombalinos que mostram arte. Projectos que duram duas horas ou dois dias. Curadores e programadores vão inventando os seus espaços artísticos

The Barber Shop é um projecto artístico que aproveita uma antiga barbearia. O Pavilhão 28 existe num hospital e recebe exposições de arte contemporânea. O "Empty Cube" aparece numa galeria lisboeta, mas apenas durante uma noite - mostra uma obra e depois "desparece". Na Rua da Anchieta, ao Chiado, vários andares de um edifico pombalino, durante anos vazios, voltaram a ser habitados: com exposições e conferências. E desde Julho há um lugar chamado Kunsthalle Lissabon onde uma exposição é mais que uma exposição.

Eis uma panorâmica possível dos espaços de arte em Lisboa. À primeira vista, confusa, dividida, sem ordem (já agora: assumidamente não exaustiva). Afinal, todos estes projectos ou espaços de arte apresentam particularidades, objectivos e histórias que os distinguem. Desenham, porém, dois traços comuns, muito gerais, mas comuns: uma vontade de apresentar arte para lá das suas expectativas tradicionais - portanto, noutros espaços e tempos; e uma necessidade prosaica que, sem legitimar Lisboa como "case study" no campo da programação de arte ou da curadoria, torna-a mais plural: tão-somente intervir no contexto artístico para mostrar arte.

Organizar exposições fora das fronteiras mais convencionais não é um dado novo. Lembremos nos anos 90 o nomadismo forçado e as experiências da Galeria Zé dos Bois, bem como a sua natureza transversal (foi criada por gente de áreas diferentes) ou, já neste século, o surgimento do Espaço Avenida 211 num edifício não concebido para receber exposições de arte contemporânea

No contexto actual, contudo, as "velhas dicotomias" (institucional/independente e espaço expositivo/ não expositivo), são menos fronteiras vigiadas do que formas e conceitos disponíveis à imaginação de curadores, comissários e artistas. Daí a diversidade de opções, preocupações, energias. Num jogo nem sempre fácil entre a efemeridade dos espaços e a intensidade das propostas.

O intruso

O projecto "Empty Cube" do curador João Silvério é um evento irrepetível. A sua história está aliás marcada pela dimensão performativa e podemos contá-la em dois episódios.

O primeiro aconteceu na Plataforma Revolver, onde o curador realizou um projecto de uma só noite com o artista André Sier. "Vi um trabalho dele na Fábrica da Pólvora, a obra ‘747', uma instalação interactiva que era um evento absolutamente performativo e propus mostrá-la noutro espaço, como um evento".

O segundo episódio, decisivo, nasce no âmbito de um convite ao escultor João Seguro para expor num espaço cedido pela Galeria Filomena Soares. "É no momento em que estamos a instalar a peça que nasce o projecto. Como um confronto com a presença de uma obra em condições temporais e espaciais específicas", conta.

Seguiram-se exposições de Daniel Barroca, Nuno Sousa Vieira, Ana Perez-Quiroga, entre outros, e o Empty Cube, depois de mais de um ano na Galeria Filomena Soares, passou a ser acolhido pela Galeria AppletonSquare. À sua condição de cubo branco, vazio durante a maior parte do tempo, acrescentou-se entretanto uma mobilidade, permitida pelo desenho dos arquitectos Isabel Domingos e João Appleton (já teve a sua primeira itinerância, com a apresentação de uma obra de Mauro Cerqueira na Galeria do Instituto Politécnico de Tomar).

João Silvério resume assim a ideia central do projecto: "Trata-se de instalar um espaço num outro espaço, não como um parasita, mas como um intruso naquela noite. É o próprio espaço que é intruso. Não é só a obra. No dia seguinte, desaparece o espaço, desaparece a obra. Há esse lado evanescente, embora no momento em que está em presença seja absolutamente real".

Espaço para conversas

Margarida Mendes lida com questões semelhantes. Depois de vários meses à frente do "7 Days Project" - em que dava carta branca a jovens artistas nacionais para a realização de uma exposição de setes dias consecutivos - gere agora o "The Barber Shop", que ianugura na Rua Rosa Araújo com um evento de uma noite da autoria da curadora alemã Ellen Blumenstein. Desta vez, o convite para "fazer" é endereçado não a artistas, mas a curadores e programadores independentes internacionais. "Sentia a falta de espaço para conversas, para diálogos com especialistas. O que não quer dizer os projectos se resumam apenas a debates".

Para além de Ellen Blumenstein, estão confirmadas as presenças de Adrien Török, Doreen Mende, Karolin Tampere e Pablo Leon de La Barra. "São curadores muito móveis que circulam entre países e projectos com vários contextos políticos, sociais e económicos. Podem apresentar as suas publicações e revistas, convidar outras pessoas. Alguns estão a pensar em organizar ‘workshops'. Outros vão fazer ‘screenings'".

A duração limitada é também uma característica central do The Barbers Shop - "Não há horários. Varia conforme os convidados e os projectos. Podem ser três dias ou seis horas. Para mim não fazia sentido a estrutura de uma exposição com duração prolongada, mas antes a concentração de público específico num momento exacto de apresentação e discussão". O lugar, sugerido por António Bolota, do Espaço Avenida 211, também estimulou o tipo de curadoria. "Quando o vi, disse logo para mim: ‘Não tenho um ‘white cube', óptimo. Não vou fazer exposições e também não quero fazer ‘site-specifics'". Quanto à barbearia propriamente dita, dela resta "um friso de espelhos e uma parede de madeira, com lavatório e gavetas".

Margarida Mendes encontra, entretanto pontos de contacto com outro projecto: o "Oporto", dirigido pelo artista Alexandre Estrela, que de tempos a tempos mostra, numa só noite, um filme ou vídeo experimental nas instalações do antigo sindicato dos marinheiro da Marinha Mercante (perto do Miradouro de Santa Catarina). "É uma ‘one night thing' super-intensa, onde nos reunimos para ver um filme e conversar sobre ele. Interessa-me esse intensidade. As pessoas reúnem-se com outra ânsia e susceptibilidade, pois os eventos têm um tempo curto. Se falharmos, se não estivermos lá, não vemos".

É possível argumentar que projectos como "Empty Cube" ou "The Barber Shop", pela sua efemeridade (que os torna mediaticamente quase invisíveis), pela sua especificidade, acabam dirigidos ao meio artístico. A verdade é que pelas dinâmicas que propõem, pelas redes sociais que activam (e refira-se o papel importante da Internet), são, igualmente, reptos descomprometidos ao público da cultura.

À procura de espaços

O Kunsthalle Lissabon, de João Mourão e Luís Silva, fica situado na mesma rua que The Barber Shop (ambos no edifício da Espaço Avenida 211), mas as semelhanças acabam aqui. Trata-se de um projecto curatorial de exposições individuais, de duração normal (à volta de um mês) e com artistas previamente seleccionados. Isso não significa que seja imutável ou eternamente fixo. Dito de outro modo: "Kunsthalle Lissabon" não é apenas um lugar de exposições, quer ser também um conceito.

Atente-se na apropriação palavra "Kunsthalle". Começou por designar os espaços de arte surgidos no século passado na Alemanha, por iniciativas de artistas e coleccionadores, e hoje serve para nomear os grandes museus e centros culturais da Europa Central. Ironia? Provocação? Afinal há ou não um espaço assim em Lisboa? Via e-mail os dois curadores respondem: "É um embuste, claro, mas, acreditamos, é também um falso embuste. Como é óbvio, o Kunsthale Lissabon não possui a dimensão, recursos ou estratégias de funcionamento de uma Kunsthalle contemporânea. Mas julgamos que tem a qualidade de uma programação de uma Kunsthalle, tal como foram constituídas inicialmente no século XX".

Quem visita o espaço, percebe que está diante de um sítio aparentemente pouco "habilitado" para mostrar arte contemporânea (foi uma antiga sala de escritórios). Mas é exactamente a partir desse estranho desencontro que o projecto se afirma: interrogar e subverter os modelos tradicionais de exposição. Como aconteceu na exposição inaugural em Julho, "X-Office for a Sculpture", quando o artista Nuno Sousa Vieira transformou em obras de arte as estruturas que sobravam do uso.

Dirigido aos doentes

No Pavilhão 28 do Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos a apresentação da arte também depara com outros contextos e usos antigos. Trata-se de um antigo edifício de internamento transformado desde 2008 num espaço de exposições pelo artista e programador Sandro Resende. Recebe sobretudo exposições colectivas e mais recentemente projectos de comissariado, e os artistas estão livres de intervir nos pisos do edifício. Não o fazem sozinhos. O Pavilhão 28 é primeiramente uma iniciativa dirigida aos doentes: a outra "comunidade" do projecto. "Não é apenas a forma como as artistas podem intervir, que nos motiva", diz Sandro Resende (também professor de pintura no hospital). "Há um trabalho com as pessoas que habitam este espaço, com a comunidade envolvente. Interessa-me que os doentes artistas sofram influência dos outros artistas e que ao trabalhar com os comissários percebem as várias vertentes de fazer arte". São exemplos deste diálogo a participação fixa de um artista doente (anónimo) em cada colectiva e, agendada para final de 2010, uma exposição de Luísa Cunha e Ângela Ferreira produzida e organizada pelos próprios doentes.

À margem da iniciativa, que conta ainda com a coordenação do professor José Azevedo, está o mercado. "Não temos intenções comerciais. Os galeristas podem visitar o espaço e as exposições, mas o único objectivo é trabalhar com a comunidade, neste lugar. Foi isso que fez nascer o Pavilhão". A mesma autonomia determina aliás todos os outros projectos, do "Empty Cube" ao Kunsthalle Lissabon. Apareceram, recordemos, para pesquisar, utilizar, experimentar, mostrar; o que não impede, evidentemente, o interesse e a proximidade de galeristas e coleccionadores.

Que fosse uma casa

Mas encontrar e utilizar espaços ou lugares para mostrar arte nem sempre é tarefa de execução rápida. E quando os apoios logísticos não existem, ou os contactos rareiam, resta ir à procura. Foi o que aconteceu com Filipa Valladares que durante três meses "ocupou" o nº31 da Rua Anchieta com exposições (só a livraria Bertrand escapou).

"Andava à procura de um espaço para uma exposição de Catarina Botelho que fosse uma casa numa zona central. Lembrámo-nos que no 56 da Rua Ivens tinham acontecido algumas exposições, mas os proprietários disseram-nos que ia para obras. Sugeriram, então, outro lugar, mas tinha pouco ‘ambiente' de casa. Finalmente, lembraram-se de outro na Rua Anchieta, que estava livre. Era perfeito para o que queríamos".

Este final feliz não foi alcançado sem esforço: "Admito que tivemos alguma sorte por ter aparecido aquele espaço, mas toda a produção para apoios e mesmo os contactos com os proprietários deram muito, muito trabalho".

Entre Maio e Julho, o prédio recebeu a exposição de Catarina Botelho e iniciativas organizadas pelo projecto Chão, mas desde Agosto que a Rua Anchieta abandonou o circuito dos espaços de arte. As salas do prédio, de construção pombalina, esvaziaram-se de novo com a realização de obras à espreita. Sem menosprezar o gesto louvável de disponibilizar temporariamente um edifício privado para exposições, eis o lado menos "poético", mais conspirativo da efemeridade dos espaços de arte. Um lado que diga-se não demove a curadora. Neste preciso momentos deve andar à procura de um espaço para organizar a exposição com artistas do Porto que já tinha planeado para a Rua Anchieta. E provavelmente já encontrou.

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