O direito à diferença

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Radialista, um dos principais divulgadores de música em Portugal, foi guia e símbolo de independência para sucessivas gerações

Esta imagem. Alvorada dos anos 80, Lisboa, pátio da Faculdade de Belas-Artes. Num palco improvisado tocavam os grupos Sétima Legião e Croix Sainte. A vê-los, dezenas de adolescentes, na sua maioria de gabardina antiquada, cabelos eriçados e postura cuidadosamente ausente. As cores predominantes são cinzento e preto.

No meio, um casal mais maduro. Distinguem-se com facilidade da pequena multidão. Ela, Ana Cristina Ferrão, aloirada, elegante. Ele, António Sérgio, camisa aos quadrados, botas, barba, cerveja na mão, a imagem da descontracção. Às vezes alguém se aproxima dele para o cumprimentar calorosamente. Mas mesmo os que o não fazem olham-no com respeito. Quase todos o conhecem. Visto dali, parece um guia espiritual no meio dos fiéis.

Para várias gerações, com destaque para a que cresceu nos anos 80, era uma figura venerada. Quem o conheceu pessoalmente, reconhecia de imediato a humildade no trato, a paixão da música na comunicação. Quem não o conheceu intimamente, fê-lo através dos microfones da rádio, voz singular, profunda e grave, um afecto especial pelos ouvintes, um inglês perfeito quando tinha que nomear nomes de bandas ou fazer entrevistas.

Domingo, quando se soube que havia falecido de ataque cardíaco, aos 59 anos, a Net encheu-se de mensagens de pesar. Os programas de rádio que realizou, a cultura que evidenciava, a paixão que transmitia, o pioneirismo na divulgação de grupos e estilos musicais num período em que o acesso ao novo era difícil, transformaram-no numa figura fulcral. São inúmeros os músicos, melómanos, amantes de música, que lhe devem qualquer coisa.

Ele, que nasceu em 1950, estreou-se na Renascença em 1968. Em 1977 deu início ao seu primeiro programa de autor. Chamava-se Rotação e, durante três anos, na Renascença, transformou-se no veículo de difusão das movimentações punk, pós-punk ou new wave que dominavam a Europa e os EUA. Foi também ali que bandas portuguesas como os Faíscas, Aqui Del" Rock, Corpo Diplomático e Xutos & Pontapés debutaram radiofonicamente. Não havia mais nada assim na época.

Depois mudou-se para a Rádio Comercial. Entre 1980 e 1982 realizou Rolls Rock e entre 1982 e 1993 O Som da Frente, cujo lema era "o direito à diferença". Foram os seus programas mais emblemáticos, ou pelo menos aqueles que influenciaram decididamente os anos 80.

Perceber o seu impacto é entender uma época. Portugal despertava lentamente da ditadura. O isolamento, em termos de consumos culturais, era evidente. Mas um grupo restrito de pessoas ensaiava algo de novo, desejando um país mais aberto e diverso. A música funcionava como lugar de pertença, forma "alternativa" e "diferente" - e outras palavras que hoje parecem deslocadas - de pensar e experimentar o mundo.

Em Lisboa, o Bairro Alto, enquanto fenómeno cultural, despertava. No Sete Miguel Esteves Cardoso escrevia uma coluna onde dava conta das movimentações em Inglaterra. Em espaços de concertos como o Rock Rendez Vouz e A Teia, ou em escolas como a António Arroio, grupos como os Pop Dell" Arte, URB, Croix Sainte, Mão Morta, Ocaso Épico ou Sétima Legião nasciam, juntando-se aos Xutos & Pontapés, GNR ou Rádio Macau.

Em 1982 acontece a segunda edição do festival Vilar de Mouros com U2, Echo & The Bunnymen ou A Certain Ratio. No pavilhão dramático de Cascais tocam os Clash, no Pavilhão do Restelo Siouxsie & The Banshees, na Aula Magna os Durutti Colum, no Rock Rendez Vous os Chameleons. De repente, na primeira metade dos anos 80, Portugal parecia menos isolado, tentando acompanhar o que de mais estimulante se ia passando pelo mundo.Alguém que incutia paixão

Às vezes de forma visível, outras sub-reptícia, umas vezes impulsionando, outras reflectindo, era nas emissões de O Som da Frente que tudo parecia ganhar sentido. Havia um Portugal reservado colado àquelas emissões.

Tiravam-se notas do nome dos grupos que se ouviam. Gravavam-se cassetes e partilhavam-se. Corria-se da porta do liceu para casa para não se perder pitada. Nas cidades, e na província, havia quem percebesse que não estava só. Alguém nos mostrava, através da música, que havia outros a experimentar emoções (rejeição, isolamento, confusão) que julgávamos ser só nossas.

De repente, percebíamos que havia muitos outros "diferentes", "alternativos", "vanguardistas" e outras expressões anacrónicas, mas que no tempo da adolescência marcam. O Som da Frente já não era um programa de rádio. Já não era música, apenas. Era senha de identidade trocada entre uma "imensa minoria" - o slogan que serviria, anos depois, para animar a XFM, a rádio que herdou o espírito militante daqueles anos.

Era no Som da Frente, na alvorada dos anos 80, que se podia ouvir em primeira mão grupos como os Gun Club, Joy Division, New Order, The The, Bauhaus, Cure, Associates, R.E.M., Teardrop Explodes, Smiths, Fall ou Feelies.

Para essa geração, António Sérgio foi orientador. Alguém que formava o gosto. Que incutia paixão. A mim também. Conheci-o aos 16 anos, através de dois amigos mais velhos, os irmãos João e Tó-Zé Borralho, que o visitavam às quarta-feiras, na Comercial, à Sampaio e Pina. Permutavam discos. Era o espírito da época. Não havia lojas com aquela música. Ou se pedia a amigos que viajam para o exterior ou importavam-se directamente.

Às quartas emprestavam entre si os discos que, cada uma das partes, ainda não tinha. Fui uma das vezes com eles, puto, envergonhado, para o conhecer. Depois regressei muitas mais vezes. Por vezes surgia com a mulher que o acompanhou até ao fim e que com ele colaborou sempre - a Ana Cristina Ferrão. Falava-se, claro, de música. Dos grupos que era imperioso trazer a Portugal, dos discos imprescindíveis.

Há três anos, em conversa, recordando esses tempos para um artigo nestas páginas, dizia que a música naquela época era também estilo de vida: "Existia um esforço para acompanhar um comboio de cultura, de alegria de viver, que era irreversível. Não era só música, era uma maneira de pensar que tem a ver com livros ou filmes. Aquele período foi bóia de salvação, forma de dizermos "vamos sair daqui", do marasmo dominante em Portugal."

Nem só de rádio era feita a sua actividade. Colaborou com o então semanário Blitz, no suplemento mensal Manifesto, ou em O Independente. Fez locução para TV e publicidade, trabalhou na indústria discográfica e foi um dos produtores do álbum Música Moderna dos Corpo Diplomático, que dariam origem aos Heróis do Mar. Dirigiu também a etiqueta Rotação, onde se estrearam os Xutos & Pontapés com Sémen. Seria aliás creditado como produtor do primeiro álbum do grupo e os Xutos, por sua vez, eram os autores do genérico do programa O Som da Frente.

Depois desse programa outros se seguiriam, na XFM, Best Rock e Radar (Lança-Chamas, O Grande Delta, A Hora do Lobo e, ultimamente, Viriato 25), marcando outras gerações, resistindo à perda da influência dos programas de autor e às transformações da indústria da música, mas naturalmente o seu predomínio dilui-se. O país mudou, outros guias surgiram, novas formas de consumir e descobrir música irromperam. Mas por onde passou manteve a mesma personalidade, o mesmo espírito independente. Há dois anos recebeu o apoio de figuras públicas que se insurgiram contra o afastamento da Comercial. O ano passado completou 40 anos de rádio. Mesmo assim, era um "lobo", um solitário - "em rádio estamos habituados a sentir-nos sozinhos. Sabemos lá se nos estão a ouvir 10 ou 10 mil pessoas", afirmava há dois anos à Blitz.

Há semanas, a convite do Teatro Maria Matos, fui falar sobre a minha relação com a música e como ela se tinha enquadrado na minha vida. Às tantas afirmei que a música me tinha salvado a vida. Provocação, claro. Mas também verdade, no sentido de me ter aberto portas para outros mundos (literatura, cinema, artes, países, etc.), de me ter permitido entender emoções indizíveis e de, através dela, ter feito alguns dos amigos para sempre.

E evoquei uma conversa recorrente com um deles, Luís Quintais, poeta e antropólogo. Diz ele que gostava de ter uma profissão onde sentisse que podia salvar vidas e dá o exemplo da medicina. Eu respondo-lhe que a poesia salva vidas e que existem outras actividades, desde que feitas com paixão e entendimento, que têm essa faculdade.

É nisso que acredito. Acredito que divulgar música, como o "Mestre", o "John Peel português", o "Lobo", o radialista António Sérgio fazia, salva mesmo vidas. Tenho a certeza de que muitos outros concordam comigo.

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