Ser homossexual dá votos?

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Guido Westerwelle com Angela Merkel JOHN MACDOUGALL/AFP

Na Alemanha, a chanceler Angela Merkelprepara-separa convidar umgay assumido para número

dois do Governo. Mas há outros exemplos,

incluindo em Portugal. A política já não quer

fugir das minorias sexuais. Por Bruno Horta

Entre o espanto e a censura, o jornal sensacionalista alemãoBildescrevia em Julho de 2004:Westerwelle ama este homem. O título de primeira página encimava uma foto onde Guido Westerwelle, já então líder do partido liberal FDP, aparecia ao lado do empresário Michael Mronz. Não foi um acaso. O casal quis ser deliberadamente fotografado pela imprensa e com isso assumir a relação. Foi o culminar das declarações sexualmente ambíguas que Westerwelle até então fazia em várias entrevistas, lembra a ediçãoonline da rádio Deutsche Welle.

Depois de se assumir, Westerwelle prosseguiu alegremente a sua carreira política. Em 2006, ascendeu a líder da bancada parlamentar do FDP. E nas últimas legislativas, a 27 de Setembro, obteve 14,6 por cento dos votos dos alemães, o que representou um crescimento de 4,8 pontos percentuais em relação aos resultados que o seu partido obtivera em 2005. Agora, Angela Merkel, líder dos democratas-cristãos da CDU e reeleita chanceler nas mesmas eleições, vai convidarWesterwelle para vice-chanceler e ministro dos Negócios Estrangeiros do futuro governo de coligação CDU-FDP.

Um partido de direita com um líder assumidamente homossexual? Um ministro gaynum governo de coligação liderado por uma conservadora? Sim, é possível, na Alemanha, sem espanto ou censura. A mesma Alemanha onde desde 2001 há dois presidentes de câmara assumidamentegays: o de Berlim, Klaus Wowereit (SPD, de centro-esquerda), e o de Hamburgo, Ole von Beust (CDU).

Teremos chegado ao ponto em que a homossexualidade deixou de ser uma pedra no sapato para os políticos, incluindo os da direita, e um defeito aos olhos de muitos eleitores? Ou será a Alemanha um caso isolado?

Para Miguel Vale de Almeida, eleito deputado por Lisboa nas listas do PS nas eleições de 27 de Setembro, "toda a gente, não só os eleitores alemães, prefere que haja transparência por parte dos candidatos a cargos públicos" em relação à sua sexualidade. "Mas depois acho que as pessoas sabem separar bem as coisas, o ser gay e o ser candidato, sem fazer disso um tema." Reconhece, todavia, que "a homossexualidade não é apenas uma questão do foro privado, porque tem implicações na identidade das pessoas", logo, na forma como actuam.

A opinião é corroborada por António Costa Pinto, politólogo e estudioso das elites políticas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. "É como a infidelidade conjugal de detentores de cargos públicos: os eleitores não gostam que haja um jogo de sombras, preferem a transparência absoluta." E dá como exemplo a demissão do governador americano democrata James McGreevey, em 2004, que reconheceu publicamente ter traído a mulher (Dina Matos McGreevey, de origem portuguesa) e mantido relações sexuais com homens.

Miguel Vale de Almeida, de 48 anos, antropólogo e activista gay, é uma das poucas figuras públicas em Portugal a assumir abertamente a sua homossexualidade. Ao candidatar-se a deputado, como independente, tornou-se a segunda pessoa a fazê-lo em Portugal. O actor Mário Viegas abriu as hostilidades. Foi a votos pela UDP, também como independente, nas legislativas de 1995. No mesmo ano, anunciou a sua candidatura à Presidência da República (que retirou pouco tempo depois, por razões de saúde). A consabida homossexualidade de Mário Viegas foi formalmente anunciada pelo próprio em Setembro de 1995 no meio de uma polémica conferência de imprensa. "Sou homossexual assumido, estou na política e a UDP nunca me colocou qualquer entrave."

Nas últimas legislativas, houve pelo menos mais um candidato gayassumido: Paulo Jorge Vieira, pelo Bloco de Esquerda, activista da associação Não te Prives. E nas autárquicas de hoje vai a votos pela lista de Elisa Ferreira (PS) à Câmara do Porto o cientista Alexandre Quintanilha, cuja vida em comum com o escritor Richard Zimler é pública. O P2 tentou falar com ambos. Vieira não respondeu e Quintanilha preferiu não comentar. Numa entrevista publicada noExpresso, a 12 de Setembro, o cientista referiu-se à sua candidatura nestes termos: "Fiquei muito sensibilizado por [Elisa Ferreira] querer um cientista na sua equipa."

Governo antes de dia 9Em vários países, não faltam políticos assumidamente homossexuais em cargos públicos de destaque. O caso mais significativo é o da primeira-ministra da Islândia, Johanna Sigurdardottir, de centro-esquerda, que tomou posse em Fevereiro deste ano, depois de ter sido ministra da Segurança Social entre 2007 e 2009. Sigurdardottir, de 66 anos, tem duas filhas de um casamento com um homem e desde 2002 vive em união de facto com a jornalista e dramaturga Jonina Leosdottir.

A questão está em que tanto ela como o presidente da Câmara de Berlim e os candidatos portugueses a cargos públicos pertencem a partidos de esquerda ou centro-esquerda - em regra, mais abertos aos temas das minorias sexuais. O caso de Westerwelle é tanto mais inédito quanto ele lidera um partido liberal nos assuntos económicos, mas conservador nos costumes. E o presidente da Câmara de Hamburgo é de centro-direita.

"Tanto quanto me apercebo, não há aí necessariamente uma contradição", explica Costa Pinto. O tema da homossexualidade, segundo o politólogo, "é cada vez mais frequente nos partidos de direita". Por duas razões: "Por um lado, sentem que há uma tolerância na sociedade e não serão prejudicados nas urnas, por outro, desejam pré-ocupar com esse tema o espaço político que disputam, antes que a revelação da orientação sexual de um líder se transforme em escândalo". Costa Pinto admite, no entanto, que, "globalmente, o voto das pessoas é tanto mais conservador quanto mais frequentes são as práticas religiosas activas" e por isso, da parte de muitos partidos de direita, "ainda há receio de testar eleitoralmente os efeitos da assunção" da sexualidade dos candidatos.

Questionado sobre se esperava que a sua homossexualidade tivesse sido arma de arremesso político durante a recente campanha eleitoral, Vale de Almeida responde que não. "Os portugueses são muito acolhedores quando a assunção é feita e, nesse caso, cria-se até uma certa vergonha em contestar alguém pela sua orientação sexual." Uma tese que o antropólogo explica detalhadamente no seu último livro,A Chave do Armário (2009). Nos últimos anos, Portugal e Espanha, escreve Vale de Almeida, "passaram por fortes processos de descristianização" e por "transformações da paisagem sexual e de género". Pelo que, conclui, a sociedade e cultura portuguesa é "bastas vezes definida levianamente como "católica", "mediterrânica", "sul-europeia", "machista", "homofóbica", "conservadora", "tradicionalista", "atrasada"".

Está já a grande distância o tempo em que o vereador Havery Milk foi assassinado por um adversário político em São Francisco, EUA, a 27 de Novembro de 1978. No filme biográfico que sobre ele fez o realizador Gus Van Sant,Milk, estreado este ano em Portugal, percebe-se que Havery Milk nunca escondeu a sua sexualidade enquanto candidato a um cargo público - foi, aliás, o primeiro americano nessas condições a assumir-se. Mas percebe-se também o quanto esse pormenor pesou nas várias derrotas políticas que conheceu e, definitivamente, no seu homicídio.

O espaço e o tempo de Guido Westerwelle são outros. Angela Merkel quer ter o governo formado antes de 9 de Novembro, data do 20.º aniversário da queda do Muro de Berlim. Um conservador e homossexual de 47 anos deverá ser o representante externo da nação mais poderosa da Europa.

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