"As massas não queriam fazer a revolução"

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Pedro Baptista chumbou no exame de admissão à universidade por ter citado Lenine, Marx e Freud rui gaudêncio

Antes e depois do 25 de Abril de 1974, muitos jovens portugueses contestatários abraçaram o maoísmo. Mas por que razão exerceu sobre eles tanto fascínio a via chinesa para o socialismo? Parecia-lhes o método mais radical, mais completo e mais sofisticado de combate à ditadura e, depois, à democracia burguesa. E também a ideologia que mais compreendia a mudança. Na sua maioria, foram eles, os maoístas, que, quando os tempos mudaram, mais rapidamente se adaptaram.

Pedro Baptista sente um arrepio quando fala nisto, ainda hoje. "Éramos uns 300. Juntávamo-nos, todos os sábados, para o treino militar, ali num pinhal onde fica hoje a redacção do PÚBLICO." O tom de voz torna-se apreensivo, ao contrário do que lhe é habitual, como se receasse não ser levado a sério. "Fazíamos exercícios, com o objectivo de conquistarmos a serra do Gerês."

Estávamos em 1965, no Porto, e Pedro Baptista tinha 17 anos. Vivia não longe da casa onde mora hoje, na Foz, uma zona de contrastes sociais obscenos. Pelo menos era assim que ele os via. Lado a lado com a alta burguesia e aristocracia, habitavam os pescadores e operários da Foz Velha, de cujos filhos desde cedo se fez amigo.

A consciência das injustiças veio-lhe daí. E de tudo o resto. Uma vez, ao tentar requisitar um livro da biblioteca da Cooperativa de Produção e Consumo da Foz do Douro, leu na ficha que o exemplar não fora devolvido por quem o requisitou ter sido preso pela PIDE. Quando, em 1961, Goa foi tomada pela Índia, achou justo que assim tivesse acontecido. "Fiz a analogia com o que tinha aprendido nas aulas de História sobre a independência de Portugal. E pareceu-me que a União Indiana tinha todo o direito de recuperar os seus territórios." Disse isto numa aula de Geografia e, para sua surpresa, o professor, um militar que Pedro nunca mais esqueceria, respondeu: "O senhor não deixa de ter razão, também."

Mas já antes, em 1958, Pedro Baptista, com 11 anos, se apercebera do que aconteceu com a eleição de Humberto Delgado. "Aqui a casa chegavam os três jornais do Porto, e eu, desde os dez anos, lia-os todos. E aprendi a ler nas entrelinhas. Se diziam uma coisa, o contrário é que devia ser a verdade. Se mostravam grande indignação por a ONU ter condenado Portugal numa dada situação, eu concluía logo que a ONU deveria estar certa."

Porque o regime era fechado, mas havia pistas por todo o lado, e um jovem rebelde como Pedro Baptista não perdia nenhuma. Na catequese, os padres não davam respostas às suas perguntas. Como era possível, por exemplo, que o mundo fosse injusto, sendo Deus omnisciente e omnipotente? Nunca mais foi às aulas. No colégio interno onde andava, havia um aluno negro, angolano. Um dia, Pedro ouviu dizer: "O Amadeu é a favor da independência de Angola." Mais uma vez lhe veio à cabeça a analogia com a história da independência de Portugal. E o caso do Amadeu fê-lo reflectir, e tirar conclusões, rapidamente. "Sob o ponto de vista intelectual, bastava que uma pessoa pensasse assim para que essa ideia existisse como possibilidade", diz Pedro, que viria a concluir um doutoramento em Filosofia.

A biblioteca da Cooperativa forneceu os livros que lhe foram aplacando a curiosidade. Mais tarde, na direcção da biblioteca, Pedro colaborou na organização de colóquios sobre os livros que iam sendo editados, na Europa-América, de Lyon de Castro, e na D. Quixote, de Snu Abecasis. Os livros eram apenas pretextos para discussões cuja conclusão era invariavelmente a mesma: é preciso derrubar o regime.

Isto sempre sob o olhar de um homem, que começou também a ser visto sentado, diariamente, na esplanada da Foz, onde se reunia, vinda de eléctrico, toda a juventude contestatária da cidade: o "pide da cultura". Era, durante todos esses anos, um homem conhecido e reconhecido, que era preciso fingir ignorar, enquanto habilmente se lhe trocavam as voltas.

Pedro e o seu grupo de amigos ouviam os baladeiros franceses e os roqueiros ingleses e americanos, liam os filósofos franceses e discutiam o sentido da vida e da praxis do ser humano. O relativo e o absoluto era muitas vezes o cerne dessas discussões de jovens inquietos e ávidos de acção, inspirados por Sartre e Boris Vian, em tardes inteiras na esplanada do Homem do Leme, junto ao mar, angariando a matéria dos seus próprios sonhos, e alimentando os pesadelos do ubíquo "pide da cultura". Porque talvez este fosse o único a perceber que, apesar da relatividade dos temas discutidos pelos que espiava, o que aqueles jovens realmente procuravam era o absoluto.

Os encontros no pinhal, numa zona entre a Avenida Marechal Gomes da Costa e os actuais jardins de Serralves, tinham muitas vezes como pretexto um concerto ou uma sessão informal de canções. Mas o verdadeiro motivo da reunião era o treino militar. Centenas de jovens faziam exercícios de guerrilha, manobras de ataque com armas fictícias, simulações de evacuação de feridos. O propósito final, tão claro nas suas cabeças quanto delirante, era derrubar o regime. Mas o objectivo militar imediato era tomar a serra do Gerês, para lá instalar um emissor de rádio de propaganda antifascista.

Um dos rapazes envolvidos na missão, aliás, estava, como parte do plano, a fazer um curso de rádio por correspondência. Chamava-se Mário Matos e era filho de um técnico de máquinas de escrever que pertencia, Pedro Baptista veio a saber muito mais tarde, às fileiras do Partido Comunista Português.

Nesta altura, nem Pedro nem nenhum dos seus amigos milicianos improvisados sabiam alguma coisa de comunismo ou marxismo, e muito menos de maoísmo, ainda que, involuntariamente, talvez já estivessem a agir sob a sua influência. Muitos anos mais tarde, no livro de Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus sobre o golpe de Nito Alves (Purga em Angola, 2007), Pedro leu que um grupo de militantes comunistas portugueses estivera, no início dos anos 60, em Cuba para treino militar e que teria recebido instruções para criar um "foco" de guerrilha na serra do Gerês, ainda que para isso tivessem de criar um grupo de guerrilha independente do PC. Terá essa directiva de Fidel Castro chegado ao grupo da Foz, pelo Mário Matos, através do seu pai, militante comunista?

De forma directa e consciente, Pedro só no ano seguinte começou a ter contacto com os teóricos marxistas. Aos 18 anos, conseguiu um texto de Lenine, Questões de Organização, que lhe pareceu escrito de propósito para a situação que se vivia em Portugal. "A ideia leninista pareceu-me boa para derrubar o regime. Tornei-me leninista." Leu o texto minuciosamente, várias vezes, decorou-o.

E foi por o ter citado, à mistura com Marx e Freud, que chumbou no exame de admissão à universidade. Decidiu partir para Genebra, onde estavam já vários amigos contestatários. Foram esperá-lo à estação. E a primeira pergunta que lhe fizeram foi esta: "És pró-soviético ou pró-chinês?"

Pedro demorou um minuto a reflectir. Era preciso tomar uma decisão. Disse: "Identifico-me mais com as posições da China." Os amigos disseram: "Ah, então estás safo." Foi a resposta certa. Eles eram todos maoístas. E Pedro, agora, também. Hoje, sorri ao pensar na contingência daquele momento. "Por vezes penso se esta frase não terá influenciado toda a minha vida."

Viajou pela Europa, leu tudo o que havia para ler. Uma agência de viagens soviética era de facto uma livraria de propaganda, onde as obras de Marx, Engels e Lenine se podiam levar sem pagar. Numa casa onde viveu, o antigo inquilino foi obrigado a deixar toda a biblioteca, por não ter pago a renda.

Quando regressou a Portugal, declarou aos amigos: "Encontrei o absoluto. É o marxismo-leninismo."

Pouco depois, Pedro Baptista fundou, no Porto, o jornal O Grito do Povo(1970), numa altura em que já um outro grupo de jovens tinha criado, em Paris,O Comunista (1968). A fusão dos dois daria origem, em 1973, à União Comunista Marxista-Leninista Portuguesa (OCMLP), um dos principais grupos maoístas portugueses.

Derrubar a ditadura

Tino Flores foi um dos fundadores deO Comunista. Tinha ido para França, em 1967, para escapar à guerra colonial. "Aos 16 anos, esse era o assunto que éramos obrigados a discutir", recorda ele. Porque viam os amigos de 18 anos partir para África, alguns morrerem lá, e era preciso tomar uma decisão. Os dois irmãos mais velhos de Tino já tinham ido. As opções eram: cumprir a tropa ou desertar.

"Tínhamos discussões intermináveis sobre isto. Sobre a guerra e sobre o regime. E a mim parecia-me claro que a única atitude normal, de uma pessoa decente e séria, era lutar para derrubar a ditadura." Tudo isto antes de saberem que havia uma resistência organizada e muito antes de terem lido algum teórico comunista. A guerra tornava precoce o seu interesse pela situação política e pela atitude de cada indivíduo face a essa situação.

Mas as escolhas não eram fáceis. "Ninguém sabia quando o regime iria acabar. Na altura, a perspectiva era de que duraria para sempre." Por isso, fugir para o estrangeiro podia significar nunca mais voltar. Por estranho que possa parecer, o principal tema destas discussões eram as mães. Muitos não tinham coragem de se separar da mãe para sempre. Pensavam: "Bem, vou à guerra, são três anos. Com sorte até me safo. E depois sigo a minha vida normal." Mas havia quem respondesse: "E por amor da tua mãe, vais para África matar outros jovens, tirando-os às suas mães."

Eram conversas cheias de angústia. "Desertar não significava apenas cortar definitivamente com o país e com os que amávamos. Significava também ser considerado traidor, cobarde, que não dava o coiro pela pátria. Porque era isso que se dizia. Não havia ninguém para nos encorajar, para nos explicar que também tínhamos a nossa razão."

Do grupo de 15 amigos, apenas quatro decidiram exilar-se. Estudaram as fronteiras, com mapas militares e a ajuda de contrabandistas. Tino foi levar os companheiros ao local escolhido, um a um, no seu VW Carocha. Ele foi o último a partir, para a cidade universitária de Grénoble, e depois para Paris. Como era cantor, envolveu-se facilmente nas actividades das associações ligadas à Liga do Ensino e da Cultura Portuguesa, seguidoras na sua maioria das ideias de Francisco Martins Rodrigues, que protagonizara a cisão maoísta do PC português. Na sequência do conflito sino-soviético, no início dos anos 60, e de divergências quanto à atitude a tomar face à guerra nas colónias, Rodrigues desligou-se do partido em 1963. Achava ele que era preciso fazer "guerra à guerra", em oposição às teorias mais contemporizadoras do PC.

Quando Tino Flores chegou a Paris, já o Chico Rodrigues e companheiros (João Pulido Valente e Rui D"Espiney) tinham sido presos pela PIDE. Mas os grupos radicais maoístas mantinham actividade nas associações culturais dos imigrantes e exilados. Além da oposição radical à guerra, foi a ligação à educação e cultura que aproximou Tino destes grupos.

"Eu apoiava a ideia da ligação do trabalho manual e intelectual. Combater a alienação pelo trabalho. Isso era bem compreensível pelo nosso grupo, de jovens estudantes que eram obrigados a trabalhar para sobreviver, no exílio. Havia grandes discussões entre nós e os dogmáticos, que eram intelectuais sem nenhuma conexão com a realidade".

Mas as dissensões já não eram apenas entre os comunistas pró-soviéticos e os grupos pró-chineses. Entre estes, multiplicaram-se as tendências e facções, principalmente desde a Revolução Cultural chinesa, lançada por Mao Tsetung em 1966, e também as mitificações que ela permitiu, no seio dos intelectuais de esquerda europeus, que levariam, entre outros inputs ideológicos, ao Maio de 68.

"Eu não concordava com a ideia da ditadura do proletariado", diz Tino Flores. "Foi um erro. Deveria ter-se antes falado da democracia do proletariado. E também não achava bem que só o proletariado fizesse a revolução. A ideia chinesa, de incluir os camponeses, significava a unidade de 90 por cento da população." E também lhe agradava mais o conceito de "democracia popular" do que o "social-imperialismo soviético" e o "centralismo democrático" dos partidos comunistas. Mas também não simpatizava com o "culto da personalidade" dos maoístas.

Entretanto, havia uma luta em curso, bem diferente em Portugal do que o que acontecia nos países europeus democráticos, e era preciso encontrar instrumentos e aliados. "Eu tinha as minhas causas e juntei-me aos combatentes que encontrei", diz Tino Flores. "Fui essencialmente um libertário que esteve nas lutas em que achou que devia estar." E Pedro Baptista teoriza: "Em cada época, o mundo apresenta-nos um catálogo de ideias. Eu escolhi de acordo com o que achei melhor em cada momento."

Duas tendências

As facções surgiram entre os jovens contestatários europeus, mas os maoístas portugueses importaram-nas para cá, onde a situação era completamente diferente, quer durante a ditadura, quer nos anos que sucederam ao 25 de Abril de 1974.

Pedro Baptista sempre pensou que "o marxismo tinha umhandicap: a subjugação da superestrutura cultural à infra-estrutura económica". A Revolução Cultural de Mao veio resolver o problema. A "educação das massas", a criação do "Homem novo" eram ideias fascinantes para os jovens intelectuais europeus.

"Duas tendências principais surgiram no maoísmo europeu", explica Baptista. "Uma linha mais burocrática, ligada às embaixadas da China, e uma outra mais espontaneísta, ligada a comités de base, com grande desprezo pela organização e comités centrais." Esta última linha, defendida por intelectuais como Sartre, Cohn-Bendit e outros ligados ao Maio de 68, baseava-se, segundo Baptista, não na realidade chinesa de que se reivindicava, mas em mitos fabricados pelos jovens rebeldes franceses. "Construímos os mitos que nos convêm. É muito divertido fazê-lo, e a ligação à realidade não perturba nada essa actividade."

O Comunista inseria-se nesta corrente, com a qual Pedro Baptista também simpatizava, o que levou à fusão do Grito do Povo com o grupo criado em Paris. Mas uma vez integrados na luta contra a ditadura e a guerra colonial, a linha espontaneísta mostrou as suas fragilidades. "Nós, aqui, não queríamos apenas assustar o De Gaule. Tínhamos tarefas bem concretas pela frente", admite Baptista.

Outro partido, também criado por exilados portugueses em França, talvez se identificasse mais com a ortodoxia do PC chinês - o Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista (PCP (m-l)), de Eduíno Vilar. Também o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), fundado em 1970 e chefiado por Arnaldo Matos, se inscrevia (ainda mais) nessa ortodoxia.

António Costa Pinto, que tinha estado interno num colégio católico, entrou em contacto com os controleiros do PCP (m-l) quando, em 1970, chegou à turma de Direito do liceu Pedro Nunes, em Lisboa. Foi a consciência da injustiça do regime que o levou à actividade militante. "Mas porque não a estar ao lado dos oposicionistas liberais?", interroga-se hoje. Teria sido a opção mais racional. Mas, na época, "a racionalidade tinha pouca força. A ideologia era tudo". E as opções não tinham a ver com a existência da ditadura em Portugal, "porque em França e noutros países era a mesma coisa. O maoísmo português não é tardio". O clima de rebeldia era geral e nasceu com a contestação à guerra do Vietname e com o Maio de 68. A pertença a grupos radicais cumpria uma necessidade identitária dos jovens. Esses grupos podem considerar-se como "fenómenos sociais totais", no sentido que lhe atribuiu Marcel Mauss: tal como uma seita, possuem um carácter de totalidade concreta, simultaneamente jurídica, económica, religiosa e estética.

"É como pertencer a uma organização de elite, que nos permite afastarmo-nos da massa anónima. Há um espírito de vanguarda que dá sentido à existência", explica Costa Pinto, que é hoje professor de Ciência Política no Instituto de Ciências Sociais. "Mais do que maoísta, eu era neo-estalinista, por mais que seja ridículo dizer isto hoje." A diferença, parece, é que tendia a "separar a mobilização associativa da política".

As diferenças, aliás, por mais subtis que se nos afigurem, eram o cerne da afirmação ideológica e identitária destes grupos. "Por vezes, o que nos separava de outro partido não era mais do que uma pluma. Uma divergência de interpretação de uma frase de Marx, por exemplo. Líamos os clássicos em busca da pureza ideológica, numa adopção dogmática da tradição."

Mas era também importante ser mais sofisticado que o partido vizinho. O MRPP, por exemplo, era considerado demasiado ortodoxo e seguidista do PC chinês, muito básico, pelos jovens do PCP (m-l). "Víamo-lo como uma caricatura de um partido maoísta", confessa Costa Pinto, cujo grupelho era, por sua vez, acusado por outros grupelhos de ter sido criado e financiado pela CIA. "Mas ao mesmo tempo tínhamos algum ciúme do MRPP, um medo de sermos ultrapassados pela esquerda."

No movimento imparável de dissidências e fusões, antes e depois de 1974, Pedro Baptista ainda tentou unir a OCMLP ao MRPP. Mas não logrou, na altura, contactar Arnaldo Matos. Quando o conseguiu, já este enveredara pelo culto da personalidade de uma forma demasiado exagerada para o gosto daquele. Arnaldo auto-intitulara-se o "Grande Educador da Classe Operária" e obrigava os seus camaradas a cumprimentarem-se com um hilariante "Longa vida ao camarada Mao".

Pistola na gaveta

Mao Tsetung "era uma figura densa, fabulosamente inteligente e culta", reconhece José Luís Saldanha Sanches, que foi dirigente do MRPP. Sob vários pontos de vista, era também "uma reprodução da figura do Imperador. Até o harém tinha". Mas fascinava e inspirava uma juventude em busca de um ideal radical. Em Portugal, a adesão ao maoísmo explica-se pela "inquietação" de muitos jovens. "A ideia de uma alteração completa da sociedade." Porque há 40 anos a pobreza era real em Portugal. Os operários não tinham carro. Havia fome. Para muitos, "o PC foi uma desilusão. Os democratas como Mário Soares pareciam-nos aburguesados, com os seus fatos elegantíssimos". O maoísmo surgia a muitos como a solução. E também uma atitude intelectual mais sofisticada. "Era uma espécie deupgrade do marxismo soviético. Era como passar do Windows XP para o Windows Vista."

Era uma ferramenta ideológica mais eficaz, pensavam na altura. "Permitia um idealismo mais vivo. Os textos teóricos incluíam poemas. Era para pessoas mais exigentes. Nós líamos muito, embora não tivéssemos tempo para reflectir. Estávamos ocupados, e esgotados, com a acção."

Porque era precisamente para a acção que o maoísmo servia. Ao contrário do PC, que, contaminado pela teoria krustchoviana da coexistência pacífica, estava à espera do momento da grande revolução nacional, os maoístas queriam acção. Os seus manuais forneciam instruções úteis: a guerrilha, as tácticas de conjuntura, como a de atacar o inimigo mais próximo, ou considerar nosso amigo o inimigo do nosso inimigo. Não é certo se isto terá ajudado a derrubar a ditadura, ou apenas contribuído para a confusão, tornando inúteis os grupos maoístas. O certo é que eles tinham a intenção de atacar o poder com armas. Ao contrário do PC, que encorajava os jovens a ir para a guerra e a desertar na frente de batalha, os maoístas instruíam os seus militantes para que desertassem antes do embarque, trazendo as armas, depois de terem aprendido a usá-las.

"Nós tínhamos armas suficientes para fazer um golpe contra o regime", diz Pedro Baptista. Não o tentaram porque consideraram que as massas não estavam ainda preparadas. Segundo a doutrina maoísta, a revolução deveria ser feita pelas massas, no momento próprio, e não através de acções isoladas de desgaste.

Quanto a isto, houve tantas teorias quantos os grupos, que foram dezenas. Mas uma ideia era comum: a importância das massas. "Nunca soubemos exactamente o que era isso das massas", confessa Saldanha Sanches, hoje professor de Direito Fiscal. "Mas enchíamos a boca com essa palavra."

Até que, a certa altura, perceberam (pelo menos a maior parte percebeu) que "as massas não queriam fazer a revolução". E que a própria China não estava muito interessada em ajudar. Uma vez, por ocasião da morte de Chu En-Lai, em Janeiro de 1976, Arnaldo Matos achou que era chegada a hora de enviar uma delegação ao funeral, conta Saldanha Sanches. Um camarada militante e outro simpatizante (o hoje sexólogo Afonso de Albuquerque, que pagou a viagem) partiram para Pequim, mas, como não tinham visto, não os deixaram entrar no país. Esperaram no aeroporto pelo primeiro avião de regresso.

Dois dias antes do 25 de Novembro de 1975, que marcou o fim do PREC, Saldanha Sanches, que era director do jornal Luta Popular, decidiu deixar o partido. "Abri a gaveta da minha secretária, na sede, tirei a minha pistola, carreguei-a e fui para casa." Durante vários dias, ficou à espera da retaliação, de arma sempre à mão.

António Costa Pinto ainda se manteve ligado aos grupos radicais até aos 28 anos, quando todos os esquerdistas se juntaram na candidatura de Otelo à Presidência.

Tino Flores também fez parte da Frente de Unidade Popular (FUP), que apoiou Otelo. Pedro Baptista abandonou a luta no 11 de Março de 1975. No 25 de Novembro, apoiou o Grupo dos Nove e Ramalho Eanes, porque percebeu que a via revolucionária seria dominada pelo PCP. "Segui as ideias maoístas mas soube parar antes que me levassem ao crime. Porque a racionalidade poderia levar-me a isso. É o abismo da razão", diz ele, que é hoje dirigente do PS.

"Não sei se eles deixaram de ser maoístas", diz Tino Flores de todos os que, na juventude, abraçaram a via chinesa para o socialismo. "Faz parte do maoísmo a capacidade de mudar. Eu, pelo menos, nesse sentido, ainda sou maoísta."a

paulo.moura@publico.ptauto-intitulara-se o "Grande Educador da Classe Operária" e obrigava os seus camaradas a cumprimentarem-se com um hilariante "Longa vida ao camarada Mao".

Mao Tsetung "era uma figura densa, fabulosamente inteligente e culta", reconhece José Luís Saldanha Sanches, que foi dirigente do MRPP. Sob vários pontos de vista, era também "uma reprodução da figura do Imperador. Até o harém tinha". Mas fascinava e inspirava uma juventude em busca de um ideal radical. Em Portugal, a adesão ao maoísmo explica-se pela "inquietação" de muitos jovens. "A ideia de uma alteração completa da sociedade." Porque há 40 anos a pobreza era real em Portugal. Os operários não tinham carro. Havia fome. Para muitos, "o PC foi uma desilusão. Os democratas como Mário Soares pareciam-nos aburguesados, com os seus fatos elegantíssimos". O maoísmo surgia a muitos como a solução. E também uma atitude intelectual mais sofisticada. "Era uma espécie deupgrade do marxismo soviético. Era como passar do Windows XP para o Windows Vista."

Era uma ferramenta ideológica mais eficaz, pensavam na altura. "Permitia um idealismo mais vivo. Os textos teóricos incluíam poemas. Era para pessoas mais exigentes. Nós líamos muito, embora não tivéssemos tempo para reflectir. Estávamos ocupados, e esgotados, com a acção."

Porque era precisamente para a acção que o maoísmo servia. Ao contrário do PC, que, contaminado pela teoria krustchoviana da coexistência pacífica, estava à espera do momento da grande revolução nacional, os maoístas queriam acção. Os seus manuais forneciam instruções úteis: a guerrilha, as tácticas de conjuntura, como a de atacar o inimigo mais próximo, ou considerar nosso amigo o inimigo do nosso inimigo. Não é certo se isto terá ajudado a derrubar a ditadura, ou apenas contribuído para a confusão, tornando inúteis os grupos maoístas. O certo é que eles tinham a intenção de atacar o poder com armas. Ao contrário do PC, que encorajava os jovens a ir para a guerra e a desertar na frente de batalha, os maoístas instruíam os seus militantes para que desertassem antes do embarque, trazendo as armas, depois de terem aprendido a usá-las.

"Nós tínhamos armas suficientes para fazer um golpe contra o regime", diz Pedro Baptista. Não o tentaram porque consideraram que as massas não estavam ainda preparadas. Segundo a doutrina maoísta, a revolução deveria ser feita pelas massas, no momento próprio, e não através de acções isoladas de desgaste.

Quanto a isto, houve tantas teorias quantos os grupos, que foram dezenas. Mas uma ideia era comum: a importância das massas. "Nunca soubemos exactamente o que era isso das massas", confessa Saldanha Sanches, hoje professor de Direito Fiscal. "Mas enchíamos a boca com essa palavra."

Até que, a certa altura, perceberam (pelo menos a maior parte percebeu) que "as massas não queriam fazer a revolução". E que a própria China não estava muito interessada em ajudar. Uma vez, por ocasião da morte de Chu En-Lai, em Janeiro de 1976, Arnaldo Matos achou que era chegada a hora de enviar uma delegação ao funeral, conta Saldanha Sanches. Um camarada militante e outro simpatizante (o hoje sexólogo Afonso de Albuquerque, que pagou a viagem) partiram para Pequim, mas, como não tinham visto, não os deixaram entrar no país. Esperaram no aeroporto pelo primeiro avião de regresso.

Dois dias antes do 25 de Novembro de 1975, que marcou o fim do PREC, Saldanha Sanches, que era director do jornal Luta Popular, decidiu deixar o partido. "Abri a gaveta da minha secretária, na sede, tirei a minha pistola, carreguei-a e fui para casa." Durante vários dias, ficou à espera da retaliação, de arma sempre à mão.

António Costa Pinto ainda se manteve ligado aos grupos radicais até aos 28 anos, quando todos os esquerdistas se juntaram na candidatura de Otelo à Presidência.

Tino Flores também fez parte da Frente de Unidade Popular (FUP), que apoiou Otelo. Pedro Baptista abandonou a luta no 11 de Março de 1975. No 25 de Novembro, apoiou o Grupo dos Nove e Ramalho Eanes, porque percebeu que a via revolucionária seria dominada pelo PCP. "Segui as ideias maoístas mas soube parar antes que me levassem ao crime. Porque a racionalidade poderia levar-me a isso. É o abismo da razão", diz ele, que é hoje dirigente do PS.

"Não sei se eles deixaram de ser maoístas", diz Tino Flores de todos os que, na juventude, abraçaram a via chinesa para o socialismo. "Faz parte do maoísmo a capacidade de mudar. Eu, pelo menos, nesse sentido, ainda sou maoísta." apensasse assim para que essa ideia existisse como possibilidade", diz Pedro, que viria a concluir um doutoramento em Filosofia.

A biblioteca da Cooperativa forneceu os livros que lhe foram aplacando a curiosidade. Mais tarde, na direcção da biblioteca, Pedro colaborou na organização de colóquios sobre os livros que iam sendo editados, na Europa-América, de Lyon de Castro, e na D. Quixote, de Snu Abecasis. Os livros eram apenas pretextos para discussões cuja conclusão era invariavelmente a mesma: é preciso derrubar o regime.

Isto sempre sob o olhar de um homem, que começou também a ser visto sentado, diariamente, na esplanada da Foz, onde se reunia, vinda de eléctrico, toda a juventude contestatária da cidade: o "pide da cultura". Era, durante todos esses anos, um homem conhecido e reconhecido, que era preciso fingir ignorar, enquanto habilmente se lhe trocavam as voltas.

Pedro e o seu grupo de amigos ouviam os baladeiros franceses e os roqueiros ingleses e americanos, liam os filósofos franceses e discutiam o sentido da vida e da praxis do ser humano. O relativo e o absoluto era muitas vezes o cerne dessas discussões de jovens inquietos e ávidos de acção, inspirados por Sartre e Boris Vian, em tardes inteiras na esplanada do Homem do Leme, junto ao mar, angariando a matéria dos seus próprios sonhos, e alimentando os pesadelos do ubíquo "pide da cultura". Porque talvez este fosse o único a perceber que, apesar da relatividade dos temas discutidos pelos que espiava, o que aqueles jovens realmente procuravam era o absoluto.

Os encontros no pinhal, numa zona entre a Avenida Marechal Gomes da Costa e os actuais jardins de Serralves, tinham muitas vezes como pretexto um concerto ou uma sessão informal de canções. Mas o verdadeiro motivo da reunião era o treino militar. Centenas de jovens faziam exercícios de guerrilha, manobras de ataque com armas fictícias, simulações de evacuação de feridos. O propósito final, tão claro nas suas cabeças quanto delirante, era derrubar o regime. Mas o objectivo militar imediato era tomar a serra do Gerês, para lá instalar um emissor de rádio de propaganda antifascista.

Um dos rapazes envolvidos na missão, aliás, estava, como parte do plano, a fazer um curso de rádio por correspondência. Chamava-se Mário Matos e era filho de um técnico de máquinas de escrever que pertencia, Pedro Baptista veio a saber muito mais tarde, às fileiras do Partido Comunista Português.

Nesta altura, nem Pedro nem nenhum dos seus amigos milicianos improvisados sabiam alguma coisa de comunismo ou marxismo, e muito menos de maoísmo, ainda que, involuntariamente, talvez já estivessem a agir sob a sua influência. Muitos anos mais tarde, no livro de Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus sobre o golpe de Nito Alves (Purga em Angola, 2007), Pedro leu que um grupo de militantes comunistas portugueses estivera, no início dos anos 60, em Cuba para treino militar e que teria recebido instruções para criar um "foco" de guerrilha na serra do Gerês, ainda que para isso tivessem de criar um grupo de guerrilha independente do PC. Terá essa directiva de Fidel Castro chegado ao grupo da Foz, pelo Mário Matos, através do seu pai, militante comunista?

De forma directa e consciente, Pedro só no ano seguinte começou a ter contacto com os teóricos marxistas. Aos 18 anos, conseguiu um texto de Lenine, Questões de Organização, que lhe pareceu escrito de propósito para a situação que se vivia em Portugal. "A ideia leninista pareceu-me boa para derrubar o regime. Tornei-me leninista." Leu o texto minuciosamente, várias vezes, decorou-o.

E foi por o ter citado, à mistura com Marx e Freud, que chumbou no exame de admissão à universidade. Decidiu partir para Genebra, onde estavam já vários amigos contestatários. Foram esperá-lo à estação. E a primeira pergunta que lhe fizeram foi esta: "És pró-soviético ou pró-chinês?"

Pedro demorou um minuto a reflectir. Era preciso tomar uma decisão. Disse: "Identifico-me mais com as posições da China." Os amigos disseram: "Ah, então estás safo." Foi a resposta certa. Eles eram todos maoístas. E Pedro, agora, também. Hoje, sorri ao pensar na contingência daquele momento. "Por vezes penso se esta frase não terá influenciado toda a minha vida."

Viajou pela Europa, leu tudo o que havia

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