Sem abrigo, mas com Internet
Hoje tem 24 anos, uma aparência cuidada, não tem problemas de saúde, nem historial de abuso de álcool ou de consumo de drogas. Em Fevereiro, foi viver para uma caravana velha, que herdou do pai suicida e que está permanentemente estacionada num parque da gigantesca cadeia de lojas Walmart. A história está contada no blogue The Girls Guide to Homelesseness, que Brianna decidiu criar quando percebeu que estava prestes a tornar-se uma sem-abrigo.
À Pública, explica como nasceu a ideia: “Quando percebi que ia ficar sem casa, fui à Internet e deparei-me com alguns [blogues escritos por pessoas sem-abrigo]. Isso surpreendeu-me. Mas neles encontrei ajuda sobre como sobreviver.” Em The Girls Guide to Homelesseness, Brianna desafia a imagem convencional de um sem-abrigo. O lema do blogue é: “Podes ser um sem-abrigo, mas não precisas de ser um vagabundo.” Para além de relatos pessoais e de conselhos sobre como viver sem casa, Brianna relata ainda as peripécias que fizeram com que se tornasse numa minicelebridade (com direito a entrevistas em canais como a CNN) e revela a história da sua vida.
Nem tudo na infância de Brianna foi tão brilhante como o percurso escolar. Foi criada pela mãe, que tinha problemas de saúde mental. Diz ter sido vítima de “abusos físicos, mentais e emocionais” até aos 18 anos, quando saiu de casa para ir para a universidade. Uma vez, ainda criança, foi abusada sexualmente por um familiar. Começou a trabalhar ilegalmente aos dez anos — “sabia fazer-me passar por mais velha” — e legalmente a partir dos 12. Teve vários trabalhos temporários e, depois de tirado o curso universitário, passou rapidamente por alguns empregos mal pagos até que conseguiu uma posição como assistente executiva numa grande empresa
“Quando consegui o trabalho, respirei de alívio. Podia concentrar-me num único emprego, estava a ganhar o suficiente para viver sozinha, na minha própria casa. Aluguei um apartamento engraçado perto da praia e comecei a gozar a vida que tinha construído.”
Em 2008, porém, chegou a crise económica e mais de metade dos funcionários da empresa onde trabalhava foram despedidos — entre os quais Brianna. Deixou de poder pagar o apartamento e regressou a casa da mãe. Ao fim de poucos meses de convívio difícil, estava disposta a ir para a rua. Até que recebeu a notícia de que o pai (que não via desde os quatro anos) se tinha suicidado.
A herança, escreveu no blogue, consistia numa caravana velha, “com cheiros esquisitos (a gordura, queijo e animais/peixes mortos)”. Em vez de ir para as ruas, Brianna mudou-se para um parque de estacionamento. A caravana não tinha água, muito menos acesso à Internet. Por isso, Brianna passava muito tempo nos cafés Starbucks (uma cadeia muito popular nos EUA e que este ano chegou a Portugal), onde é possível aceder gratuitamente à Internet. O facto de ter boa aparência fazia com que ninguém a incomodasse — seria mais difícil permanecer um dia inteiro sentada a bebericar café e a navegar na Web se tivesse o aspecto típico de uma sem-abrigo.
Imagem desajustadaBrianna — com um curso superior, o rosto maquilhado e o ar sorridente das fotos que publica na Net — foge à imagem convencional de quem não tem uma casa. Mas a imagem convencional também foge frequentemente ao mundo real.
“Penso que a imagem típica [que se faz] das pessoas sem-abrigo não corresponde à realidade, ou, pelo menos, é uma imagem muito vaga e geral”, observa Duarte Brasil Paiva, presidente da Associação Conversa Amiga, que desenvolve projectos de apoio a sem-abrigo nas ruas portuguesas. “Concluo isto por conversas que tenho com amigos ou conhecidos e por reportagens televisivas sazonais.”
Paiva nota que “não há o grupo dos sem-abrigo”. Existem, antes, “pessoas muito diferentes que partilham uma mesma situação: há aqueles que gostam de ler e ocupam o seu tempo dessa forma, os que cuidam da sua higiene pessoal, os que se dedicam à pintura e desenho ou outras artes, os que socializam, os que não socializam, os que ainda sonham com outra vida ou os que já não esperam nada da vida”.
E, embora não conheça nenhum caso em Portugal de um sem-abrigo que escreva um blogue, refere que muitos dos que vivem na rua fazem parte de uma geração jovem, para quem a Web, o telemóvel e o email não são tecnologias distantes. “Já por diversas vezes fui contactado por sem-abrigo utilizando estes meios. E não há na rua apenas pessoas sem escolaridade e iletrados. Em alguns casos, é exactamente o contrário.” Na era digital, não é difícil encontrar sem-abrigo que sejam presenças assíduas online.
No blogue de Brianna há links para outros blogues, e nesses há links para outros, no tipo de corrente que é muito frequente na blogosfera — facilmente se chega às dezenas de sites, individuais ou colectivos.
Encontram-se sobretudo histórias pessoais e dicas úteis para quem vive nas ruas. Um destes blogues chama-se The Homeless Guy, está na Web há cerca de sete anos e é escrito por Kevin Barbieux.
Contrariamente a Brianna, este blogger é um veterano das ruas: tem um historial de 13 anos sem casa, a dormir em bancos de jardim, em abrigos ou dentro de carros. No blogue, vai escrevendo sobre as experiências pessoais: a ansiedade de ir a um concerto de música clássica onde toda a gente tinha roupa formal e ele nem sequer tinha tomado banho; o desabafo de estar novamente sozinho, depois de ter sido deixado por uma namorada; os problemas de “depressão e ansiedade social” que fizeram com que passasse praticamente toda a vida adulta nas ruas.
Já com um tom menos pessoal, Barbieux (que recentemente conseguiu uma casa do Estado) lançou o blogue How To Survive Homelessness. O objectivo é ajudar outros sem-abrigo: ensina quais são os melhores sítios para passar a noite ou como gerir a relação com as pessoas que chefiam as instituições de acolhimento (é uma relação delicada, sublinha, e um passo em falso pode significar perder permanentemente aquele apoio).
Barbieux é um veterano da blogosfera: em 2002, ainda antes da moda dos blogues, a conhecida revista online Salon já o descrevia como uma celebridade da Internet. O blogue Slo Homeless é outro exemplo de um site mantido por um sem-abrigo. Neste caso, o blogue divulga regularmente notícias e estatísticas sobre o assunto. E The Homeless Tales é um outro blogue, que, tal como o de Brianna, arrancou quando o autor ficou sem casa. Em menos de um ano, evoluiu de um espaço pessoal para um site que agrega testemunhos de várias pessoas, algumas sem-abrigo, outras que já o foram. A história começou em 2008, depois de Matthew Barnes, hoje com 36 anos, ter perdido (por esta ordem) a mulher, o emprego e a casa.
Paixão via TwitterAinda não eram cinco da manhã e Matthew (um inglês que trabalhava como gestor numa empresa de venda de material electrónico) já dava voltas pela sala vazia, de mala na mão e sacos aos ombros. A ideia era perceber se a bagagem não seria demasiado pesada. Era o dia 10 de Março de 2008, o último antes de o banco ao qual Matthew pedira dinheiro emprestado se tornar o dono da casa. Chovia torrencialmente. Às 4h50, fechou a porta de casa com poucas libras no bolso. Quis sair cedo para evitar o embaraço de encontrar algum vizinho. Parte desta história está escrita e fotografada no blogue The Homeless Tales. O resto foi contado à Pública em várias trocas de emails.
Não muitas horas depois de ter saído de casa, começou a passar a mala com rodinhas de uma mão para a outra — até que percebeu que tinha calculado mal o peso da bagagem que conseguiria transportar. Logo no segundo dia (depois de uma noite num jardim público) as rodas da mala encravaram. Não muitos dias depois, decidiu que tinha de se livrar do peso em excesso. Mas guardou o computador portátil. “Era um recurso inestimável, que me dava a oportunidade de mudar a minha sorte. Usava bibliotecas, cibercafés e ligações sem fios gratuitas. Lembro-me de escrever posts quando estava na tenda e só depois os colocar online. Assim que possível, investi numa placa de Internet móvel, que me permitia ligar-me em praticamente qualquer lugar que quisesse.” E, de facto, foi o computador que mudou a vida de Matthew.
Logo em Novembro de 2008, não muitos meses depois de ter ficado sem casa, foi-lhe atribuído um apartamento na Escócia, ao abrigo de um programa de alojamento do Estado. Hoje, trabalha como consultor e promotor de sites, em regime de freelancer. Começou a fazer trabalhos nesta área ainda antes de voltar a ter casa — e tudo foi resultado dos contactos que fez e do que aprendeu ao colocar online e promover o blogue The Homeless Tales. O trabalho, contudo, é esporádico e só recentemente começou a conseguir ganhar algo que se aproxima de um salário.
Dormir nas ruas (ou em pensões ocasionais) levou a que se interessasse pelo fenómeno dos sem-abrigo. Por isso, decidiu monitorizar o Twitter (a ferramenta de troca de mensagens curtas que tem ganho enorme popularidade) em busca de palavras relacionadas com o fenómeno. Foi graças ao hábito de escrutinar o Twitter que se deparou com uma mensagem que anunciava o aparecimento de um blogue que lhe pareceu interessante. Chamava-se A Girls Guide to Homelessness e era escrito por Brianna Karp.
O resto da história conta-se em poucas palavras: “Pouco depois de ter visto aquela primeira mensagem, estávamos a trocar mensagens no Twitter um com o outro, o que rapidamente evoluiu para uma troca de emails e para [conversas] no Messenger. Antes que desse por isso, estava a ter um affair online com uma rapariga que nunca tinha conhecido pessoalmente e apaixonei-me.” Viajou para os EUA e conheceu Brianna. Passou umas semanas com ela na caravana velha, que estava agora no quintal de um amigo, depois de o Walmart ter ordenado que fosse rebocada (mais tarde, a empresa voltou atrás e deu autorização para que Brianna morasse no parque de estacionamento). “Hoje somos um casal”, resume Matthew — que é também, em parte, o responsável pelo mediatismo súbito da jovem americana.
Estágio na “Elle”Brianna foi notícia depois de ter recebido uma proposta de um estágio na revista feminina Elle. Em Agosto, escreveu um email em que pedia conselhos a uma colunista veterana chamada E. Jean Carroll. Por baixo da assinatura, acrescentou Homeless, But Not Hopeless (“sem abrigo, mas não sem esperança”). Carroll gostou da carta e ofereceu a Brianna um estágio. À distância (Carroll está em Nova Iorque), Brianna teria de trabalhar uma hora por dia, seis dias por semana, a escrever num blogue da Elle e no site de Carroll, e a fazer triagem de emails. A revista pagava-lhe 150 dólares por mês.
A história poderia ter passado despercebida, não fosse Matthew, o namorado, a ter contado no blogue The Homeless Tales. A agência Associated Press apanhou a história, um ou outro órgão de informação escreveu sobre o assunto, a NBC juntou Brianna e Jean Carroll no programa de informação matinal Today Show (foi a primeira vez que as duas se encontraram pessoalmente) e o caso também foi contado pela CNN. Em semanas, a blogger sem abrigo tornou-se uma quase celebridade.
A 15 de Setembro, Brianna contava à Pública que estava a ser sondada por vários agentes literários interessados nos direitos da história. “Neste momento, tenho várias opções em aberto e estou à espera para ver o que acontece.” A 17 de Setembro, escreveu no blogue: “Recebi um telefonema a oferecer-me um emprego. Era de um sítio a que me candidatei há um mês. Perguntaram se eu podia começar imediatamente. Por isso, hoje foi o meu primeiro dia de volta ao serviço como assistente executiva.” Agora, o plano é simples: voltar a ter uma casa.
Artigo publicado na revista Pública, a 4 de Outubro