A música como lição de vida

Para Daniel Barenboim a música pode iluminar a compreensão do mundo e fomentar o diálogo e a paz. Um livro onde a filosofia musical do maestro surge em contraponto com o conflito israelo-palestiniano

A "música como escola para a vida" é uma das ideias chave do último livro de Daniel Barenboim, apresentado pelo autor por ocasião da suas recentes actuações como pianista no início da temporada Gulbenkian. Os paralelos entre a música e a vida e a forma como a arte dos sons pode iluminar a nossa compreensão do mundo percorrem a maior parte dos ensaios e reflexões coligidas em "Está tudo ligado - O poder da Música" ("Everything is connected - The Power of Music"). Tal como na música não há elementos independentes (o ritmo, a melodia, a harmonia, o tempo, etc. fazem parte de um todo orgânico), também na vida, na sociedade e na política está tudo ligado. Para o maestro e pianista israelo-palestiniano, conhecido internacionalmente pela sua brilhante carreira musical mas também pela sua empenhada acção em favor da paz do Médio Oriente, ter consciência desta evidência evitaria erros graves: "um país é uma partitura e os políticos os intérpretes" (p. 60).

Neste livro que "não é para músicos, nem para não músicos", mas se propõe chamar a atenção para "a sabedoria que se torna audível ao ouvido pensante", a música é um de dois pilares fundamentais. O outro é o conflito israelo-palestiniano e a história da Orquestra do Divã Ocidental-Oriental, que criou em 1999 com o intelectual e académico palestiniano Edward Said e que reúne num projecto comum jovens instrumentistas israelitas, palestinianos, sírios, libaneses, jordanos e egípcios. "Assistimos com entusiasmo ao que aconteceu quando um músico árabe partilhou uma estante com um músico israelita, com os dois a tentar tocar a mesma nota com a mesma dinâmica, o mesmo golpe de arco, a mesma sonoridade, a mesma expressão" (p.70), escreve Barenboim. "Se, em música, eram capazes de travar um diálogo (...) então o normal diálogo verbal, tornar-se-ia consideravelmente mais fácil" (p. 71). Um momento histórico, altamente simbólico, foi o concerto de Ramallah em 2005, evento que hoje não seria possível porque "está tudo muito pior" [ver entrevista no P2 de 27 de Setembro] e que foi acompanhado por inúmeras dificuldades a todos os níveis, relatadas de forma comovente e apaixonante pelo autor. Barenboim tem consciência de que a orquestra por si só não pode levar a paz ao Médio Oriente, mas acha que ela é pioneira como modelo alternativo e exemplo de diálogo pois "a música tem um poder que vai para além das palavras". Às múltiplas acusações de ingenuidade perante o idealismo da iniciativa, o músico tem respondido: "não será ainda mais ingénuo ficar à espera de uma solução militar que há sessenta anos não funciona?" (p. 90).

Barenboim apresenta na primeira parte do livro alguns ensaios que focam aspectos essenciais da sua maneira de ver a música e do lugar que esta ocupa no mundo de hoje. São abordados temas como "Som e Pensamento", "Escutar e ouvir?? ou "Liberdade de pensamento e interpretação". A educação do ouvido é um dos pontos vitais. A música tem uma presença cacofónica na nossa sociedade (está por todo o lado, nos elevadores, nos centros comerciais, nos aviões...) e habituámos a "ouvir sem escutar", tal como se pode "olhar e não ver". Daí ao uso indevido da música - como a utilização do "Requiem" de Mozart para vender sanitas como sucedeu num anúncio nos EUA - vai um passo.

Na segunda parte, intitulada "Variações", Barenboim fala-nos da sua relação com Bach e Mozart e da importância do seu encontro pessoal com Edward Said, Furtwängler e Boulez e retoma a questão da Orquestra e do Médio Oriente. Parte destes textos já tinha sido publicada na imprensa periódica entre 1999 e 2008. A opção de os reunir aqui acaba por tornar redundantes alguns assuntos, mas eles condensam também perspectivas que não estão na primeira parte do livro.

Se a escrita de Barenboim é sempre cativante, as suas ideias oscilam entre um pensamento profundo e alguns lugares comuns ou ideias feitas. Por exemplo, no que diz respeito ao movimento das interpretações historicamente informadas, demonstra ter uma noção bastante limitada do seu alcance. Dizer que se trata de "uma ideologia, uma visão do mundo, que faz poucas perguntas mas sabe de antemão todas as respostas" (p. 178) é um contra-senso. Um dos grandes contributos do movimento tem sido precisamente o colocar permanente de questões - antes um estilo parecido era usado para interpretar a música de todas as épocas - de tal modo que as suas abordagens estão em permanente desenvolvimento e têm actualmente ramificações muito diversas. Mas este é um episódio marginal em relação à tese central de um livro que apela sobretudo a uma visão humanista da música e ao reconhecimento do seu poder na capacidade de falar a todos os aspectos do ser humano: animal, emocional, intelectual e espiritual.

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