Os portugueses e o peixe Só pode ser uma história de amor

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Ana Maria Coelho

Ana Madsen era ainda estudante quando foi para a Dinamarca no programa Erasmus. Sentia falta de peixe às refeições. Ia de um país que captura muito menos pescado, mas que consome incomparavelmente mais que os dinamarqueses. Havia de haver razões para isto. Mais tarde escolheu o assunto para tema da sua tese de doutoramento

Carapau, salmão, goraz, cherne, pescada, sardinha, entre muitos outros, são presença habitual na mesa dos portugueses. De tal forma que o país até é líder no consumo de peixe - é o quarto maior consumidor do mundo e o primeiro na Europa a 27. O que não deixa de ser curioso, uma vez que outros estão bem à sua frente nos índices de captura (produção) de pescado.

Como se explica, então, esta afeição? É uma questão sócio-cultural, "faz parte da identidade do povo", concluiu a investigadora Ana Oliveira Madsen, docente do IPAM (Instituto Português de Administração e Marketing), num estudo que analisa e compara os índices de consumo de peixe do povo português e do dinamarquês.

A sua tese de doutoramento (na Syddansk Universitet, na Dinamarca) parte precisamente desse paradoxo: Portugal tem baixas taxas de produção de peixe (cerca de 228 mil toneladas por ano), mas está no topo do consumo (60 quilos per capita por ano), enquanto na Dinamarca o gráfico surge invertido: consumo pouco acima dos 20 quilos (a média da União Europeia é 23,7), produção entre as 1000 e as 1200 toneladas.

O estudo, que foi já divulgado no país escandinavo, conclui que os portugueses mantêm uma verdadeira história de amor com o peixe. Dito assim até pode parecer caricato, mas a investigadora fundamenta a ideia ponto por ponto. Começando por esmiuçar cada uma das variáveis que podiam explicar as elevadas taxas de consumo de peixe em Portugal: clima, religião e preço, desde logo.

"Não pode ser o clima, o tempo quente, a contribuir para esta preferência. O Brasil consome seis quilos per capita e a Islândia 91", exemplifica Ana Madsen. O preço também não é justificação, uma vez que "o peixe é mais caro do que a carne em Portugal; e na Dinamarca acontece o contrário", prossegue a investigadora. E a religião? Ainda que possa ter contribuído para enraizar o consumo de peixe na sociedade portuguesa - muito por força dos jejuns de carne impostos pela religião católica - não é, por si só, fundamento para este gosto por peixe.

O que acontece é que "faz parte da nossa identidade, tem a ver com as nossas raízes", explica a docente do IPAM, para justificar o facto de a curva do consumo de peixe em Portugal se ter mantido em valores elevados. O único decréscimo minimamente significativo aconteceu pouco depois do 25 de Abril de 1974. À perda de influência da Igreja "os portugueses responderam com um aumento do consumo de carne, uma vez que a religião ditava vários dias de jejum de carne. Foi uma espécie de moda, um quebrar com as raízes, mas não durou muito", defende Ana Madsen.

Terá sido o único momento baixo de uma "relação amorosa" que conta com séculos de história e que se manifesta das mais variadas formas. Dúvida? Só desta forma se consegue explicar, mantém a investigadora, que em Portugal todos achem normal ver um político agarrado a uma peixeira, num qualquer mercado nacional; que se construam estátuas em homenagem às peixeiras; que se promovam tantos festivais dedicados ao pescado. Ana Madsen não tem dúvidas de que os portugueses "domesticaram o peixe", ou seja, tomaram-no como sendo um produto seu.

Mas, como qualquer história de amor, também esta relação teve de ser alimentada e fortalecida. Por quem? A começar pelo Governo. "As pescas foram dos sectores mais abençoados e protegidos por Salazar", lembra a investigadora. Os grandes distribuidores também têm dado um empurrão, "fazendo um esforço enorme e um grande investimento" na importação de peixe para o mercado nacional e na oferta de novos produtos (como o bacalhau demolhado e outros produtos prontos a cozinhar). E também as cantinas escolares portuguesas, onde "o peixe está muito presente", realça Ana Madsen, têm dado um grande contributo.

Sem espinhas

Passando para o outro lado: e os dinamarqueses? Porque estão eles tão alheados do consumo de peixe, quando o seu país é líder dos 27 (UE) na captura? Precisamente, uma vez mais, por força da realidade sócio-cultural do país, defende a investigadora portuguesa.

Ana Madsen, que chegou pela primeira vez ao país escandinavo ainda durante a licenciatura, no âmbito do programa Erasmus, não hesita na altura de fazer o diagnóstico: a partir do início do século XIX, a grande actividade da Dinamarca era a produção de carne de porco, que garantia não só a subsistência económica das famílias, mas também a sua alimentação diária. Ao longo dos anos, os dinamarqueses mantiveram-se afastados do peixe, em matéria de consumo. Compreende-se, assim, porque acabam por recusar-se "a ver espinhas no peixe", a deparar-se com aquela imagem com cabeça e espinhas - o ideal parece ser o pescado apresentado em filetes.

"São realidades culturais completamente distintas", nota a investigadora, que decidiu estudar o caso concreto do consumo de peixe porque, enquanto portuguesa, sentia a sua falta nas refeições do povo dinamarquês. "Na cantina da universidade - uma instituição pública -, só era servido peixe de duas em duas semanas." Nas "receitas" que foi tentando passar à sociedade dinamarquesa, a docente do IPAM insistiu nesse mesmo ponto: "Temos de começar pelas crianças, nas refeições que fazem na escola".

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