Marinha volta hoje a combater piratas na Somália, mas não pode prendê-los

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Em Junho, os fuzileiros da Marinha capturaram vários piratas, duas embarcações e diversas armas Carlos Dias/REUTERS

A fragata Álvares Cabral iniciou hoje, no golfo de Aden, entre o Iémen (a Norte) e a Somália (a Sul), uma nova missão de combate à pirataria, que irá durar três meses, como navio-almirante da esquadra da NATO.

A larga maioria nunca passou o Natal tão longe de casa, mas à mesa dos 210 tripulantes da Álvares Cabral, algures no meio do mar, não faltará bacalhau e bolo-rei na noite da Consoada. "Essa parte da missão não vai falhar", garante o comandante Santos Fernandes, porta-voz do comando da força Standing NATO Maritime Group 1 (SNMG1).

A missão, que hoje começa para o navio português, é o combate à pirataria nos mares a norte da Somália, que no último ano teima em não sair das notícias devido ao número de navios apresados e tripulações feitas reféns - neste momento estão sequestrados dez navios e mais de 200 pessoas de cerca de 30 nacionalidades na posse dos piratas.

Depois do sucesso que foi a missão da fragata Corte-Real, que em Junho conseguiu capturar meia dúzia de piratas e apreender duas embarcações, esta é a última em que um navio português assume a posição de navio-almirante da força da NATO. É na Álvares Cabral que está o contra-almirante José Pereira da Cunha, que até Janeiro exerce o posto de comandante da SNMG1, um dos grupos navais de reacção da NATO para cenários de crise. Sob as suas ordens está uma fragata e um destroyer norte-americanos e uma fragata italiana - dentro de 15 dias junta-se-lhes uma fragata canadiana. A passagem do comando para a Dinamarca será feito a 25 de Janeiro e a Álvares Cabral regressa depois a Lisboa.

Até lá há três meses de intenso patrulhamento das águas do golfo (que tem mais de mil quilómetros de extensão), por onde passam milhares de navios, um terço do comércio mundial e 80 por cento da energia. Com a chegada da nova missão às águas do Golfo de Aden inicia-se também uma nova fase das operações da NATO na região, com outro nome e conceito.

Nova missão, velho problema

"A primeira, denominada Allied Protector, em que participou a Corte-Real, era quase exclusivamente baseada no combate à pirataria. Esta operação, chamada Ocean Shield, é mais abrangente e ambiciosa: é de combate, mas pretende-se também envolver a comunidade marítima de países da região, que podem ter vontade de agir mas não têm capacidade", descreve o porta-voz da SNMG1. As forças da NATO vão fazer o levantamento das necessidades desses países, que depois irão receber treino da NATO para no futuro poderem fazer este patrulhamento por si.

Mas o problema de fundo no combate à pirataria mantém-se: é que, embora possa capturar os piratas, a NATO tem de libertá-los a seguir por não poder julgá-los. "O conceito e tipificação do crime de pirataria desapareceram do direito interno português – as sucessivas revisões do Código Penal deixaram-nos ‘cair’. Apesar do crime estar tipificado no direito internacional marítimo e o seu combate ser legitimado pelo Conselho de Segurança da ONU – que autoriza o uso da força e das armas -, não nos é possível deter e levar estas pessoas, que actuam em água internacionais, a julgamento", afirma o comandante. As forças nacionais só poderiam deter os piratas se estes atacassem um navio português e fossem capturados nele.

A revisão do Código Penal português nesta questão é, por isso, urgente - e daria maior significado à presença de forças nacionais em missões deste género. Porém, o anterior ministro da Defesa, em Julho, à chegada da Corte-Real a Lisboa, defendeu que essas alterações deveriam acontecer primeiro a nível internacional e só depois poderiam ser transpostas para o direito interno.

Há, no entanto, soluções para contornar o problema – mas também é certo que todas demoram porque dependem de acordos internacionais. “Celebrando acordos para entregar os detidos e as provas a um país que possa julgá-los, como a força da União Europeia tem com o Quénia – mas esta solução está vedada à NATO por ser uma organização militar; ou a ONU criar um tribunal internacional ad-hoc para a pirataria”, enumera Santos Fernandes, lembrando que a cada dia o comandante da missão tem que “balizar a actuação entre a legitimidade dada pela ONU com o que lhe permite fazer a legislação portuguesa”.

Auto-estradas e monções

O moral da tripulação portuguesa da Álvares Cabral é, ainda assim, elevado: pensavam que iam para Aden em Fevereiro mas acabaram por ser substituídos pela Corte-Real devido a planificação de manutenção e outros compromissos com a NATO no Mediterrâneo. "É uma missão aliciante. Treinamos durante a maior parte do nosso tempo para isto", diz o comandante.

E a verdade é que a presença coordenada de forças internacionais reduziu drasticamente os casos de pirataria no Golfo de Aden. Se dantes cada navio comercial fazia o seu percurso individual, agora há um corredor recomendado, "uma auto-estrada marítima, por onde os navios devem passar". Os esforços são "mais localizados e tornam as viagens mais seguras", conta o comandante Santos Fernandes, segundo o qual todas as forças estão em permanente contacto. Sabemos quais os navios, quando e onde passam.” A China, por exemplo, reúne um “comboio” de 20 a 25 cargueiros de pavilhão chinês e escolta-os através das áreas mais problemáticas.

Em Julho, à chegada da Corte-Real a Lisboa, o contra-almirante José Pereira da Cunha tinha contas explícitas: “Em 2008, em cada três ataques um era bem sucedido; no primeiro semestre deste ano, em cada oito apenas um tem sucesso.”

O comando da NATO sob as ordens do contra-almirante português não deverá ter uma missão muito complicada, porque esta é a época das monções: a de sudoeste está quase a passar e em Dezembro os piratas devem estar mais activos, mas logo em Janeiro começa a monção de nordeste. A situação mais complicada continua a ser a dos reféns, mas aqui as negociações - e os resgates, que chegam a 1,3 milhões de euros por navio - não passam pela NATO, sendo tratadas a nível nacional.

Bacia da Somália é mais problemática

No golfo de Aden estão várias forças internacionais em missão de segurança, com 44 embarcações: além da SNMG1 liderada pelo contra-almirante português, está a SNMG2 (cujo comandante é um commodoro inglês), mas também a força Atalanta da UE, uma coligação liderada pelos EUA e ainda diversos navios sob comandos nacionais (como é o caso da Índia, Coreia do Sul, Irão, China, Arábia saudita, Bahreim, Indonésia, Rússia e Japão).

Apesar da estabilização nas águas a norte da Somália, a costa oriental (que é muito maior) continua completamente desprotegida, faltando tanto meios como uma estratégia internacional. “É uma extensão imensa, impossível de controlar e os piratas têm tido aqui algum sucesso”, confirma o comandante Santos Fernandes.

A solução para o problema da pirataria marítima ao largo da Somália “não passa só pela questão militar, do patrulhamento e dissuasão; é sobretudo um problema de natureza interna”. O cerne da questão, diz o porta-voz da missão da NATO está nas condições de vida do país. “Mais de 3,5 milhões de somalis dependem do programa alimentar das Nações Unidas; o país não tem forças de segurança actuantes. A pirataria, que é acima de tudo um negócio e envolve milhões de euros. Os piratas precisam de apoio logístico – embarcações, motores, combustível, radares, armamento -, lugar onde se esconder, mantimentos. E tudo isso movimenta dinheiro”, remata Santos Fernandes.

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