A felicidade de Richard Ford

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Ford foi o primeiro americano a ganhar no mesmo ano o Pulitzer e o PEN/Faulkner

Só agora "A Pele da Terra" chega às livrarias portuguesas mas em 2006 e em 2007 Richard Ford esteve na Book Expo América e depois na Feira do Livro de Frankfurt a falar do seu mais recente romance. Contou que
parte para um livro com um plano delineado
mas no fim é sempre surpreendido. Isabel Coutinho

A mulher de Richard Ford chama-se Kristina. É a ela que está dedicado o romance "A Pele da Terra", o último da trilogia de que fazem parte ainda "O Jornalista Desportivo" (Teorema) e "Dia da Independência" (Presença)."Porque é que não tentas escrever um livro sobre alguém feliz? Nunca fizeste isso", disse-lhe um dia Kristina, e então Richard Ford escreveu um romance sobre um homem que tenta ser feliz. "Isto", diz ele referindo-se a "A Pele da Terra" (Teorema), "é o mais próximo que consigo estar de uma personagem feliz".
Richard Ford, que foi o primeiro escritor norte-americano a receber no mesmo ano o Pulitzer e o PEN/Faulkner (em 1995, por "Dia da Independência"), esteve há dois anos na Feira do Livro de Frankfurt a lançar "A Pele da Terra" na sua versão alemã. Foi no ano em que se soube durante a feira que o Nobel da Literatura ia para Doris Lessing e que o Nobel da Paz ia para Al Gore - estava Richard Ford a conversar num sofá com um jornalista alemão, diante de uma plateia. Ford ficou visivelmente contente (por o Nobel ter ido para um americano e já agora para um branco, porque os brancos nos EUA só costumam preocupar-se com eles próprios) e disse imediatamente que queria Gore a concorrer à Presidência.
Em 2007, Bush ainda era o presidente dos EUA. Como Ford nasceu em Jackson, Mississípi, no Sul dos Estados Unidos, e foi colega de Bill Clinton na Faculdade de Direito, o diálogo com o escritor começou por aí. "Eu e o Bill conhecíamo-nos quando éramos rapazes", contou Ford. "Nunca tive contactos com ele durante o tempo em que foi Presidente. Quem me dera ter tido. Toda a gente foi à Casa Branca, menos eu." Mais: "Quando ganhei o Prémio Pulitzer, ele já era o Presidente mas nunca telefonou. Conhecendo-o como conheço, sei que estava ocupado, tinha outras coisas para fazer. Por acaso a senhora Bush convidou-me para eu ir à Casa Branca no ano passado mas recusei." É claro que neste momento a plateia já estava a rir.
Ao vivo, Richard Ford parecia um senhor muito sério, com uns estranhíssimos olhos azuis pálidos, mas para baralhar trazia naquele dia umas roupas muito coloridas (o Ípsilon acha que eram roxas). Quando o jornalista alemão lhe disse que Doris Lessing tinha afirmado que George Bush era um "cowboy", ele não concordou: "Parece que estamos a dizer que Bush de alguma maneira é um romântico e acho que ele não tem inteligência suficiente para isso."
Antes de ir para Direito, Richard Ford estudou inglês. Mas foi muito mais tarde que quis ser escritor. Como é que isso aconteceu?, perguntou-lhe o jornalista alemão. "Não faço a mínima ideia. Às vezes, a história da vida das pessoas é ilógica. Olhamos para trás, vemos as coisas que fizemos e tudo adquire um sentido. A decisão de me tornar um escritor na época em que o fiz, em 1968, não fazia sentido nenhum [entrou para um curso de escrita criativa da Universidade da Califórnia, em Irvine, e publicou o seu primeiro romance em 1976]. E eu gosto desse aspecto da vida porque é com ele que temos que lidar todos os dias: a surpresa, a falta de lógica, o caos da vida. Quando contei à minha mãe que me ia tornar um escritor ela olhou para mim com tal espanto. A minha mãe olhou para mim com horror!", lembrou. E ser escritor hoje já faz sentido para si? "Sim, no sentido em que temos que fazer alguma coisa com a nossa vida, já que ela é da nossa responsabilidade. Quer eu tenha tido um bom editor ou não, quer eu tenha sido bem sucedido a encontrar leitores ou não, acho que valeu a pena eu ter tentado há 40 anos ser um escritor."
"Venho do Mississípi, onde há tantas coisas absurdas, há racismo, coisas que não faziam sentido nenhum na minha juventude. Por isso o meu trabalho, como cidadão, era tentar dar algum sentido a coisas que para mim não faziam sentido. É essa a minha responsabilidade enquanto autor", acredita.
Na escrita como na vida
Frank Bascombe é a personagem que acompanhamos ao longo da vida nesta trilogia de Richard Ford. Em "A Pele da Terra", Frank Bascombe está mais velho, teve problemas no casamento, os filhos estão a dar com ele em doido. "Coisas que acontecem a qualquer um de nós", explicou. "Neste livro Frank tenta tomar as rédeas dos acontecimentos à sua volta e entrar em guerra com a percepção de que a vida se está a desintegrar à sua volta."
Este é também um livro sobre a América e, embora a acção se passe em 2000, Ford começou a escrevê-lo depois do 11 de Setembro de 2001. "Quando algo de mal nos acontece, o que devemos fazer é olhar para nós próprios, mais do que dizer: 'Fizeste-me mal, és mau'. Mas isso foi o que aconteceu com o 11 de Setembro, fizeram-nos uma coisa má e achamos que foram maus ao fazê-lo. Mas devemos perguntar: qual é o nosso papel nisso? O meu livro é sobre isso, sobre: quais são as origens, quais são as causas das coisas que nos aconteceram?"
Quando Richard Ford começou a escrever este romance em que volta aos subúrbios norte-americanos, fê-lo com uma sensação de medo. Medo de falhar. E em Frankfurt explicou que esse medo de falhar o faz ficar muito atento às coisas que quer abordar. "Havia uma série de coisas de que eu queria falar neste livro e que acabei por lá colocar. Mas tinha sempre aquela sensação de que tinha que fazer deste livro um grande livro. Se não, tudo teria sido em vão."
Um escritor prepara-se para escrever um livro o melhor que pode, disse. Mas no momento em que está sentado à secretária, com uma caneta na mão a preparar-se para escrever uma frase, tudo pode mudar. "Temos uma ideia daquilo que queremos que aquela frase diga, mas depois surge outra coisa quando estamos a escrever. Há um mistério envolvido neste processo. É como se se tratasse da vida de outra pessoa. Levantamo-nos de manhã, vestimos a nossa roupa, saímos porta fora, achamos que sabemos quem vai estar lá mas às vezes não sabemos quem vai estar lá. Não sabemos com o que contamos, o que vamos encontrar. É assim na escrita. É muito parecido com viver a vida."
Isto é uma coisa que Richard Ford não se cansa de repetir. No ano anterior a este encontro na Feira do Livro de Frankfurt, esteve a apresentar "A Pele da Terra" na Book Expo América 2006. Na sua conferência, num daqueles pequeno-almoços com autores que acontecem por lá, falou de como um romance escapa sempre aos planos dos escritores. Para ele, é impossível saber com precisão como é que um texto de ficção se transforma naquilo que é.
"Os livros são escritos com planos e com esquemas e depois mudam de rumo e caem graças a erros que de alguma maneira acabam por funcionar melhor do que o planeado. Também há temas que o escritor pensava conhecer bastante bem quando começa a escrever um romance mas depois percebe que afinal não percebia nada do assunto", explicou, contando que nos 80 escreveu um conto intitulado "Comunista" e o mandou para o seu editor. Este disse-lhe que ele tinha que colocar mais palavras no texto. "Eu não sabia que palavras certas eram essas, mas fi-lo, escrevi sem saber para onde ia. No fim, esse livro consumiu completamente os meus planos e todas as aspirações que tinha para ele. Transformou-se noutro livro."
Quanto começou a escrever 'A Pele da Terra' em Novembro de 2002, Richard Ford tinha planos que agora lhe parecem muito improváveis e remotos. "Posso dizer-vos que escrever um romance que está ligado a dois romances anteriores e tem o mesmo narrador é uma felicidade. É uma felicidade que eu tenha podido reencontrar esta voz do narrador, mas isso não quer dizer que eu não tivesse a responsabilidade de escrever e fazer um livro completamente novo."
Cada livro tem que valer por si e a voz do narrador tem que dizer coisas inteiramente novas. Richard Ford teve que envelhecer as suas personagens e é isso que faz com que eles sejam surpreendentes, apesar das parecenças com as pessoas que eram nos livros anteriores. "É muito similar ao modo como todos nós envelhecemos", acrescentou.
Não sendo um filósofo, Richard Ford tende a acreditar que, nas nossas vidas, estamos sempre a encontrar as mesmas coisas que encontrámos no dia anterior. E às vezes não conseguimos distinguir entre uma sensação e a outra. Num romance, Richard Ford tenta sempre dizer ao leitor que sim, que a vida é comum mas temos a responsabilidade de lhe prestar atenção. "Ao estarmos atentos a pequenas coisas que nos acontecem diariamente aprendemos a tirar mais consequências do nosso comportamento no dia-a-dia", diz. Estar interessado em coisas banais e tentar tirar prazer delas é, para ele, não só um acto de imaginação mas também um acto de responsabilidade.

Ver crítica de livros págs. 28 e segs.

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