O parque de atracções de Philippe Quesne chega hoje à Culturgest

O teatro é aquilo que acontece quando estamos sozinhos em casa ou perdidos na floresta com neve até aos joelhos e uma canção dos Scorpions. Por outras palavras (as do Vivarium Studio, que está em Portugal para dois espectáculos): é aquilo que fizermos dele

Há dragões no teatro de Philippe Quesne - dragões como já não víamos desde que os belos cavaleiros de cabelos compridos da Idade Média os espantaram para fora do nosso imaginário de miúdos com medo do escuro -, mas quando dizemos dragões não estamos necessariamente a falar de grandes criaturas incendiárias.

Também estamos a falar dos faróis de um Citroën AX, de uma canção dos Scorpions (façam piadas à vontade, mas depois desta versão acústica deStill loving youpara flauta e guitarra a vida parece pelo menos tão maravilhosa como num filme do Capra), do número de telefone da Telepizza e de uma bomba-relógio chamada Islândia ("A Islândia é muito bizarra - é como se aquela paisagem fosse bonita de mais para ser verdade, como se aquilo tudo fosse falso. É uma natureza, digamos, sobrenatural", diz-nos Philippe Quesne ao telefone). Dragões,geysers, os Scorpions: não é bem o parque jurássico, é o parque de atracções de Philippe Quesne, a partir de hoje na Culturgest, em Lisboa.

Há muito fumo, e onde há fumo há fogo, em L"Effet de Serge(hoje e amanhã, às 21h30) e emLa Mélancolie des Dragons(5.ª, 6.ª e sábado, à mesma hora), as duas criações com que Philippe Quesne e o seu Vivarium Studio se mostram pela primeira vez em Portugal. Mas há sobretudo coisas sem importância, pequenos efeitos de uma espectacularidade minimal - coisas que, sem medo, podíamos tentar fazer em casa (e depois chamávamos os amigos, e encomendávamos umapizza), como a personagem deL"Effet de Serge.

É do lado desse teatro (do teatro que é aquilo que fizermos dele) que Philippe Quesne está: "Gosto muito dos artistas que fazem bricolage, que usam as coisas que têm em casa.L"Effet de Sergefoi um espectáculo verdadeiramente composto por aquele actor [Gaëtan Vourc"h], porque durante muitas semanas não pudemos contar com mais ninguém nos ensaios, e tem muito a ver com a vontade de dizer: qualquer pessoa pode fabricar um espectáculo em casa, essa é a liberdade que nos resta. Dizem-me que depois deL"Effet de Serge passou a haver pessoas que fazem espectáculos em casa, para os amigos, em cima da alcatifa", diz o fundador do Vivarium Studio.

Alguma coisa para mostrar

Não se passa nada a não ser isso em casa de Serge (um rapaz sozinho na sala a treinar efeitos para ter alguma coisa para mostrar nassoiréesde domingo, qualquer coisa que pode não ir muito além de uns faróis que se acendem e se apagam ao som daCavalgada das Valquírias), e é aí que Philippe Quesne está em casa. Gosta mais de pequenas do que de grandes epifanias, coisa que se torna ainda mais evidente emLa Mélancolie des Dragons, quando um grupo de metaleiros presos na neve mostra à rapariga que os vem ajudar a sua extraordinária Disneylândia de bolso (uma máquina de fumo, bolas de sabão, livros, uns quantos insufláveis: a lição é que só não temos dragões em casa porque não queremos).

O teatro de Philippe Quesne, dizíamos, tem dragões, e são verdadeiros: "É mágico perceber que aquelas criaturas negras e inquietantes que parecem respirar como seres vivos são de plástico. Podemos levantar o tapete branco que faz de neve e ao mesmo tempo acreditar na neve. O público é cúmplice do fabrico dos nossos espectáculos, porque mostramos como os fazemos - mas isso não nos impede, nem a nós nem aos espectadores, de acreditar neles."

Apesar de, em França, já terem chamado a isto que eles fazem em palco "antiteatro", as criações do Vivarium Studio não podiam ser mais furiosamente teatrais: "Nada do que eu invento é contra o teatro. É verdade que o texto não é a nossa prioridade, mas nos nossos espectáculos perguntamos sempre o que é isso da representação, o que é isso de um espectáculo, que liberdade ainda temos como artistas e o que pode acontecer quando somos espectadores", diz Quesne. Nestes dois, o jogo entre artistas e espectadores é ainda mais evidente:L"Effet de Sergeé sobre um artista solitário que recebe a visita da sua comunidade de espectadores,La Mélancolie des Dragons é sobre uma comunidade de artistas que recebe a visita de um espectador solitário. Coisas de quem sabe pôr-se no lugar de quem só está ali para ver, e de quem sabe que o que pode acontecer quando somos espectadores é tudo. "É o espectador que desencadeia tudo o que acontece aqui. E acho que isso é o sonho de qualquer espectador: poder telecomandar o espectáculo", argumenta.

Efeito dominó

Além de ser sobre as pessoas que se sentam e ficam a ver o que acontece quando as luzes se apagam, o teatro de Philippe Quesne também é sobre quem está do outro lado da cortina: "Cada espectáculo somos nós: somos nós que temos um camião com tralha e um cão, somos nós que ensaiamos num apartamento, somos nós que temos de nos apresentar diante de um público, somos nós que começamos cada espectáculo exactamente no sítio onde terminamos o anterior."

Esse jogo - a que vamos assistir já hoje quando Gaëtan Vourc"h entrar vestido de astronauta e nos disser que era assim que ele saía de cena emD"Après Nature, e depois na quinta-feira quando as perucas dos homens invisíveis ganharem vida própria e tivermos a sensação de que já vimos isso em qualquer lado - é uma coisa que eles não sabem se vão continuar a jogar. "Os nossos espectáculos têm-se sucedido em efeito dominó, mas desta vez o espectáculo tem um final muito aberto, muito à procura. As regras foram feitas para se quebrar e talvez o próximo espectáculo comece numa galáxia muito distante, até porque não sabemos muito bem em que galáxia é que este termina", avisa.

Onde quer que seja, temos uma certeza (e pomos a mão no fogo por isto, tal como pomos a mão no fogo por esta fabulosa possibilidade que é nevar a partir de quinta-feira em Lisboa): vai haver dragões.

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