Como se fosse um filme

Às vezes pensamos se o criador não estará a querer livrar-se do seu alter-ego, Jaime Ramos

Há sempre mais do que um cadáver na vida de Jaime Ramos, o inspector da Polícia Judiciária do Porto criado por Francisco José Viegas. O autor de livros policiais e poeta costuma dizer que pelo preço que o leitor paga por um livro tem direito a várias mortes. Em "O Mar em Casablanca" aparece logo no início um morto no Vidago Palace Hotel e Viegas utiliza aquilo a que chama "um truque nojento". O morto, Joaquim de Sousa Seabra, jornalista, tem os sapatos desencontrados. Um pé não bate com o outro. Aquilo que será um gozo para o autor, deixa por várias páginas o leitor intrigado. Embora os livros de Viegas não sejam considerados policiais clássicos (há neles sempre divagações das personagens, monólogos, descrições detalhadas de lugares que ficam no outro lado do mundo, receitas de culinária, histórias da nossa História), também por lá aparecem as pistas em que se tropeça nos tais policiais clássicos. Um botão perdido, uns pés com sapatos trocados. Mas não se apoquentem. Jaime Ramos e a sua equipa vão dar resolução ao caso, como sempre.

Quem tem seguido a vida do detective Jaime Ramos espalhada pelos livros "As Duas Águas do Mar", "Um Céu Demasiado Azul", "Um Crime Capital", "Morte no Estádio", "Um Crime na Exposição" e "Longe de Manaus" sabe que é dado à melancolia (vive no Porto uma cidade com nevoeiro) e que às vezes se esquece da sua vida. Neste "O Mar em Casablanca" o seu criador fá-lo ir mais longe. Temos um Jaime Ramos adoentado, baralhado, por vezes xexé. Às vezes pensamos se o criador não estará a querer livrar-se do seu alter-ego.

Mas vamos por partes. Jaime Ramos é chamado ao Vidago para descobrir quem matou um jornalista da área de economia durante uma festa no famoso hotel Palace. A seguir, viaja para uma quinta do Douro onde um cidadão angolano, Benigno Mendonça, aparece assassinado. Como não podia deixar de ser há uma ligação entre os dois. E claro que existe uma rapariga no meio disto tudo. Chama-se Mariana. Mas essa parte fica por revelar, leiam o livro.

O que vos podemos contar é que o inspector para conseguir encaixar as peças todas do puzzle que lhe é colocado à frente tem que se confrontar com o seu próprio passado.

E por isso Francisco José Viegas regressa a África, território recorrente no seu universo e onde Jaime Ramos não foi feliz. É o regresso à guerra colonial (principalmente na Guiné); à África dos membros do Partido Comunista que acreditaram que ali podiam fazer a revolução; à África do sangrento 27 de Maio de 1977.

E o fantasma do passado que vem perturbar Jaime Ramos chama-se Adelino Fontoura, espião português, homem dos serviços de informações militares que tinha sido membro do Partido Comunista e que o inspector conheceu na Guiné e julgava desaparecido para sempre. Mas como Viegas prega partidas ao seu detective, Adelino Fontoura é afinal um sobrevivente.

Neste livro e nas histórias que nele se cruzam - e são muitas, ligadas à vida dos portugueses lá fora, aos que escolheram viver longe da pátria - há uma particularidade nova. Viegas deixou-se de estados de alma. Aproximou-se daquilo que sempre lhe disseram que não conseguiria fazer. Escreveu um policial menos temperamental. E planeou-o como se estivesse a realizar um filme.

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