Na Síria antiga, entre uma cidade imperial e o melhor castelo do mundo

Castelos com fossos ainda cheios de água, planaltos com templos sobre o Eufrates, anfiteatros com ruínas onde ainda vive gente,
o deserto de uma rainha lendária e uma grande cidade da Suméria. Última parte de uma viagem pela história dos homens na Síria.
Por Alexandra Lucas Coelho, na Síria

Salahaddin, Masyaf e Krak des Chevaliers
Três castelos
Há tantos castelos na Síria que é possível viajar pelo país de castelo em castelo, entre o Mediterrâneo e o Eufrates.
O mais variado talvez seja Qa'alat Salahaddin, o Castelo de Saladino, no Norte do país, não muito longe da costa.
O viajante vem de Latakia, repugnado com o que o regime sírio fez ao mar desta milenar cidade (tapou-o com um porto de betão, contentores e outros horrores), mas uma hora depois está numa paisagem de montanha verdejante. E de repente vê um castelo no pico mais alto. Então a estrada começa a descer dramaticamente, até um riacho, passa uma ponte e volta a subir dramaticamente. O fim da estrada é uma garganta, e no cimo de uma das escarpas está o castelo.
A escala é esmagadora. O viajante avança como um peão minúsculo entre as escarpas, sabendo que a garganta é artificial, foi escavada por mãos humanas, a mando dos cruzados cristãos do século XII, que queriam isolar o castelo do resto da montanha. E deixaram um pináculo entre as duas escarpas, para marcar a intervenção humana.
Um pouco adiante há vendedores de bugigangas e refrescos a aproveitar os muitos turistas - ocidentais misturados com muçulmanos, mulheres de chador iraniano e grandes famílias árabes.
Depois sobe-se por uma grande escadaria de pedra entre pinheiros, até à entrada, e a partir daí podem ser horas até se conseguir explorar tudo. Há capelas bizantinas, mas também uma mesquita, e há palácios, banhos e uma cisterna, mas também torres, estábulos e subterrâneos. Porque primeiro houve bizantinos, depois cruzados, até que, em dois dias, Salahaddin - para os árabes, o herói anticruzadas - cercou, entrou e até hoje deixou aqui o seu nome.
Era um castelo longe de tudo, e ainda é.
Já Masyaf, mais a sul, está no meio de uma povoação. É mais pequeno e simples do que Salahaddin, mas ganha na relação com o presente. À sua volta é o desastre cinzento do urbanismo contemporâneo, e a coexistência de tudo na mesma paisagem fala pela própria Síria.
A seguir, uma longa estrada de curvas desce e sobe até ao Krak des Chevaliers, o castelo que todas as crianças têm na cabeça, e que T. E. Lawrence disse ser o melhor do mundo.
Não desilude. Até tem uma água verde, lodosa, no fosso. E gigantescos torreões circulares com ameias, cercados por uma muralha que é possível percorrer a pé, ao longo de formidáveis paredes de pedra branca, com tufos verdes nos interstícios.
Está tão intacto que os cruzados podiam ter desistido dele ontem, derrotados pelas tropas mamelucas.
E qualquer lisboeta empalidece à recordação do Castelo de São Jorge.
Ma'alula
Aramaico e uma garganta
Bem mais para sul, já perto de Damasco, esta aldeiazinha cristã incrustada na rocha tem duas atracções. A primeira é uma garganta ondulante, onde em muitos pontos só cabe uma pessoa. A segunda é o facto de as pessoas falarem aramaico.
Por exemplo, no largo onde param os transportes vindos de Damasco, o anfitrião do restaurante tem uma tatuagem em aramaico no braço, para que ninguém se esqueça de perguntar.
- Que letras são essas no seu braço?
- Ah, isto é aramaico. Somos os últimos falantes da língua de Cristo.
E vai buscar um livro, a ver se a gente quer comprar, além das desastrosas sanduíches que a gente já comprou.
Junto ao largo há um mosteiro de mulheres, reconstruído, e seguindo pela esquerda o viajante vai dar à tal garganta. Não é a fantástica garganta de Petra, mas é um quarto de hora agradável. Há muitos sírios em visita, a pedra calcária é de um belo ocre, a subida é suave.
Lá em cima existe um hotel irremediável de tão grande e feio, e mais adiante outro mosteiro, Deir Mar Sarkis, com uma igreja reconstruída onde estão alguns ícones medievais e do século XVIII.

SeidnayyaVirgem fértil
Entre Ma'alula e Seidnayya não há transportes, é preciso negociar com um táxi por 500 libras (7,5 euros).
O táxi faz a estrada, repleta de mais horrores urbanísticos e depois atravessa Seidnayya. No topo de tudo fica o convento, lugar de peregrinação para muçulmanos além de cristãos, por causa da Virgem.
Lá dentro é hora da missa. Freiras de preto, com uma espécie de capuz medieval, vigiam os turistas constantemente.
- No photo! No photo!
E enxotam-nos se os apanham no pátio onde a roupa está estendida.
É um estendal de lençóis, todos iguais, com um inesperado padrão de leopardo.
Mas os terraços e pátios são agradáveis, há árvores e sobretudo há o santuário onde está a Virgem, uma espécie de capela sem janelas, toda cercada por ícones, só iluminada por velas. O único ícone que não se vê é o da própria Virgem, guardada atrás de duas portas de prata gravada. As mulheres ajoelham-se, beijam e tocam nas portas. Uma freira unta-lhes a testa com azeite e põe-lhes um cordel no pulso. Tudo isto são promessas para ter um filho. E é por isso que as muçulmanas vêm, se ajoelham, e até dormem junto à Virgem de Seidnayya.
Bosra
Há vida nas ruínas
No extremo sul, junto à fronteira com a Jordânia, fica um dos mais espantosos anfiteatros romanos do mundo.
Quando se entra, parece uma fortaleza, e é. Depois do século XII os muçulmanos fortificaram-no por causa dos ataques dos cruzados. Então, o viajante atravessa abóbadas obscuras, apenas com estreitas clarabóias ao alto, perde-se em corredores e escadas e de repente desemboca ao ar livre, no vertiginoso anfiteatro de basalto que os romanos construíram no século II.
Bosra era então nada menos que a capital da província romana da Arábia, e a monumentalidade deste teatro é disso um testemunho, com 15 mil lugares, colunas coríntias douradas no palco, contrastando com a plateia negra, e uma acústica quase assustadora.
Mas para ter uma dimensão do que foi este lugar é preciso continuar além do teatro, pelas ruínas da cidade, onde colunas romanas e templos pagãos se cruzam com igrejas bizantinas, mesquitas e sobretudo a vida das pessoas.
Porque ao lado de um velho banho romano há parabólicas enferrujadas. E junto ao palácio de Trajano há muros milenares que foram pintados de branco, com uma porta verde ou rosa a marcar os novos habitantes, e até pequenos quintais floridos.
Famílias sírias ocuparam as moradas da antiguidade, e fazem disto um lugar onde passam crianças de bicicleta, e mulheres com sacos de compras. A vida um nível acima do nível romano, entre ruínas.

PalmiraDeserto imperial
No Verão, com sol alto, Palmira é uma insolação, um chapão de luz. É preciso acordar às cinco, antes do amanhecer, para ir até ao cimo da cidadela e aí ver o sol aparecer, iluminando lentamente as ruínas como se também elas estivessem a aparecer.
Vale mesmo a pena ficar uma noite, porque é antes e depois dela que se faz a melhor luz.
Petra é um esplendor esculpido na rocha, mas Palmira é o esplendor erguido do nada, em pleno deserto. Nenhuma cidade antiga será ao mesmo tempo tão remota e majestosa.
Colunas e templos de um levíssimo dourado, que ao anoitecer há-de parecer rosa, e à noite, iluminado por holofotes, será fantasmático, atravessado pelo rugido de motocicletas. São guias de ocasião e vendedores ambulantes com os braços cheios de colares. De dia enrolam panos árabes à volta da cara, por causa do calor, e enfrentam a concorrência de guias a camelo, à cata de turistas.
Mas está longe de ser como nas pirâmides do Egipto. O viajante pode andar horas em Palmira sem ver ao perto ninguém, sobretudo antes das oito da manhã.
E depois, a partir das nove, abre o templo de Bel, o maior e mais intacto. E a seguir as torres funerárias, onde os nobres e as nobres de Palmira repousavam para sempre, com as suas sedas e os seus toucados. Esta é a cidade da lendária Zenóbia, a rainha que Aureliano levou a Roma como um troféu.

Dura EuroposCristãos, judeus e pagãos
É quase junto à fronteira com o Iraque, num vasto planalto sobre o Eufrates, que corre lá em baixo, a 100 metros.
Fundada por um império helenista, os selêucidas, Dura Europos foi tomada pelos partas, e, já depois de Cristo, pelos romanos. Tornou-se então um lugar único de coexistência religiosa, com judeus, cristãos e pagãos a influenciar-se mutuamente.
A mais radical prova dessa troca é a sinagoga encontrada em Dura Europos e que agora está no Museu de Damasco. Ao contrário do que costuma acontecer no judaísmo, em que não há representações figurativas, na sinagoga de Dura Europos as paredes estão cheias de frescos com personagens bíblicas, espantosamente conservados por terem passado quase dois mil anos debaixo de terra.
O viajante que viu isto no museu chega agora a este confim da Síria, a arder ao sol de Agosto.
Não há um único turista. O portão ainda está fechado. Há que acordar o guarda no seu cubo de cimento. E quando se entra, é como entrar num deserto que termine ali à frente abruptamente, num precipício.
À direita, os vestígios da igreja cristã e o templo de Zeus Kyrios. À esquerda, a sinagoga onde estavam os frescos, depois a ágora, o castelo real e a cidadela, de onde o rio se vê, entre campos férteis. Mais à esquerda, o templo de Bel, ainda com colunas.
E ninguém, nesta imensidão de 80 hectares, outrora uma cidade fabulosa. Pedras, areia e vento, cobras, lagartos e escorpiões.
Mari
O labirinto de terra
A Síria acaba aqui, antes do Eufrates entrar no Iraque. Foi nesta zona do rio que há cinco mil anos existiu a grande cidade de Mari, entreposto entre Norte e Sul. As maravilhosas estátuas de Mari - sumérios de alabastro com saias de folhas, grandes olhos de lápis-lazuli e as mãos postas uma sobre a outra - estão hoje nos museus, do Louvre a Deir-Ez-Zor.
Ninguém à entrada. Um painel diz "buy tiget", outro "good bay". Os guardas acordam, vendem o bilhete, apontam o caminho para a colina cor de terra e voltam a deitar-se.
Do cimo da colina vê-se ao fundo uma aldeia, com o minarete da mesquita e as casas de cimento, mas aqui, nesta imensa extensão arqueológica, tudo o que se ergue é cor de terra.
Do lado direito há sobretudo fundações e alicerces. O lado esquerdo oferece mais, zigurate e muros de adobe refeitos. E, coberto por uma larga protecção, o palácio real a um nível subterrâneo, escavado e limpo.
É então neste labirinto nu de 300 divisões, com muros altos cobertos por terra, palha e água, que o viajante experimenta algo do que foi uma antiga cidade suméria.

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