Morreu João Vieira, o pintor KWY das letras

Do grupo de artistas portugueses exilados na Paris da década de 1960, João Vieira foi um dos fundadores do grupo KWY, ali onde a contemporaneidade entrou nas artes plásticas nacionais

a Foi um dos fundadores da contemporaneidade nas artes plásticas portuguesas, um dos artistas que fizeram a transição da terceira geração modernista para a ruptura e radicalização de linguagens nos anos 1960 e 1970. João Vieira, nascido em 1934 em Vidago, Trás-os-Montes, membro do conhecido grupo KWY de Paris, morreu ontem no Hospital de Santa Marta, em Lisboa. Tinha 75 anos e fora operado na sexta-feira ao coração. O seu corpo está hoje em câmara-ardente no Palácio Galveias a partir das 12h. Às 16h30 celebra-se uma missa no Cemitério do Alto de São João, onde será cremado às 17h30. "Afinal, sempre sou possuidor de um (salutar, incontrolável, maravilhoso, simpático) mau feitio e sou amiúde, talvez, conflituoso. Terei contudo as minhas razões, será defeito?", escreveu há dois anos no seu Catálogo de Exposições, da Galeria Valbom, que actualmente o representava. A 31 de Outubro, esperava-se que recebesse pessoalmente o Grande Prémio Amadeo de Souza-Cardoso, de cuja sétima edição foi apontado vencedor no princípio de Agosto. Numa nota divulgada na altura, o júri, presidido pelo crítico Rui Mário Gonçalves, destacou o experimentalismo de uma obra marcada pela aproximação à poesia. Uma aproximação que se deu através de nomes como Herberto Helder e Helder Macedo e que fez da letra o mais presente símbolos visual da sua pintura, matéria de composição primordial.
Juntamente com Manuel de Castro e João Rodrigues, Herberto Helder e Helder Macedo eram conhecimentos juvenis do famoso Café Gelo, do Rossio, um dos principais locais de encontro das tertúlias surrealistas de Lisboa. João Vieira tinha um atelier no mesmo prédio, espaço de trabalho que começou a partilhar com René Bértholo, Gonçalo Duarte e José Escada depois de, em 1953, ter desistido - após apenas dois anos de frequência - do curso de Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, um pouco mais acima, no Chiado.
Nessa altura, desiludido com o tradicionalismo do sistema de ensino, com o meio cultural e político português, chegou mesmo a deixar de pintar, voltando à sua cidade natal, Vidago, em Trás-os-Montes. Mas encontraria rapidamente um ponto de fuga: de regresso a Lisboa, em 1956 fazia a sua primeira exposição - na Sociedade Nacional de Belas-Artes, uma colectiva intitulada I Salão dos Artistas de Hoje - e um ano depois partia para Paris, tornando-se aluno de Henri Goetz na Academia de la Grande Chaumière e fundando o grupo KWY com Bértholo, Gonçalo Duarte, Escada, Lourdes Castro, o búlgaro Christo e o alemão Jan Voss.
Era "sempre inesperado"
À época, Vieira da Silva fazia as vezes de uma quase adida cultural na capital francesa, recebendo e ajudando - até financeiramente - jovens artistas portugueses. Pedro Lapa, director do Museu do Chiado - Museu Nacional de Arte Contemporânea, que conheceu bem João Vieira, lembra-se de o artista lhe contar que foi Vieira da Silva quem, em 1958, o aconselhou a ver a exposição Le Vide (O Vazio) de Yves Klein, um dos artistas que o terão inspirado a chegar à performance, de que, a partir de 1970, foi um dos pioneiros em Portugal.
Nesse ano, João Vieira apresentou na Galeria Judite Dacruz uma exposição intitulada O Espírito da Letra, composta por grandes letras feitas de madeira. Destruiu-as com um conjunto de crianças na que foi a sua primeira performance de sempre.
"Grande conversador e contador de histórias, um homem lindíssimo, bon vivant e excelente cantor", João Vieira, pai do também artista plástico e músico Manuel João Vieira, dos Ena Pá 2000 e Irmãos Catita, tinha um gosto particular pela encenação que se traduzia na sua performance, sim, mas também nos serões em que recebia amigos, cozinhava e cantava para todos; e numa aproximação ao teatro que o faria cenógrafo de diversas produções, recorda Maria Nobre Franco, ex-directora do Museu Berardo de Sintra amiga do artista da Paris da década de 1960. "Ele conseguia ser sempre muito inesperado", sobretudo num contexto como o português, onde as pessoas não estavam minimamente preparadas para ver uma mulher nua pintada de dourado (a estilista Maria Gonzaga) a sair de uma caixa exposta na conservadora Sociedade Nacional de Belas-Artes, sublinha Maria Nobre Franco.
Em relação à geração anterior à sua, com que conviveu, João Vieira teve "uma visão completamente diferente do são as formas visuais, do que pode ser lido"; "uma pintura ligada à escrita contra a composição tradicional em que a arte abstracta ainda existia": "É um dos artistas que passa de um lado para o outro com um trabalho completamente ímpar", refere Pedro Lapa, lamentando a pouca presença da sua obra na colecção do Museu do Chiado, por falta de orçamento para aquisições: "É profundamente injusto."
Lourdes Castro preferiu não comentar: "Foi um grande amigo. Nestas ocasiões não há mais nada a dizer."

Sugerir correcção