Secret, Profane & Sugarcane

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Há dados que, não fazendo parte de uma biografia oficial, nem por isso são mais improváveis. Por exemplo: é quase certo que Elvis Costello, quando era pequenino, não tenha bebido leitinho nem brincado com rocas. Não, Elvis tomava anfetaminas e tocava os discos da avó, uma colecção que (podemos avançar) incluía velhas canções de dança irlandesas, ragtime, muito hillbilly, o som de New Orleans, operetas alemãs, marchas militares, o R & B swingado de quando os pretos eram pretos e, muito possivelmente, vários singles que tiveram a honra de servir de "jingle" a anúncios de sabonete na década de 50.

Costello começou a editar em 77, quando a new wave era rainha, o punk descobria África e tocar mal era uma arte. Mas Elvis, enciclopédia viva do rock e seus ancestrais, sempre foi um satélite com órbita muito própria. Era demasiado Abba para os punks, demasiado agreste para a pop maricas dos sintetizadores, demasiado melodioso para os experimentalistas, demasiado cínico para os niilistas. E tinha, definitivamente, demasiada música na cabeça. Enquanto conseguiu sintetizar as ideias e pô-las ao serviço de melodias que, no fundo, eram clássicas, foi extraordinário. Quase tudo no mundo é complicado, por isso aqui fica uma verdade simples: tudo que Costello escreveu entre "My Aim Is True" (1977) e "This Is Year's Model" (1982) é magnífico. Mas depois Elvis perdeu o pé. Ok, dou de barato que em 1986 assinou um belo disco, "Love and Chocolate" (talvez inspirado pelas aprazíveis inutilidades mencionadas no título). Mas quase tudo o resto é negligenciável. Costello pareceu ter perdido a capacidade de sintetizar as suas influências num rebuçado melódico de três minutos e, como um médio centro demasiado guloso e que não levanta a cabeça, tornou-se barroco, demasiado adornado, complicado e chato, chato, chato. "Spike", "Mighty Like A Rose" (apesar da magnífica abertura com "The other side of the summer") e "The Juliet Letters" são belos exemplos dessa fase de dejectos. Entretanto, no meio da profusão de estilos a que Costello se atirou, sempre houve ali uma paixoneta pela "americana" - aliás, em 1981 Costello assinou, em "Almost Blue", um belo disco de versões country, em que recuperava cantigas de Hank Williams e Gram Parsons (entre outros). É mais ou menos esse o território de "Secret, Profane & Sugarcane", o seu mais novo disco, com a diferença de se tratarem de originais. "Secret..." foi gravado em Nashville e exala por cada poro a herança de Parsons a que se deu o nome de country-rock: uma espécie de blues electrificado, que vive do rame-rame das guitarras (que evocam grandes prados e pores-de-sol sem fim), do queixume da slide-guitar e do ranger de dentes do dobro (uma guitarra com um som muito específico). Nessa coisa vasta a que se chama "o som de Nashville" cabe tudo, portanto: o cajun, o blues, a música de New Orleans, a música apalache, as cantigas de roda irlandesas, desde que cada género seja submetido a um processo de esbranquiçamento e a instrumentação inclua sempre, mas sempre, uma slide-guitar. E, de preferência, um(a) vocalista de tom parolo. "Secret, Profane & Sugarcane" é quase, quase o disco-síntese de todo esse imaginário. A slide guitar, o violino e o dobro dominam o disco, as idas ao blues ("Complicated shadows" e Sulphur to sugarcane") são devidamente albinas, há um punhado de canções para bater o pezinho em que o violino, como é de bom tom, brilha e, como manda a regra, três em cada cinco canções são de dor-de-corno - e um par delas ("I felt the chill" e How deep is the red?") teria sido perfeito na voz do grande Webb Pierce. O que falta, então a este exercício de estilo para ser um disco demolidor? Falta aquilo que Pierce, Merle Travis, Ray Price e Hank Thompson tinham, por mais parolos que fossem (e eram): intestino, pura crença na lamechice que cantavam. De onde se conclui que a Costello só lhe fazia bem ser menos esperto.

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