Está na hora de desacelerar

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Quisemos a velocidade do som com os aviões e a velocidade da luz com a Internet, mas, agora que conquistámos a contemporaneidade absoluta, só conseguimos pensar numa coisa: abrandar. Na quinta edição da bienal ExperimentaDesign, que tem o tempo com tema geral, a ideia está por todo o lado: correr menos e pensar mais, produzir menos e melhor.

Uma hipótese - uma hipótese só medianamente descabida à luz de um universo pós-Madoff: o colapso do capitalismo. Se, perante estas palavras, é dos que começam a ver o futuro tingir-se de negro, saiba que está do lado de lá da barricada. Do lado de lá da barricada em relação, por exemplo, a Louis C. K. O argumento dele é simples: o mundo como o conhecemos é espantoso, sim, mas ninguém está feliz, donde talvez estejamos mesmo é a precisar de um "back to basics", de um regresso a tempos mais simples, por exemplo, de um regresso a essa maravilha telúrica de sermos nós e o nosso burro, caminho fora, rumo a casa.
Estamos em plena gargalhada de uma entrevista de Conan O'Brien a um dos humoristas norte-americanos do momento e não temos que levar isto demasiado a sério. Mas, de repente, perante a ideia de uma crise económica que nos devolva a uma era de tracção às quatro patas, eis-nos a ser apontados como membros "da mais reles geração de idiotas mimados de sempre" e a ficarmos sem ponto de fuga. Não há volta a dar: estamos todos ali.

Por partes: houve uma altura não particularmente longínqua das nossas vidas em que os telefones tinham um disco giratório tão difícil de rodar que nos levava a odiar qualquer pessoa que tivesse um número com mais do que um zero; o tipo de telefone que nos obrigava a atravessar a casa para fazer ou receber uma chamada e que, quando saíamos, ficava ali, às escuras, a tocar sozinho. Regresso ao futuro: andamos calmamente a ver montras, vamos confortavelmente sentados ao volante do nosso carro ou estamos na praia, de férias, numa ilha paradisíaca a quilómetros infinitos de tudo, pegamos no telemóvel, tentamos fazer uma chamada e não temos ligação imediata. O quê? Como? Porquê?! Inconcebível, não? Sim, claro, inconcebível esquecendo que o sinal tem que ir ao espaço e voltar. Em segundos!
Isso e a questão das pontes aéreas. "Voar é o pior", conclui Louis C.K., "porque as pessoas regressam de viagem, contam-nos a sua história e parece um filme de terror, parece que o voo foi numa carruagem de gado na Alemanha dos anos 1940."

Sequência banal de eventos: 20 minutos à espera na sala de embarque e 40 minutos suplementares na pista com o avião à espera de autorização de descolagem. Uma hora de atraso, no total. Um horror. "A sério? E o que é que aconteceu depois? Viajaram pelo espaço! Incrivelmente! Como um pássaro! Fizeram parte do milagre do voo humano para o qual eu e vocês contribuímos zero. Voámos! É incrível! Eu acho que toda a gente em todos os aviões devia estar constantemente a gritar 'Meu Deus! Uau! Estou a voar!' É que estamos sentados numa cadeira a atravessar o espaço! De Nova Iorque à Califórnia em cinco horas. Costumávamos demorar 30 anos! Havia mortes e nascimentos pelo caminho! Cresciam gerações! À chegada era um grupo completamente diferente de pessoas!"
Reconhecemo-nos, verdade? "Touchés". Agora, o que é que aconteceu para nos termos tornado nisto, "na mais reles geração de idiotas mimados de sempre"? A velocidade, claro - ou, melhor dizendo, a conquista da velocidade e, com ela, a conquista da distância. Foi o que pôs em causa a maneira como vivíamos aquilo que temos de mais essencial: o tempo. E, perturbada a nossa relação com o tempo, ficou perturbada também a nossa relação com nós mesmos. Tudo num abrir e fechar de olhos.

Um paradigma modernista

Há quem defenda que o primeiro grande momento de conquista da distância se deu por via da pintura, com a pintura paisagista, origem do primeiro nómada modermo. Mas podemos ir por outro caminho: a Revolução Industrial primeiro, movida a vapor, e, logo depois, os trezentos quilómetros por hora de um TGV, os mil quilómetros hora de um avião normal, os dois mil quilómetros hora de um Concorde. Mais rápido, cada vez mais rápido até atingirmos a velocidade da luz com a Internet e passarmos - ou pensarmos que passámos - a viver a História em tempo real. Até toda a memória do universo estar ali, à frente dos nossos olhos, à distância de um clique. De tal forma que passado, presente e futuro começaram a embrulhar-se num grande novelo. A contemporaneidade absoluta - a esmagar-nos. A tal ponto que, chegados ao final da primeira década do século XXI, os rumores vagos de há umas quantas décadas se começaram a transformar num grito: é preciso desacelerar.

Travão a fundo: pensar. "Pensar, por exemplo, se o paradigma da velocidade não será o paradigma modernista por excelência e se, hoje, não temos obrigação de o contrariar, tornando o pensamento mais lento e, portanto, mais produtivo", diz Delfim Sardo, um dos muitos participantes da edição deste ano da ExperimentaDesign, entre as dezenas de criadores, comissários e conferencistas que compõem o intenso programa de exposições, debates e conferências que arrancaram a meio desta semana e se prolongam até 8 de Novembro (ver páginas seguintes - programação completa em www.experimentadesign.pt).

Tudo a ver com o tempo - o tema da ExperimentaDesign é mesmo esse: "It's about time". O tempo enquanto material, recurso e desafio; o tempo - ou a falta dele - num mundo à beira do colapso económico e ecológico; o tempo numa era de comunicação vertiginosa e de conjunturas sociais que nos parecem cada vez mais frágeis...

Delfim Sardo coordena um painel de debate de que fazem parte o holandês Max Bruinsma, a italiana Annina Koivo e o belga Walter Bettens. "Vou partir do princípio de que a voragem da velocidade destrói a possibilidade de uma ecologia emocional de relação profunda com o mundo, partir do princípio de que é preciso desacelerar para podermos ter um espaço de reflexão com uma ecologia emocional eficaz."
É, no fundo, o tipo de ideia que está por trás de grande parte das propostas da quinta edição Experimenta. Ou, por outra: é, no fundo, o tipo de ideia a fazer-se cada vez mais presente no mundo, sobretudo no mundo do pós-11 de Setembro.
Desacelerar: a popularização crescente da "slow food" contra a "fast food", do biológico e do "home made" contra o processado, as "slow cities" em detrimento das megalópolis, a glamorização do analógico contra a banalização do digital, o regresso dos "crafts" contra a produção industrial massificada, a economia de recursos em vez do seu esbanjamento...

Fuga para a frente

Não se trata de aderir cegamente à "buzz word" lentidão: "A lentidão nem sempre é boa e a velocidade nem sempre é um inimigo a abater. Trata-se de podermos controlar o nosso tempo, de poder controlar o ritmo a que ele nos é imposto", diz a historiadora Emily King, comissária no Museu Berardo da exposição "Quick, Quick, Slow", que traça um retrato da crescente importância dos meios digitais na história do design gráfico.

É uma questão basilar: o direito à autodeterminação - o mesmo direito que nos tem vindo a ser roubado desde que a temporalidade como facto interior, pessoal, subjectivo, começou a encolher-se debaixo do jugo do tique-taque do relógio mecânico, o mesmo tique-taque que uniformizou os minutos e as horas, transformando-os em pequenas cadeias idênticas e abstractas de uma sequência imparável, anónima, cada vez mais desligada dos ciclos da natureza, o mesmo tique-taque que permitiu fazer do trabalho e do lazer reguladores políticos da vida da maioria de nós. De forma a produzirmos e consumirmos tudo em cada vez maior quantidade.

Em vez das terríveis mas contemplativas "vanitas" da pintura antiga, o macabro do horror barroco aos escansões do tempo métrico e, depois, a urgência exasperante dos dígitos a avançar no grande ecrã do cinema ou no pequeno ecrã da televisão enquanto uma bomba ameaça explodir mas o "crosscutting" para momentos de nada nos deixa em suspenso num ciclo exasperante de dilatações narrativas, cada vez mais desejosos de pura e simplesmente eliminar o tempo, seguir em frente: "Precisamos de abrandar? Completamente. É necessário reflectir. Temos de dar um passo atrás e produzir menos, temos de nos perguntar: 'Para que é que precisamos de tudo isto?', diz Tulga Beyerle, comissária da exposição "Pace of Design", que pretende revelar o tempo como construção cultural, uma variável apreendida de diferentes formas por diferentes sociedades em diferentes partes do mundo contemporâneo.

A dada altura, numa entrevista, Umberto Eco ironizou sobre a origem dessas diferenças: "Para certas civilizações o futuro está atrás de nós, já que não o podemos ver, ao passo que o passado está à nossa frente, uma vez que o vemos. [Mesmo hoje], às vezes pensamos que a morte nos persegue para nos apanhar. O futuro vem de trás, portanto. Mas, para lhe escapar, tomamos fuga para a frente, rumo a outro prolongamento do futuro. É uma situação embaraçosa."

Embaraçosa, de facto. Tanto quanto o problema que se nos colocou nas artes.
Houve uma altura - uma altura sem dúvida mais simples - em que pensávamos nas artes do tempo (a música, o cinema, o teatro, a dança...) e nas artes do espaço (a pintura, a escultura, a arquitectura...). Depois, foi-nos provado por a mais b que nada era assim tão linear. Que as artes do espaço jogavam e tinham, afinal, também tudo a ver com o tempo, bastando, para o perceber, pensar nas horas necessárias para apreender o pormenor da filigrana de uma catedral barroca, uma experiência bem distinta da que temos perante o despojamento de um edifício da Bauhaus.

"Toda a organização espacial contem uma asserção implícita quanto à natureza da experiência temporal", escreveu Rosalind Krauss. E, a partir daí, tivemos que reconsiderar (quase) tudo. Permanentemente a esquecer-nos, contudo, de que a imobilidade faz tanto parte do movimento quanto o próprio movimento, a esquecermo-nos de que o silêncio que interrompe o ruído é, em si mesmo, gerador de um ritmo.

"Para o futuro, o mais importante a pensar é que temos que produzir menos, mas produzir melhor", diz Hans Maier-Aichen, comissário da exposição "Lapse in Time", na Sociedade Nacional de Belas Artes.

A posição que defende foi em tempos mais polémica do que é hoje, vindo a ganhar cada vez mais simpatizantes: "A recessão é necessária", diz ele. "É necessário um corte radical para se falar de uma mudança radical de paradigma."
Está a falar de design, mas poderia estar a falar de qualquer outra coisa.

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