A brutalidade bela – entrevista de Paula Rego ao PÚBLICO

A Casa das Histórias — Museu Paula Rego é inaugurada no dia 18, em Cascais. Edifício do arquitecto Eduardo Souto Moura. Direcção de Dalila Rodrigues. Duas exposições anuais, além da colecção permanente. Consagração em vida de uma artista imensa. Paula Rego está nervosa. Artigo recuperado a propósito da morte de Paula Rego.

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Paula Rego, fotografada em 2007 Enric Vives-Rubio/arquivo

Há nela uma imprevisibilidade de criança. Uma brutalidade sem filtro. Uma contradição permanente. Uma sensibilidade e inteligência finas. Um gosto pelos vestidos. O sangue e a fantasia. Como no verso de Amália: “Se o meu sangue não me engana, como engana a fantasia.” É à vez o anjo da guarda e o anjo vingador, armada de esponja e de espada. É à vez uma adulta medrosa, uma criança curiosa.

Quem é ela? Ela escreve uma carta em que diz assim: “Chamo-me Paula Rego e sou pintora” (carta para Souto Moura). Diz o mesmo ao telefone a Dalila Rodrigues: “Fala Paula Rego, sou pintora"; a historiadora de arte sabia, o mundo todo sabia disso...
O mundo sabe dela. Dizer que é a mais internacional das artistas portuguesas é pouco. Dizer que o New York Times indicou Casa das Histórias como um dos acontecimentos do Verão ajuda a compreender o peso crescente de Paula Rego na cena internacional, sobretudo nos Estados Unidos. Em Inglaterra, ela é tida como “uma artista inglesa”, indiscutível.

Alguns momentos de uma coisa que ela detesta, a carreira: exposição retrospectiva e essencial na Tate Britain (2004). Painel do restaurante da National Gallery, O Jardim de Crivelli (1990/1). Foi lá que foi estreado o documentário sobre a artista da autoria de Jake Auerbach, que vai passar em permanência no museu em Cascais. Retrospectiva gigante no Reina Sofia, em Madrid, há dois anos. Exposições memoráveis em Serralves, Gulbenkian, CCB. Além de centenas de outras.

Chama-se Paula Figueiroa Rego, nasceu em 1935, é pintora. Tem uma maneira peculiar de se exprimir - como nos quadros. É uma contadora de histórias. O melhor é ouvi-la, segui-la, entrar no seu mundo de amores brutos. Acreditar na fábula, no milagre.

... vi no outro dia na televisão um programa com umas velhas e uns velhos a contarem histórias antigas portuguesas - algumas bastante obscenas. Essas histórias são uma grande, grande influência. A Gulbenkian, graças a Deus, deu-me seis meses de dinheiro para eu poder estudar contos folclóricos. Estudei os italianos, estudei franceses, estudei portugueses. E não há como o conto português.

Porquê?
Há neles uma espécie de brutalidade bela. Que não há em mais sítio nenhum, nenhum, nenhum. O grande mestre disso foi o Leite de Vasconcelos [etnógrafo que fez a recolha de contos populares e lendas]. Temos essa tradição oral que vem do passado, de uma beleza mórbida. Essa beleza só existe aqui e tem a ver com a vida portuguesa de agora - não tem a ver só com o passado. Por isso chamo a isto a Casa das Histórias, está a compreender? Não é porque os quadros contem histórias. A mim, todos os quadros contam histórias. Essa crueldade bela é uma tradição a que ninguém liga nenhuma. Tem que ver com o grotesco belo. O grotesco belo tem que ver com o James Ensor, com outros pintores belgas. Tentei, tento que as minhas..., os meus bonecos tenham uma ligação com essa coisa portuguesa. É só isso que quero dizer.

Fale-me mais dessa crueldade bela e do grotesco. O que é que vê?
Já lhe contei a história da mulher que cortou o peito?

Não.
Um homem chegou a casa, um lenhador qualquer; estava cheio de fome e não havia nada para comer. E a mulher, vendo isso, o que é que fez? Cortou um peito e guisou-o. O marido disse: “Ai, isto é tão bom, tão tenrinho...” E comeu. No dia seguinte, ela só tinha outro, e que é que fez? Cortou o outro peito, para lhe dar de comer. E o homem, deliciado, comeu aquilo e disse assim: “Ó mulher, estás cheia de sangue!” “Eu cortei os meus peitos para te alimentar.” “Olha que tristeza, agora temos de começar a comer as crianças...”

Quem é que lhe contou essa história?
Lendo, no Leite de Vasconcelos.

A Medeia corta os filhos aos pedaços e dá-os a comer ao marido. Mas é por outras razões.
Ya. Mas esta não é os filhos que corta. É a ela própria que se magoa. Como é tão comum nas mulheres portuguesas: magoarem-se a si próprias para ajudar os esposos. Não é? Acho eu. Temos essa tradição. Um pouco masoquista. Mas pelo menos não matam os filhos. [gargalhada] Esse tema interessa-me profundamente. Não vejo isso nos franceses. Os franceses têm la belle et la bête, lalala, tudo muito belo e cruel também, o Barbe Bleue e essa coisa toda. Mas não têm o lado grotesco.

Pintora Paula Rego junto a um dos seus quadros Luis Vasconcelos
Paula Rego na sua exposicao no Museo Nacional e Centro de Artes Reina Sofia Enric Vives-rubio
Exposição na Casa das Historias Daniel Rocha
Centro de Artes Reina Sofia, em Madrid Enric Vives-Rubio
Exposicão no CCB Carlos Lopes
Adriano Miranda
Série " As Operas " de Paula Rego na Casa das Historias,
Casa das Histórias
Exposição Histórias & Segredos na Casa das Histórias Mário Cruz/LUSA
Montagem de exposição no Museu de Serralves, em 2004 Paulo pimenta
Museu de Serralves Paulo Pimenta
Museu de Serralves Paulo Pimenta
Museu de Arte Contemporânea de Serralves Paulo Pimenta
Museu de Arte Contemporânea de Serralves Paulo Pimenta
Pintora Paula Rego no Museu de Arte Contemporânea de Serralves Paulo Pimenta
Paula Rego na montagem da exposição no Museu de Serralves Paulo Pimenta
Museu de Serralves Paulo Pimenta
Exposição na Casa das Histórias em Cascais Daniel Rocha
Fotogaleria
Pintora Paula Rego junto a um dos seus quadros Luis Vasconcelos

De onde acha que vem esse lado grotesco?
De nós. Somos assim.

É assim?
Sou. É uma beleza qualquer que não sei explicar.

Essa beleza virá da dádiva, da entrega, do sacrifício? Caso dessa mulher que corta o peito.
Vem do sacrifício e do amor. [sorriso] A beleza e o grotesco vêm do amor. O amor casa essas coisas todas.

Metaforicamente, claro, mas sente que cortou partes de si para agradar e servir o seu esposo?
Hum [pausa] It's difficult to answer... [pausa] É difícil responder a isso, é difícil responder a isso. Hum. Quer dizer: sim, sim e não. Pode ser que a pessoa tenha feito muitas coisas, mas que o que ganhou em troca valha mais do que o cortar a maminha. Há uma troca.

O amor é sempre uma troca?
Não. [gargalhada] O amor não é nada uma troca. O amor é: um dá e o outro recebe.

E no sentido contrário, não se faz?
Ah, trocar assim? Pode, pode. De vez em quando.

As relações de poder são assim? É sempre um a dar e o outro a receber? É sempre um a mandar e o outro a ser mandado?
Não. Já progredimos, a ponto de podermos ter abortos, se quisermos. Há maior liberdade. Mas há qualquer coisa básica em nós que não tem essa liberdade. Isto é uma opinião bizarra. Não tenho razão nenhuma para dizer isto.

A não ser o que sente e observa.
Observa-se bastante. Pois. Exacto. Em Espanha não é assim. Bem, a Celestina nasceu lá... [Celestina é “personagem” do quadro A Casa da Celestina, 2000/1]

Estava a ouvi-la e a pensar no quadro e na cena da menina cuja virgindade está a ser cosida. É uma cena cruel.
É prático, pá. Então não é prático? Assim já se pode casar.

Mas ela é uma criança.
Pois é. Mas de pequenino se torce o pepino. São histórias. Dói um bocadinho, mas enfim. Deve doer, não sei. Mas depois serve para muita coisa. Para se casar com uma pessoa mais rica, etc, etc. Por isso é que o faziam - faziam mesmo.

Isso leva-nos ao tema das classes sociais, constante na sua pintura.
Faziam isso em todas as classes sociais. Não ser virgem era muito feio em todas as classes sociais. Se calhar, as mais ricas iam à Suíça [coser a virgindade], como no tempo dos abortos.

Não mudou muito...
Pois não.

A virgindade, o sacrifício, a relação de poder, o amor, o sexo - coisas de que já falámos - são os grandes temas que aparecem na sua obra.
Pois são. Mas não são sozinhos. Se se vê isso deixando de fora o grotesco e o belo, torna-se uma coisa vulgar. Lendo as histórias, é pasmoso o que a gente aprende. E gosto, que é que quer?

No primeiro corredor da Casa das Histórias estão os seus primeiros trabalhos, as colagens - designando-os genericamente assim. Estes temas já lá estão?
Já, já. Quando tínhamos uma Casa de Campo... (1961), dávamos festas e depois matávamos os pretos - esse refere-se à Guerra Colonial. E mesmo aquele boneco que tem uma pluma de ditador - também já lá está. Desde sempre. Assim que deixei de ter de pintar com um modelo, uma natureza-morta, tudo o que eu fazia era político.

Mas de outra maneira. Não tinha dado o salto para o figurativo.
Pois. Há uma mudança. A pessoa pode mudar de ideias a meio do quadro. É muito interessante o facto de o quadro oferecer liberdade total. A pessoa pode estar a fazer uma coisa pavorosa e de repente começar a gostar da pessoa que faz coisas más. Há uma atracção pelo grotesco e pela maldade.

E pelo diabo?
Não. Porque não gosto de cornos. Tenho medo. Tenho medo do diabo.

Para olhar para o grotesco e para a maldade e não virar a cara, é preciso não ter medo. Medo: tema essencial em si.
É preciso ter curiosidade. Não é preciso não ter medo. Curiosidade. Como é que isso acontece? O que é que leva lá? O que é que faz as pessoas inventarem histórias dessas?

O seu amigo e poeta Alberto Lacerda dizia que a Paula pinta para espantar o medo.
O medo é constante. Vive comigo todos os dias.

A curiosidade teve de se sobrepor ao medo para ir lá ver o que era, ver o que é que lá estava. Apesar de o medo continuar a viver consigo.
Sim. Mas o medo não é a mesma coisa que a curiosidade. O medo é uma coisa física. Uma pessoa sente os braços a tremer, um pavor. A curiosidade é outra coisa, é das crianças. O medo também é das crianças, mas é também das pessoas crescidas.

Que medos tinha quando era criança e que mantém?
De tudo! Tem-se medo de muita coisa, e agora também. Pesadelos, coisas assim.

Medo do escuro, continua a ter?
Ai sim, ai sim.

Ao mesmo tempo, não tem vontade de abrir a porta e ver o que está no quarto escuro?
No quarto escuro é onde eu estou. E abrir a porta para ver lá para fora? Está outro escuro. Nem pensar nisso.

Desde quando está no quarto escuro?
Acho que desde os três anos.

Foi quando começou a ter consciência de si?
Consciência pode-se ter mais cedo, mas aos três anos é quando começam a aparecer coisas desagradáveis.

Do que é que está a falar?
O abandono. A solidão. O porco que anda com o rabo de cá para lá a mexer a cabeça. [riso]

São coisas diferentes, mas estão todas nos quadros: a solidão, o abandono, as pessoas disfarçadas de animais, o grotesco do porco que mexe o rabo e a cabeça.
Estão lá, estão. Agora é possível fazer. Mas é preciso ter consciência. Ou não é preciso ter consciência nenhuma.

Aos três anos já desenhava?
Não, aos quatro. [faz um som gutural, hoooooommmmm]

Como é esse som que fazia enquanto desenhava? A sua mãe, no livro do crítico de arte John McEwen, diz que a Paula ficava horas a desenhar e emitia esse som gutural.
Ainda faço. Nnnnnnnhhhhh. Uma lengalenga.

Faz isso dizendo coisas para dentro?
Não estou a pensar nada, estou só a fazer nnnnhhhhh.

Dê-me uma recordação da sua infância.
Parte da minha infância foi passada em casa da minha avó. De quem eu gostava muito. Adorava-a. E o meu avô, adorava-o também. Tinha um fato de banho para todos os dias.

Para a praia ou para a piscina?
Para a praia. Foram eles que o compraram. Com borboletas.

Sabe porque é que gostava tanto dos seus avós?
Então eles estragavam-me com mimos! É tão bom ser estragada com mimos! Acho óptimo! Quanto mais melhor. Adoro mimos. [gargalhada]

Os mimos contrariam a sensação de abandono e medo.
Ajuda muito. É dizer bem. É dizer: “A menina veja lá se consegue cantar.” “Oh, eu não sei cantar.” Põem-me em cima da mesa: “Cante, faz favor, que tem as pessoas todas a olhar para si.” A menina envergonhada não canta. Depois vem para baixo, o avô leva-a ao canto e diz assim: “Parece impossível, a menina não cantar. Eu ponho-a outra vez em cima da mesa e a menina canta.” E o avô põe em cima da mesa e a menina canta. E é uma vitória. Uma vitória que nunca se perde. É o que faz que a gente consiga acabar um boneco; às vezes custa tanto, tanto, tanto acabar um boneco. E consegue porque tem essa recordação. Do encorajamento. O avô estragava com mimos e queria fazer vista com a neta, não é? Mas é bom.

Que canção cantou?
Da Branca de Neve, está claro! [canta com um fio de voz] “When you wish upon a star, no matter who you are, ..., your dreams come true.” Já viu? Ainda por cima uma Branca de Neve. Eu não tinha intenções de ser a Branca de Neve, eu queria era ser o Peter Pan.

Para viver para sempre?
Não! Para ser homem! Para ser rapaz a voar. E Robin dos Bosques também.

As raparigas dos contos de fadas são mais chatas.
[riso] Pois é. Fazem muito o bem, põem muitas ligaduras nas feridas dos feridos, mas são um desastre.

Esse encorajamento, e fazendo a relação com os bonecos, foi essencial. Traduz-se num: vou ser capaz, não vou ser capaz.
Sim! [muito peremptória]

Precisou sempre desse encorajamento dos que estão à volta?
Ah, toda a gente precisa, não sou só eu. Toda a gente precisa de encorajamento para conseguir fazer aquilo que gostava de fazer.

Quem foram as pessoas fundamentais no seu percurso, no sentido de dizerem: vai lá para a frente, e faz, és capaz.
Então, o meu avô. José. Eu tinha uma voz horrível, cantava muito mal, mas não tinha importância. O meu pai, mas noutra secção.

Qual secção?
De ter uma filha sem ser casada... Quando nasceu a minha filha, eu não era casada. Pois. O meu pai foi... como é que se diz?, liberal, marvelous, marvelous. E professores na escola. Sobretudo aqui, no St. Julians, em Carcavelos, que me ajudavam a pintar e diziam: “Faça, faça, faça, cubra aquela parede toda com bonecos.” E eu fazia.

Mas não ouvia incentivos do tipo: “A menina é extraordinária, tem muito jeito.” Ou ouvia?
Não. A minha mãe detestava isso. Achava que dar-se encorajamento a uma criança era muito mau. E não me dava. Apesar de ela ser artista. Esteve nas Belas-Artes. Ela pintava com uma facilidade fantástica, não calcula. Fazia os móveis, que eram difíceis, aquelas pernas..., fazia aquilo num abrir e fechar de olhos. Ela tinha muito, muito jeito, mas achou que não era boa o suficiente, e deixou. Não teve ninguém que lhe dissesse: “És, és. Faz favor de cantar.”

Era uma mulher exigente e lúcida com ela mesma.
Sim. E era muitíssimo lúcida em relação ao que eu produzia. Quando eu era pequena, ela detestava que fizessem grandes coisas, detestava! Mas mais velha, quando eu fazia coisas para a escola, inclusive para a Slade, ela sabia muito bem o que eu estava a fazer. Dizia assim: “A minha filha faz estes disparates e depois tem vergonha.” Tinha razão, tinha razão. Então, eu fiz aquele desenho do coelho a cortar a cenoura...
A cenoura, pelo gesto que está a fazer, é o pénis.

Pois. E há uma... cabbage, como é que se diz? Couve. Uma couve a engomar. E a couve era a minha mãe. “Sabes quem é essa couve? É a mãe.” “E fizeste-me tão nova!” [gargalhada]

A sua mãe tinha resposta sempre pronta, não se deixava ficar.
Ela sabia muito bem o que eu fazia.

Competiam, de alguma maneira?
Não. Quer dizer, acho que não. A pintar ou isso, não - que ela deixou.

Será que uma parte dela lamentava o facto de não ter talento suficiente e reconhecer em si esse talento?
Isso eu não posso dizer. Isso eu não sei.

Nunca se falou disso?
A gente não falava dessas coisas. Falávamos de fatos.

Fatos?
Fatos, pois. Roupas. Copiávamos o Jardin de Mode e coisas assim.

De que outras coisas falavam? As conversas entre mulheres são um tópico fundamental dos seus quadros.
É um mundo fascinante, não é verdade? Só falava de vestidos com a minha mãe, que me lembre. Catorze anos, e ia uma costureira a casa, a menina Francisca, fazer-me os vestidos. Aquela moda que ali está, azul [no quadro A Prova, 1990], era a minha tia, que era costureira e fazia aquilo.

Há aquele vestido da sua mãe, lindíssimo, usado no quadro A Traça (1994). Quem faz de modelo é a sua filha Vicky.
É sim senhora. A minha mãe gostava muito de vestidos. Eu também gosto.

Era uma mulher muito elegante, a sua mãe?
Não era elegante de peneirices. Era elegante, simples; como viveu anos em Inglaterra, tinha aquela (talvez falsa) modéstia, mas enfim, modéstia. Era uma modéstia de se arranjar com casacos, cardigans.

Há um quadro em que aparece uma senhora muito bem posta, com fato de saia e casaco. Sempre olhei para essa figura como sendo a sua mãe.
Então se calhar é essa do fato azul. [A Prova]. Está a mostrar ao espelho a menina que está a ser vestida para um baile de inauguração. Deve ser essa, muito arranjadinha, com um fato preto.

As relações mãe-filha são uma constante. No quadro Branca de Neve Engole a Maçã Envenenada (1995), ela está a cair e...
Está a tapar as calças [cuecas].

Há outro da série da Branca de Neve, em que a madrasta vai inspeccionar as cuecas (1995).
É verdade [sorriso]. É tão embaraçoso esse quadro... [gargalhada] Gosto imenso desse quadro. Gosto dele porque é embaraçoso e porque é uma coisa que não se vê constantemente nas galerias e nos museus.

O que é que se está a inspeccionar naquele quadro? Se ela era virgem ou não? Se tinha fluxo menstrual?
Acho que era mais para ver se ela tinha tido o primeiro período.

Quando teve o seu primeiro período, teve essa conversa com a sua mãe?
Não. Não se falava disso.

Então com quem é que falava desses assuntos?
Com as minhas amigas da escola! “Ai, dói muito, dói tanto” - essas coisas que as miúdas diziam umas às outras, sem saberem de nada.

O que doía tanto era a dor menstrual?
Sim, e a dor da quebra do hímen. Conversávamos sobre isso na escola. Havia uma que dizia..., como é que ela dizia..., que o pior era pôr vinagre na ferida. [riso]

Quando eu era pequena também se falava na dor de ter um filho.
A dor de ter um filho?!

Que era uma dor monstruosa. Que era um corpo que rasgava outro. Isto para saber se na sua geração também se falava disto.
E era uma dor monstruosa. Agora dão umas picas na espinha e não se sente nada. Mas era horrível: gritavam, gritavam, gritavam.

Por causa disso, eu achava que o castigo das mulheres era terem filhos. Que essa dor era um castigo.
Pois era. Um castigo. Por terem sido marotas.

Vestígios da moral católica, que culpabiliza as mulheres pelo sexo?
Não é só uma coisa católica. Também na religião protestante é assim. Puritanism, you know?

Voltando à sua vida e aos quadros. As pessoas que a encorajaram foram o seu avô, o seu pai...
E o meu marido, o Vic. O Vic que sempre me deu..., não é bem a confiança. Era: desenha, desenha, desenha. “Não sabes o que hás-de fazer? Desenha.” Foi bom, que eu não sabia nada. Aprendi bastante com ele. Naquela altura, na escola que frequentavam, a Slade, eram muito machistas. Não consideravam as raparigas de igual maneira. As meninas eram para fodir.

Foder.
Foder, desculpe! [gargalhada]

Já não sabe dizer essas palavras em português?
Não digo em português, digo em inglês. Em português não se diz certas palavras, parece muito mal.

Acho que nunca a ouvi dizer um palavrão. Nem merda.
Merda digo. E sacana. Nem sei o que quer dizer. Mas que conversa esta! [riso]

Saímos da nossa rota. Mas não: porque a ouço e vejo estas coisas nos quadros.
Pois.

Isto era a propósito de as raparigas não serem consideradas da mesma maneira. Quando é que o Vic olha para o seu trabalho e para si e lhe dá essa confiança?
Foi quando viemos os dois viver para Portugal e trabalhámos na adega. Ele de um lado e eu do outro. Trabalhávamos todos os dias. O desenho é uma coisa que tem de se praticar todos os dias, para se aprender.

Ele dizia-lhe taxativamente: “És muito boa, tens muito talento, faz"?
Não, dizia-me agora “És muito boa, tens muito talento”... Dizia: “Faz como quiseres. Faz como quiseres.” Uma vez pôs à minha frente um vaso azul com laranjas encarnadas - era como o Matisse. Eu detesto o Matisse! “Faz isto, faz isto.” Eu não sabia fazer aquilo, aquilo não me queria dizer nada, não tinha história nenhuma. Portanto, não deu resultado nenhum.

"Faz o que sabes"?
"Faz o que gostas.”

Durante anos a sua obra não era reconhecida...
Ai minha filha...

Como é que perseverou e acreditou que aquela era a sua forma de expressão?
Foi muito, muito, muito difícil começar a vender e a mostrar. Quase impossível. Havia um ou dois que gostavam do que eu fazia - isso é muito importante, não é preciso mais. E acreditavam. Continuei a tentar fazer melhor. Descobri que havia maneiras de fazer mais perto daquilo que me dizia qualquer coisa. E por aí segui. Hoje é a mesma coisa. Tem de se mudar, volta e meia, faz-se coisas diferentes. Aquele quadro Human Cargo (2008): montei tudo no meu estúdio, à mão. Antigamente nem me passava pela cabeça fazer aquilo. A gente tem de mudar para reviver e para se interessar pelo que está a fazer, senão é uma chatice. Não me interessa nada a carreira. Detesto arte!

Estávamos nos anos em que a sua obra não era reconhecida.
É horrível. Uma humilhação constante. Então, ia-se a uma galeria com uma pasta. Abria-se a pasta e a senhora que estava a atender olhava para o outro lado... Depois passava as pastas e dizia: “Isto não interessa.” Quer dizer, não via nada. É uma humilhação, não é verdade? Depois a Fundação Gulbenkian deu-me uma grande alavanca. O Sommer Ribeiro foi fantástico comigo.

A sua primeira exposição individual foi na Gulbenkian.
Foi. E depois fui para a Serpentine e depois para o Saatchi.

Entre a exposição na Gulbenkian e o Saatchi, há pelo menos 25 anos de permeio.
É. Depois morreu-me o meu marido. E eu fiquei ali... coiso.

Desamparada?
Sim. Mas eu tinha coisas que fazer.

Curiosamente, o que fez depois da morte dele, segundo alguns críticos, como o Marco Livingstone, está entre o melhor da sua obra. Os anos de maturidade são os últimos 20 anos. O seu sucesso também acontece depois da morte do Vic.
Pois foi. Aprendia muito com ele, fez-me muita falta. Mas sabe-se lá se o melhor não está ainda para vir? Sabe-se lá? Só se eu ficar entalada e paralítica também e não possa fazer nada [Vic passou assim os últimos tempos de vida]. Há sempre uma curiosidade em saber o que vem a seguir. É isso que nos prende. Isso e uma vontade de fazer melhor, melhor, melhor.

[10 dias mais tarde, a entrevista é retomada]

Na conversa anterior falou muito de grotesco, crueldade, maldade. É interessante que isso a toque, porque nos quadros, mesmo quando são sinistros, não há maldade, não é perversa.
[Paula faz um olhar de quem não concorda] Há coisas perversas, como o Salazar a Vomitar a Pátria. Já foi feito há muitos anos [1960]. A perversidade daquilo é a pena que eu tive do Salazar.

Por que é que teve pena dele?
[silêncio] Está a ver? Não há explicação possível. Estas coisas nem se devem dizer. Mas a contradição está sempre presente, a compensação de sentimentos está sempre presente. Talvez este não seja dos exemplos mais interessantes. Mas perversidade, sem dúvida. Entra sempre. As mulheres gostam mais da perversidade do que os homens.

Isso é porque elas são mais complexas do que os homens? Os homens são mais lineares.
São mais como se deve ser. E têm mais regras. O sentimento engana as pessoas constantemente. É muito importante a pessoa ser honesta consigo própria, com o que sente. As mulheres, algumas, são honestas com o que sentem. Se é uma coisa que não devem sentir, sentem à mesma. Por exemplo, detestarem a mãe, ou detestarem o pai, ou coisa parecida.

Podem não ter a liberdade de pensar ou dizer, mas têm a liberdade de sentir. É isso?
[sussurra] Uma liberdade de sentir. Ou a liberdade de deixá-las fazer. Acho que essa liberdade, até certo ponto, é uma compensação para a falta de liberdade que existe noutros terrenos. As mulheres compreendem muito melhor os meus quadros, é verdade. Os do aborto, está claro; mas os outros também os percebem melhor [do que os homens].

Há várias camadas e várias leituras nos seus quadros. As mulheres, também elas, têm mais camadas do que os homens.
Sim, sim.

Os homens não se permitem a contradição, pelo menos publicamente, pelo menos não tanto quanto as mulheres. É-lhes exigido que tenham apenas uma face. Concorda?
Concordo absolutamente. Eles têm “o que deve ser”. Isto tudo liga com os portugueses e os seus brandos costumes, e elas cortam as maminhas para dar aos maridos. Brandos costumes, pois. Há o lado dos brandos costumes, e há o lado da brutalidade e da meiguice.

Foi sobretudo isso que encontrou quando leu o Leite de Vasconcelos? Fê-la perceber que aquilo que a Paula era e pintava já existia muito lá para trás...
Sim. Sim. E continua. Pois está claro que não li todas estas histórias. No outro dia, a Lila estava a posar para mim e a ler-me uma destas histórias. “Ó Lila, lê-me lá isso outra vez.” E sai-me uma daquelas, com uma mulher enterrada, os ossos todos, uma coisa horrível. Sinto que há uma liberdade, uma licença para fazer certos bonecos. Nos desenhos podemos fazer tudo. Mata-se quem quiser, esfola-se, berra-se. Os desenhos estão ligados às histórias.

E estas à identidade?
À identidade. Mais perto das pessoas. Fascina-me isso. As pessoas meigas e amáveis, e más. Isto faz-me todo o sentido. E não é crítica, é o contrário de crítica.

Tem falado muito no Leite de Vasconcelos. Isto tem alguma relação com o facto de o ter reencontrado na montagem da exposição?
Houve uma altura em que tudo se modificou e o Leite de Vasconcelos deixou de ter a importância que tinha. Nessa altura, eu mudei. Mas isso é mais para historiadores de arte. Eu sei que mudei.

Isso aconteceu no meio dos anos 80, com a série da Menina e do Cão? Foi essa a grande ruptura?
Sim, depois da Menina e do Cão. Antes disso, as coisas da juventude, as colagens, estavam mais próximas de mim. Porque eram mais impossíveis. Fazia-se aquilo com muito mais liberdade. Depois a liberdade foi-se abrindo e foi-se fechando. Entretanto, vieram os pastéis.

A técnica adquiriu, nesta segunda fase, uma importância superior à que tinha na primeira? Na primeira fase, era o dizer, dizer, dizer.
Ya. A maneira de dizer as coisas, agora, é diferente. São mais bem feitas, é outra coisa. Bem, também dizem outras coisas... Não podia fazer aqueles quadros do aborto se fosse da maneira antiga. Impossível! Tinha de ter aquela autenticidade

O que estava para trás era também uma coisa mais infantil?
Sim.

Não só porque eram bonecos mais informes, mas porque apareciam sem filtro.
Vinham de outro sítio.

Agora é uma mulher que pinta.
Não é uma mulher, só, que pinta. Mas as coisas que pinta parece que têm mais importância. Não têm.

Como foi o seu reencontro com esta exposição, onde estão fases diferentes da sua carreira?
Não acho tão diferentes quanto isso. As colagens, não acho tão diferente assim das Óperas (1983).

Mas são muito diferentes d'A Casa da Celestina (2000/1).
São.

Não tanto do Pillow Man, feito em 2004.
Exactly. No Pillow Man há um reencontro com coisas passadas e infantis, que falam com aquela voz, com os urros das crianças. Os últimos que fiz vão outra vez buscar coisas aos sítios onde elas já estiveram.

Antes era tudo cortado, agora é cosido, é reconstruído. Quando faz os bonecos com as suas mãos, e quando em tela eles aparecem inteiros, sob um ponto de vista interior, faz uma enorme diferença.
Mas não acho uma diferença assim tão grande. Bem, a violência nos bonecos recortados era maior, truca truca truca. Mas são do mesmo lugar.

Pensei que estes bonecos lhe fizessem melhor. Que se dilacerasse menos. Antes, quando cortava bonecos, cortava-se também...
Talvez. Dava mais prazer cortar. Como cortar os dedos das bonecas!

Esse é um episódio famoso da sua infância, quando cortou os dedos de um boneco novo que parecia um bebé. Estar a voltar ao mesmo lugar, mesmo que não seja a mesma coisa, é porque está a envelhecer?
Sim.

Está agora mais próxima de memórias da sua infância e de vivências mais longínquas?
Sim, mais agora do que nos anos 70, por exemplo. Absolutamente! Não tenho mais recordações do que fazia quando era pequena, tenho mais recordações do que fazia com a minha avó. É extremamente complicado, isto de que estamos aqui a falar.

Estamos a falar dos quadros e dois segundos depois falamos de outras coisas... Mas continuamos nos quadros.
[riso] Os quadros são isto, pois. Mas juntar aos quadros a literatura... Não sei se isto [livro de Leite de Vasconcelos onde tem a mão pousada] é literatura.

Talvez seja memória.
Acha que é? Memória total, like Jung? A memória colectiva de que ele falava? Acho que isto tem muito a ver com a memória colectiva. Estudei um pouco o Jung. Fiz muitos anos de psicoterapia junguiana, muitos, muitos, muitos.

Isso interferia na maneira como pintava ou só interferia na maneira como vivia?
Não, não, não: libertava-me a imaginação. Não libertava a maneira como eu me portava, de mostrar o rabo em público e coisas assim. A maneira como a pessoa se liberta, sem dar por isso, sem dar por isso... As coisas que aparecem! Isso é que é espantoso. A liberdade que cria é totalmente inconsciente.

Fez uma psicoterapia em inglês. O que aparecia na tela era em português?
Também fiz em português, mas não deu resultado nenhum.

Estava a dizer que, olhando os diferentes quadros, eles não são tão diferentes assim.
Acho que há um voltar às coisas antigas, outra vez. Por exemplo, o Pillow Man, na praia no Estoril, com a menina na barriga dele e o Petit Prince, está ligado a outras coisas que eu fazia; talvez mais simples, menos perverso e menos complicado. Mas está lá, está lá.

Quando olha para as colagens, as Óperas, O Anjo (1998), está a olhar para si. Pergunto pelo reencontro profissional, pessoal, emocional com estas obras.
Bom, eu se tivesse que morrer levava O Anjo comigo. É verdade. Vou ler-lhe uma coisa: “Ela é ao mesmo tempo um anjo da guarda e um anjo vingador. A sua missão é proteger e vingar. Traz os símbolos da Paixão, a espada e a esponja. Ela apareceu, ganhou forma, e não se sabe o que é que lhe seguirá.”

Quem escreveu?
Eu. Porque é assim. E escrevi em inglês, que é melhor. [lê em inglês] Se eu morresse, morria com ela. É o mais próximo de...

Um auto-retrato?
[pausa] Tenho outros que são muito próximos de auto-retratos. As colagens são mais próximas de um auto-retrato. Acho eu.

Há n'O Anjo a duplicidade omnipresente nos seus quadros.
Sim. O Anjo foi feito no fim da série do Padre Amaro (1998). O livro do Padre Amaro criou um choque em Inglaterra. Os quadros do Padre Amaro não foram apreciados em Inglaterra. Um ou outro, foi. À Janela, foi.

Não os entenderam?
Não. Isso deu-me um grande prazer. [sorriso] O Nick Serota [director da Tate] esteve lá [na galeria]: “Não se vende aquele quadro d’ O Anjo, porque vai para a Tate, vai para a Tate.” Estivemos imenso tempo à espera que o Nick Serota fosse lá, para decidir se o quadro ia, se não ia. Ele esteve “teeempos” sem fim a olhar para o quadro e depois disse assim: “This is not a picture for the Tate.” E depois havia um senhor riquíssimo que queria comprar... não lhe vendi! Não quis, fiquei com o quadro.

Assim que o fez, gostou logo d'O Anjo?
Logo. Da saia, como é posta, como é pintada, aquelas dobras. A parte física do quadro é muito, muito difícil; e conseguir fazer aquilo é bestial. Porque a pessoa consegue fazer uma coisa quase tradicional. Eu gosto de copiar.

O Anjo vai ficar em permanência no seu museu.
Fica. Na montagem da exposição, quando vi os quadros, achei uma grande diferença entre os quadros bons e os muito maus. Estes primeiros, com as colagens, são bons - até fiquei espantada, o bom que são. Há outros, como as Óperas, que são ligeiros, ligeirinhos, mas agradáveis. Outros como A Filha do Polícia (1987), esses são outra coisa.

Esses são os muito bons?
[confirma com a cabeça] I think so. As Criadas (1987). E o outro que não está cá, A Filha do Soldado (1987). São os principais. E agora vamos ver se vem alguma coisa interessante, está-se sempre à espera do que se vai fazer, não é verdade? Não importa nada o que se fez até aqui. Importa até certo ponto, mas não é suficiente. O que importa é que o se vai fazer, o encher-me de medo.

É isso que lhe dá vontade de viver?
É o que vou fazer a seguir. Pode ser que saia alguma coisa brutal, interessante. Viu o Oratório que fiz? That's ok. Pode ser que saiam mais algumas coisas assim, que tenham que ver com capelas e oratórios.

Há um sentido religioso na sua pintura. Mas os quadros de que gosta mais são mais “humanos”. Está sempre lá a imperfeição humana e não a pureza do santo.
Tem razão. Há um museu no Norte de Espanha que tem escultura extraordinária. Aprecio verdadeiramente escultura, mais do que qualquer Miguel Ângelo. Aquelas esculturas são de cortar o coração. Gosto de olhar, toco com a vista. Aprecio imenso. Não calcula a alegria que aquilo me dá. Tem talvez a ver com qualquer conteúdo religioso.

Não teve educação religiosa.
Fui proibida. O que está muito bem. Aqueles padres irlandeses que tínhamos lá na escola eram uma desgraça. Mas havia qualquer coisa de misterioso que eu apreciava muito em pequena. O conteúdo religioso interessa-me muito. Não tem nada a ver com a Igreja Católica, nem com o Papa, nada, nada. Tem a ver com qualquer coisa profunda e mágica.

O que é que significa para si ter este museu?
Ainda não sei.

É uma maneira de olhar para a sua posteridade.
Não tenho ligações com a minha posteridade. [pausa] Não tenho.

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