Reimaginar "A Mosca" é "suficientemente perverso" para David Cronenberg

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Realizador falou de "Cosmopolis", de tecnologia e corpos no Estoril Film Festival. E anunciou que vai voltar ao mítico "A Mosca".

Culto? Corpo? Género? Gadgets? Britney Spears? Tudo isto e mais numa conferência de imprensa de David Cronenberg, segunda-feira, ao fim da tarde, no 3º Estoril Film Festival (EFF).

 O realizador canadiano, que está aliado a Paulo Branco e à sua Alfama Films para a produção da adaptação do romance "Cosmopolis", de Don DeLillo, rejeita a cultura de celebridades, define-se como um techno geek e vai mesmo reimaginar "A Mosca" (1986) com novo guião e produção assinados por si. Para já, entretém-se com o seu iPhone e com outros "cinco ou seis" projectos que tem em mãos, nomeadamente "The Talking Cure", o seu próximo filme.

No Estoril, onde terça-feira falará com o público antes da estreia em Portugal da série The Italian Machine, que realizou em 1976 para a TV, decorre uma retrospectiva Cronenberg. "É sempre estranho termos todos os nossos filmes num só local. É bom sentir a presença do corpo da nossa obra, que fizemos algo, mas sinto-me desligado disso porque não os vou ver", sorria Cronenberg.

Mas o corpo, a forma como explorou a sua dimensão existencial e relação com a tecnologia e a técnica, é um dos seus traços distintivos, um dos motivos pelos quais gerou culto. "Uso o cinema como a minha forma de tentar compreender a condição humana e a minha condição humana. Para mim fazer um filme é uma investigação filosófica". No sentido artístico, sublinha, para "tentar compreender a vida, que é um tema enorme: as relações sociais, como funciona a percepção, o exercício do poder, o corpo humano - para mim o primeiro facto da existência humana é o corpo humano".

A metamorfose da carreira de Cronenberg, visível na retrospectiva no EFF mas também nas duas exposições Chromosomes e Red Cars - fotogramas dos seus filmes e a novela gráfica de um seu argumento que nunca se tornou um filme - foi do fantástico ao gangster, do corpo ao crime, das máquinas de escrever de "Festim Nu" aos carros de "Crash". Mas o realizador garante que isso dos géneros ou das categorias é um problema dos outros. "Não me preocupo com temas. É tudo intuitivo. Há claro um elemento intelectual ou cerebral, mas não procuro categorias que tenho de riscar da lista. Quando li ‘Cosmopolis', não estava a pensar se isto se encaixava numa categoria ou se é um filme cronenberguiano", explica. O género cinematográfico? É "um problema de marketing".

Tanto ou mais do que "Crash" (1996), "A Mosca" é um dos filmes-ícone de Cronenberg. A Fox quis que fizesse um remake, mas Cronenberg fez uma contra-proposta. "Porque é que eu o faria? Propus-lhes algo que achei interessante. Eles gostaram, vou escrever e produzir e só depois de terminar o guião é que vou decidir se o vou realizar também. Refazer o meu velho filme não é muito interessante para mim, mas fazer algo bastante diferente que ainda se possa chamar ‘A Mosca' - isso pode ser interessante. É suficientemente perverso para mim", riu-se.

A escrita dessa nova "Mosca" está no futuro, como "Cosmopolis", que surge na sequência de um encontro com Paulo Branco em Cannes e da aquisição dos direitos do livro de 2003. "Adorei o livro e comecei imediatamente a escrever o argumento. Nunca escrevi um guião em seis dias". Mas foi o que aconteceu. Falta elenco e quando chegar o financiamento o filme avançará. Mas "The Talking Cure", sobre Freud e Jung e com argumento de Christopher Hampton ("Ligações Perigosas"), deverá avançar primeiro por esse mesmo motivo financeiro.

E confirma-se:  "Sou um techno geek. Gosto de brinquedos, tenho um iPhone. Acho que se pode ver nos meus filmes que me interesso pela tecnologia porque há um tema subjacente que é a relação entre a tecnologia com o corpo humano. Toda a tecnologia começa como uma extensão do corpo humano, do ouvido, do punho..."

Mas nunca filmou em alta-definição, apenas algumas curtas, mas acha o HD "excitante" e não se deixa prender pela "nostalgia da velha tecnologia", resultante da "emoção que investimos" nela. O que não quer dizer que um 3D faça um bom realizador, ressalva, atentando que já nos 1950 Hollywood reagiu com o cinemascope, com o som estéreo e com o 3D à ameaça da TV. Mas "era um truque, desastrado" e não durou. Agora, com a Internet e o iTunes, exemplifica, já viu isto em qualquer lado e "se for só pela tecnologia"... Isso não lhe interessa. Mas tudo dependerá de Avatar, acredita, o gigante de James Cameron que se estreia em Dezembro.

O que não é tão excitante para o amante de carros velozes, de Fórmula 1, para o realizador que acha que o "velho cinema morreu, já é um zombie", é a cultura de celebridades do novo milénio. Com a fama vem uma maldição, pergunta uma jornalista? "Ainda não fui suficientemente bem sucedido para que isso seja uma maldição", responde bem humorado. Mas ser reconhecido na rua, ser acossado, reconhecer o seu duplo que vive nas notícias e nas bisbilhotices da Internet, isso é para "Paris Hilton ou Britney Spears", que "cortejam esse tipo de fama, querem-na apesar de se queixarem dela".

"Penso que há muitos jovens realizadores que só o querem ser porque querem ser estrelas rock, Isso é parte do problema da cultura de celebridades. Os melhores cineastas estão lá [na indústria] porque têm algo para dizer através do cinema. Há 20 anos não o diria porque os jovens de então tinham o cinema como um meio de expressão, mas agora por causa da cultura de celebridades isso é um problema."

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