Torne-se perito

"Com o tempo começamos a estragar-nos por dentro"

Foto
A guerra já não é um tema interdito na família ENRIC VIVES-RUBIO

António esteve numa zona de combate ininterrupto, em Angola. Quando regressou, casou e teve uma filha. Hoje, os três membros da família sofrem de stress de guerra

Podem passar três, quatro, cinco décadas. Nada impede a memória de regressar àqueles dois anos e 45 dias em que Nuambuangongo, no Norte de Angola, era uma zona de combate ininterrupto. António chegara ali com 21 anos. E bastaram "dois anos e 45 dias" de imagens, sons, gestos e movimentos para determinar o rumo da sua vida.

Todos os dias, este ex-combatente da guerra colonial, de 59 anos, reconstitui pelo menos um momento desse período. Mesmo quando está a dormir - tem sonhos recorrentes sobre a agonia e a morte de colegas. Todos os dias, os acontecimentos daqueles dois anos e 45 dias projectam-se vívidos diante de si. E quando fala sobre esse tempo é como se o António que temos à nossa frente, mãos sobre a mesa da sala de jantar de uma moradia na Margem Sul, recuasse no tempo e voltasse a sentir as emoções traumáticas que o prendem à guerra.

À volta dessa mesa estão também a sua mulher, Manuela, de 58 anos, e a sua filha, Rita, de 34, amarradas a uma guerra que não viveram, mas cujos efeitos sentem há muitos anos, todos os dias. Não apenas pela experiência de viver com António, que sofre de Perturbação de Stress Pós-Traumático (SPT), mas também porque essa mesma vivência provocou, primeiro em Manuela e, consequentemente, em Rita, aquilo que os especialistas designam de Perturbação Secundária de Stress Pós-Traumático. Ou seja, ambas partilham com ele a sintomatologia do stress de guerra.

Esta família integrou, por isso, o estudo realizado pela psicóloga Susana Martinho de Oliveira sobre o impacto da Perturbação de Stress Pós-Traumático nas famílias dos ex-combatentes da guerra colonial (ver texto ao lado).

Antes eram "diferentes"

António fala quase sem parar. Queda-se, porém, em alguns momentos que evoca, como se tentasse justificar a amplidão do trauma: a história do rapaz que comia o lixo dos combatentes portugueses e que, um dia, "levou com três balas na cabeça", "era um inimigo, mas era um ser humano"; ou "o rapaz que pisou uma mina e a perna desapareceu e ele na maca à espera de ser socorrido, aos gritos, era casado e tinha dois filhos, e depois acabou por morrer". As mãos tremem-lhe, desaperta um pouco a camisa por causa do calor súbito, parece estar prestes a ter uma crise de pânico.

Em Manuela e Rita não se vislumbra preocupação, conhecem de cor todos os passos destes momentos. Ouvem António quase sempre com os olhos sobre a mesa. As persianas da única janela da sala estão fechadas.

António era "diferente"; Manuela era "diferente". Toda a gente o diz, vão repetindo. Há quase 40 anos, cruzaram-se nos bailes de uma pequena freguesia do Alto Alentejo, onde ambos residiam. Estavam longe de imaginar que, após a partida de António para a guerra - "embarquei no navio Vera Cruz no dia 7 de Julho de 1971, faltavam 15 minutos para as 12h00", diz, num tom firme -, iriam iniciar uma relação epistolar. Foi uma história bonita - o avô de António, que não sabia ler e escrever, pedira a Manuela para escrever as cartas para o neto, e não tardou muito para que os jovens, apesar da distância, se enamorassem.

António regressou de Angola "a 29 de Agosto de 1973". Um mês depois, percebeu que algo mudara: somente por vergonha não se escondeu debaixo de uma mesa ao ouvir o estrépito dos foguetes lançados num dia de festa na aldeia. "Eu estava diferente. Antes era alegre, divertido. E depois fiquei muito fechado. Perguntava a mim próprio se não seria da idade."

Casou com Manuela. E ela também ficou "diferente". "Eu não era assim. Muitas pessoas notaram que eu não era a mesma depois de casada. Fiquei mais calada. Viver nesta situação...com o passar do tempo, enervamo-nos hoje e amanhã e começamos a estragar-nos por dentro."

A agressividade de António - que, entretanto, começara a trabalhar na Siderurgia Nacional - instalou-se lentamente. E o nascimento de Rita não alterou nada.

As discussões entre António e Manuela eram frequentes, dentro e fora de casa; às vezes, durante o almoço, ele tinha tanta vontade de chorar que corria para a casa-de-banho e ficava lá horas seguidas, deitado no chão.

Depois, surgiu a necessidade de isolamento (ia para a garagem e fechava-se dentro do carro), a falta de autocontrolo, a agressividade, um elevado grau de vulnerabilidade (quando era motorista numa empresa de transportes públicos, levava muitas vezes uma pasta para, nas pausas, tapar o rosto e chorar; "às vezes chorava a conduzir, com o autocarro cheio").

Rita, licenciada em Direito, cresceu "num ambiente de discussões" e desde a adolescência que teve "tendência para a depressão". "Acordava durante a noite e não conseguia respirar." Precisou de dois anos de tratamento psiquiátrico para recuperar o equilíbrio e recorrer apenas a um antidepressivo. "Não dei à minha filha aquilo que ela precisava", diz António, após ouvir Rita.

Manuela continua a precisar de medicação, sobretudo quando está "mais nervosa e ansiosa". Mas prefere as consultas da sua médica de família ao apoio médico que é dado a António (e foi dado a Rita) na APOIAR, associação para vítimas de stress de guerra, instalada em Lisboa.

A guerra já não é um tema interdito nas conversas desta família. Foram necessários muitos anos para António entender que precisava de tratamento especializado, que não poderia continuar a trabalhar (deram-lhe uma reforma antecipada por invalidez há poucos anos) e que não pode falhar a medicação diária.

"Mais de 30 anos depois do fim da guerra, custava-me a acreditar que ainda existissem efeitos." Hoje ainda os vê: nele próprio, na mulher e na filha. Nota: Todos os nomes referidos neste trabalho são fictícios, a pedido da família entrevistada.

Sugerir correcção