Cometa Pelicano

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Jorge Pelicano, o realizador do documentário "Para, Escute e Olhe", diz que não é o Michael Moore português. E que quis apenas fazer o filme dos que "ficaram esquecidos"

O primeiro "post" é das 13h36 de sábado, 24 de Outubro de 2009: "Olá a todos. O nosso documentário ‘Pare, Escute e Olhe' venceu o Prémio Internacional, Prémio Lusofonia e Prémio da Juventude do Festival Cine Eco, em Seia".
O "post" seguinte é das 23h45 do mesmo dia: "Olá a todos. O nosso documentário ‘Pare, Escute e Olhe' conquistou três prémios no DocLisboa. Venceu a Competição Portuguesa, sendo a melhor longa-metragem da competição nacional, Prémio para melhor montagem e o Prémio Escolas atribuído por um júri jovem".

Foi um sábado fora do vulgar para Jorge Pelicano e a sua equipa. O que é que um documentário sobre o risco de encerramento definitivo da linha de comboio do Tua, em Bragança, e do seu "afogamento" numa barragem, tem de tão especial para ganhar seis prémios num dia? O próprio confessa ter dificuldade em responder. "É um filme com humor, que trata bem as personagens, a nível técnico é bem cuidado, e é um filme de picos: tão depressa as pessoas se estão a rir como se comovem com a história, como quando aparecem os políticos sente-se um burburinho na sala, e mais à frente estão a rir-se outra vez. Há um misto de emoções".

Foi isso que sentiu no público que assistiu ao filme, quer em Seia quer na Culturgest, e foi isso que ouviu do júri do Doc. "Disseram-me que há ali elementos que fazem parte do cinema e também do documentário, que há humor, há partes tocantes, há revolta, há intervenção", conta ao Ípsilon, em frente a uma chávena de café, numa esplanada da Fábrica da Pólvora na Barcarena, Oeiras, perto do local onde vive.

Acredita que o facto de usar imagens de arquivo e trazer para a tela políticos - Mário Soares nos anos 80 a dizer que é preciso apoiar o interior, e que a linha do Tua é muito importante; Cavaco Silva a falar também da interioridade nos tempos em que era primeiro-ministro e a interrogar-se já como Presidente sobre "o que é que temos que fazer para que nasçam mais crianças"; José Sócrates, mais recentemente, a dizer no local onde vai ser construída a nova barragem de Foz-Tua que "só falta aqui o cimento" - faz a diferença. "Ver estes responsáveis políticos na tela da Culturgest foi [para o público] uma grande surpresa", diz Pelicano.
"Aprendo a fazer filmes"
"Acho que há realizadores que se iniciam vendo muitos filmes e depois tentam fazer inspirando-se num ou noutro autor. Eu sinto-me ao contrário: aprendo a fazer filmes", explica. Reconhece que num filme anterior, "Ainda Há Pastores", tinha uma "abordagem muito televisiva".

Mas acha que no filme que venceu o Doc e o festival de Seia já se afastou dessa linguagem. "É um filme que não tem entrevistas, que tem uma fotografia mais próxima do cinema, tem uma banda sonora original [de Manuel Faria e Frankie Chaves]".
De onde vem este documentarista português que chegou, viu e venceu? É operador de imagem da SIC, e é um autodidacta. E um persistente. "Comecei do zero". Depois de um curso de Comunicação e Relações Públicas e de um mestrado em Jornalismo, viu-se a trabalhar num "cash and carry". "Não gostava e despedi-me". Foi filmar casamentos, ganhou técnica, e quando se sentiu pronto foi "bater à porta das televisões". Teve uma oportunidade para começar a trabalhar em Coimbra e "a pouco e pouco foi surgindo uma hipótese de começar a fazer uma reportagem aqui, outra ali".
Apesar disso ainda se sentia desassossegado. Queria filmar mais. Foi assim que em 2001 se lançou no seu primeiro filme, "Ainda há Pastores". "Sentia muito a necessidade de filmar, de pegar na câmara e ir". Interessavam-lhe os problemas do interior - o despovoamento, o isolamento. Decidiu filmar pastores - e entre os poucos que ainda existem procurou o mais novo, Hermínio Carvalhinho, 27 anos na altura.
"Normalmente as pessoas não têm a possibilidade de fazer uma coisa destas: passar tempo com um pastor, perceber a vida dele numa sociedade moderna. Enquanto nós temos internet, uma namorada, a possibilidade de sair à noite, ele vive num mundo à parte, com a vida centrada naquele vale onde passa o dia todo sozinho. Fui procurar esses mundos distantes que me fascinam".
"O que é que eu fiz?"
Durante cinco anos filmou os últimos pastores da Serra da Estrela e passou muito tempo num vale a ouvir Hermínio e os outros. "Sou um realizador de documentários em ‘part-time'. Ao longo desses cinco anos continuei o meu trabalho normal de reportagem na SIC e fui fazendo o documentário nas férias e folgas. Pego em todas as folgas que tenho e parto".

Demorou algum tempo a perceber que podia ter um filme em mãos. "Fui aprendendo com os erros, até que decidi que tinha material para um documentário". Mesmo assim não acreditava que tivesse um documentário para apresentar em festivais. "Nunca tinha participado num festival, não sou do cinema", confessa. Enviou "Ainda Há Pastores" ao Doc, em 2006, e o filme não foi seleccionado. Mas o Cine Eco, de Seia, aceitou-o. "Quando entrámos na sala era simplesmente um filme sobre pastores, quando saímos ficámos surpreendidos com a reacção do público. De repente toda a gente queria falar connosco, pedir autógrafos ao pastor, e a mim próprio. Interroguei-me:'O que é que eu fiz?' e percebi que o filme tinha de facto impacto".
A partir daí os prémios sucederam-se: no Play-Doc 2007 em Tui, Melhor Filme no FICA, no Brasil, Melhor Documentário no MIVICO em Ponteares, Galiza, o Green Award em Turim, Itália, e outros no Nepal, Eslováquia, Canadá.

Quis continuar a filmar a interioridade e partiu à procura das linhas de comboio encerradas no interior do país. Parou no Tua porque achou que tinha encontrado ali todas as histórias que queria filmar. "Comecei em Bragança, passei por Mirandela, fui até ao Foz-Tua. Fui à procura das histórias ao longo da linha". Encontrou estações de comboios abandonadas e invadidas pelas silvas, velhotes que perderam o único meio de transporte que tinham, um país esquecido.
"Não me interessavam as pessoas que têm carro. Este é o filme dos que ficaram esquecidos. São poucos? Mas também são portugueses, também são pessoas, e precisam do comboio para ir comprar medicamentos, para registar o Euromilhões ou simplesmente ir passear".

Pouco depois de começar a filmar no Tua deu-se o primeiro de uma série de acidentes na linha e isso só reforçou a sua convicção de que aquela era a história que queria mostrar ao país.
"Mentiram às pessoas"
Um episódio deixou-o indignado: "Contaram-me a história da noite do roubo dos comboios [em 1992]. Foi um acto muito triste. [Os responsáveis do caminho-de-ferro] foram à estação de Bragança buscar os comboios, mas foram de noite com medo da revolta das populações". O que mais o choca é que "mentiram às pessoas, disseram-lhes que os comboios voltavam e nunca mais voltaram".

Enfiou-se nos arquivos da televisão e encontrou as imagens de uma e outra visita de políticos à região, investigou e encontrou registo de várias das promessas que ficaram por cumprir. "Quando comecei a descer a linha reparei que deixaram tudo ao abandono. Até os carris foram roubados. Aqui as estações estão de facto a morrer de pé".
Surgiu, entretanto, o anúncio da construção da barragem do Foz-Tua e Pelicano filmou as reacções das pessoas, os debates no café Lucky Luke - e, sempre, o tio Abílio sentado à porta de uma das velhas estações, a bocejar e a olhar para o relógio. "O tio Abílio representa aquela coisa muito portuguesa de ‘estar a ver passar os comboios'. O que eu queria era mostrar um Portugal que está parado, que está a ver passar os comboios".

Não se quer tornar um activista da causa da linha do Tua, quer apenas que "as pessoas vejam o filme e ajam". "Não vou assumir uma frente de luta. O meu trabalho é o de realizador". Por isso, deu-lhe "prazer ver que as pessoas saíram da sessão do Doc espicaçadas e a dizer ‘temos que fazer qualquer coisa, isto não pode ficar assim'". Tal como lhe dão prazer os emails que recebe a perguntar ‘o que é que eu posso fazer para ajudar?'.

Fez um filme com uma tese, defendendo uma ideia. Isso é assumido. Mas para ele é esse o espaço que o documentário oferece. Rejeita no entanto o que lhe têm repetido: que é "o Michael Moore português". "Nos filmes a narrativa é centrada nele, ele intervém nas situações. O meu filme não tem nada a ver com isso".  Não partiu para o Tua cheio de certezas, garante. Teve dúvidas, mas tudo o que foi vendo e ouvindo reforçou a sua convicção. Foi buscar números, comparou quilómetros de linha de comboio encerrada e quilómetros de auto-estradas, foi à Suíça filmar uma linha transformada em atracção turística para mostrar que é possível.

Diz sem falsas modéstias: "Fascina-me trazer algo de novo para o documentário em Portugal. Se calhar pensam ‘vem aí um tipo que acredita que consegue mudar o mundo'. Não é nada disso. É apenas uma visão. Mas acho que é uma visão importante".

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