"Uma pessoa do meio, com domínio das artes, pode fazer uma diferença"

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Há menos de 11 meses como directora regional de Cultura dos Açores, Gabriela Canavilhas toma hoje posse como ministra da Cultura. Tínhamos uma conversa marcada antes de sabermos da sua indigitação e mantivémo-la. Sobre os Açores, mas a ler nas entrelinhas.

Foi uma conversa marcada antes do anúncio público do novo executivo de José Sócrates e, com ele, da indigitação de Gabriela Canavilhas como nova ministra da Cultura.

Sábado, 18 de Outubro, quatro da tarde nos Açores, uma hora menos no continente: a chuva das últimas semanas parou para dar vez a uma tarde de sol nos jardins do Palácio de Sant"Ana, a residência oficial da presidência do Governo Regional.

Estamos no centro de Ponta Delgada. Calçadas estreitas, igrejas e conventos empedrados a basalto, casario branco de portas escuras, e, depois, o caminho serpenteante que leva a este improvável palácio neoclássico ao estilo francês, cheio de vidraças e colunas finas, mas rodeado de relvados e maciços de belíssimas árvores exóticas.

É fácil passarmos sem ver pela escultura de Rui Chafes que acaba de ser instalada. Surpreendentemente fácil, tendo em conta a dimensão deste enorme anel em aço negro aparentemente suspenso, a planar rente ao chão, entre o verde, ali mesmo, à direita de quem sobe.

Entre os oradores da inauguração, o crítico e poeta João Miguel Fernandes Jorge diria que Parar o Tempo - da mesma série instalada no Jardim da Sereia, em Coimbra - é como um felino que nos deixa ver apenas o brilho dos seus olhos.

Uma escultura assim, de facto, existe e não existe. O tipo de obra a pensar como exemplo numa estratégia de transformação de outros espaços públicos da ilha em espaços expositivos, diria Gabriela Canavilhas nessa tarde.

Menos de uma hora antes, Fátima Mota, co-proprietária da Galeria Fonseca Macedo, a única galeria açoriana de arte contemporânea de perfil nacional, mostrava-nos os seus acervos e, ao falar de quase dez anos de actividade num diminuto mercado isolado no meio do Atlântico, diria: "Finalmente parecem criadas as condições e estarem as pessoas certas nos sítios certos. Dantes não havia noção de que eram necessárias dotações financeiras e recursos humanos para avançar com os projectos. Agora sim, parece que o Governo Regional quer investir na cultura".

Fátima Mota refere-se ao actual Governo PS liderado por Carlos César, que tomou pela primeria vez posse como presidente regional em 1996 e que se tem mantido no cargo desde então, sempre eleito com maioria absoluta. Foi a convite de Carlos César que, a 1 de Dezembro de 2008, Gabriela Canavilhas tomou posse como directora regional de Cultura.

Canavilhas conhecia bem os Açores. Nascida em Angola em 1961, cresceu e fez a sua formação inicial entre São Miguel e as Flores, ilhas de origem dos pais. Mudou-se para Lisboa apenas para ingressar no ensino superior, entre o Conservatório de Lisboa - Curso Superior de Piano - e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa - Ciências Musicais. Em 1999, restabelecia laços com o arquipélago ao criar o Festival MusicAtlântico e ao tornar-se assessora do então director regional de Cultura, o filólogo Luiz Fagundes Duarte, no cargo entre 1996 e 1999. Em 2002, e também a convite de Carlos César, integrava como candidata independente o círculo dos Açores à Assembleia República, o ano de derrota que se seguiu à demissão de António Guterres como primeiro-ministro.

Há um dia que sabemos da sua indigitação quando Gabriela Canavilhas, afável, comunicativa e com uma postura pública sedutora - mas também uma presença enérgica e determinada -, resume: "Costuma dizer-se que Deus escreve direito por linhas tortas. Não fui para a Assembleia, mas foi assim que acabei por chegar à [Orquestra] Metropolitana [de Lisboa] para aquilo que, à partida, era uma missão impossível".

É sexta-feira, sete da tarde no continente, uma hora a mais nos Açores. Gabrielha Canavilhas acaba de aterrar em São Miguel vinda de mais uma das suas múltiplas viagens entre ilhas. Por telefone, 24 horas depois do anúncio da sua indigitação, mantém a conversa agendada uma semana antes. A missão impossível a que se refere - a (bem sucedida) reestruturação de uma orquestra cuja presidência assumiu num momento de ruptura financeira, em 2003, após o afastamento de Miguel Graça Moura (e quando começou a deixar para segundo plano a sua carreira como pianista) - é o único ponto em que nos desviamos do tema acordado: os menos de 11 meses que passaram desde que tomou posse como directora de Cultura.

Ficamos a ler nas entrelinhas e a extrapolar de uma realidade regional para uma realidade nacional. Por exemplo, quando nos diz isto: "Acho que alguém do meio, com domínio das artes e das culturas, pode fazer uma diferença. Conhece as necessidades, os caminhos e os meios para potencializar estratégias. Estratégias concertadas entre as várias artes".

Há muitos anos já - talvez desde a saída de Manuel Maria Carrilho da pasta da Cultura (1995-2000) - que a valorização do conhecimento do terreno deu vez a um discurso de valorização do "peso político" como mais-valia estratégica para a obtenção de meios financeiros acrescidos para o sector. Nos nove anos que passaram desde então, seis ministros assumiram e deixaram a pasta. O peso da Cultura continuou a diminuir, com o mais recente orçamento a rondar os 245,5 milhões de euros. Uma media de 24,55 eurosper capita.

Sem rodeios, Canavilhas já disse que é "impossível fazer mais com menos", explicando considerar que José Sócrates sabe que é necessário investir mais na Cultura.

Obra feita

Açores: 250 mil habitantes, 95 mil dos quais concentrados em Ponta Delgada (80 mil) e Angra do Heroísmo (15 mil). No último ano, o mais elevado orçamento de sempre para a Cultura: 2,6 por cento do orçamento geral, ou seja, 24 milhões de euros. Uma média de 96 eurosper capita.

"É um orçamento elevado, mas também porque há várias obras a decorrer", diz Gabriela Canavilhas.

Obras em curso, pois: por exemplo, a nova Biblioteca Pública de Angra, uma obra da arquitecta Inês Lobo, escolha arrojada para área declarada Património Mundial (orçamento: 12 milhões de euros). Em curso, também, a ampliação do museu etnográfico da Graciosa, a reconversão do Convento de Santa Bárbara em anexo do Museu Carlos Machado e a criação de um centro de artes multidisciplinar com colecção de arte contemporânea própria na Ribeira Grande, em Ponta Delgada, e a inauguração da Casa Manuel de Arriaga prevista para Agosto de 2011, a coincidir com as comemorações do centenário da implantação da República, na Horta. Mas há outro tipo de projectos, mais invisíveis, mas porventura mais essencialmente transformadores. Por exemplo, a criação recente de um saco de bolsas artísticas, bolsas de seis meses, 10 mil euros cada, para seis áreas, com dois seleccionados em cada: literatura, dança, fotografia, artes plásticas, dramaturgia e música.

Gabriela Canavilhas: "É uma opção estratégica. Uma aposta na Cultura como factor de valorização do cidadão. Até porque a Cultura é verdadeiramente transversal a todas as áreas de actuação da sociedade. Um povo mais culto tem uma consciência cívica mais desenvolvida. Um povo que se reconhece na sua história, através do seu património conservado, é um povo que sabe redimensionar-se para o futuro, Mas claro que, se não criarmos futuro hoje, no futuro não teremos passado".

O Centro de Artes da Ribeira Grande, que já tem António Pinto Ribeiro, assessor da Fundação Calouste Gulbenkian, como consultor de aquisições para a sua colecção, tem um orçamento de construção previsto de 8 milhões de euros - deverá nascer da reconversão de uma antiga fábrica. Gabriela Canavilhas diz vê-lo como "um laboratório de criação permanente", um "centro de convergência" com espaços de residência e apresentação para áreas como as artes de palco, visuais e digitais. Antes da sua abertura, prevista para Setembro de 2012, abre já no próximo ano lectivo - 2010-2011 - uma pós-graduação em Gestão Cultural ("é necessário criar quadros e recursos que possam dar vida aos espaços criados"). Em breve, também, a Galeria Fonseca Macedo, que representa um vasto conjunto de artistas locais e nacionais de várias gerações, deverá contar com apoio para que, além das feiras em que já se faz representar - a Arte Lisboa e a Arco, de Madrid -, possa começar a frequentar também a Frieze, de Londres, a mais interessante das jovens feiras internacionais.

Estamos a falar dos Açores, poderíamos estar a falar de Portugal, como todo (foi, aliás, tema polémico no início deste ano, quando dezenas de galeristas de Lisboa e do Porto encostaram o Ministério da Cultura de José António Pinto Ribeiro à parede e ameaçaram boicotar a Arco caso não fossem apoiados pelo Estado): "É necessário criar ligações com o exterior, encontrar formas de os nossos artistas serem vistos lá fora. Não queremos artistas locais, queremos artistas de perfil internacional".

Um manifesto à sua espera

Depois da inauguração da escultura de Rui Chafes, há uma semana, nos jardins do Palácio de Sant"Ana, Gabriela Canavilhas teve o seu último acto público como directora regional de Cultura no sábado - a primeira actuação, no Teatro Micaelense, da Orquestra Clássica Regional, que ajudou a criar. Hoje toma posse como ministra. Tem à sua espera um manifesto de opinião do sector das artes visuais, chocado com o afastamento de Pedro Lapa da direcção do Museu do Chiado - Museu Nacional de Arte Contemporânea. Um manifesto que, antes de ser aberto a assinatura pública, hoje, tinha já como signatários nomes frequentemente avessos a manifestações públicas e não raro discordantes entre si como os artistas Helena Almeida, Lurdes Castro, Julião Sarmento, Nikias Skapinakis e Ângela Ferreira, os galeristas Cristina Guerra, José Mário Brandão e Pedro Oliveira, os comissários Delfim Sardo, Miguel Wandschneider e Miguel von Haffe Perez, o director do Centro de Arte e Comunicação Visual, Ar.Co, Manuel Castro Caldas, e mesmo o historiador José Augusto França, que, não subscrevendo o documento, se junta em adenda manifestando "o seu apreço e simpatia pela obra realizada pelo Dr. Pedro Lapa no Museu do Chiado".

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