"Eles descobriram a pólvora"

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Em 1966, no auge da beatlemania, John Lennon disse a um jornal britânico que os Beatles eram "mais populares do que Jesus Cristo". Talvez tenha havido uma altura em que também foram mais impopulares. Para Paulo Furtado (The Legendary Tiger Man), chegaram a ser um verdadeiro alvo a abater. Basta lembrar o título do EP de 1997 da sua ex-banda, os Tédio Boys: "Fuck The Beatles Go Country". Mais de uma década depois, o músico confessa-se "menos radical" (mas mantém um "asco profundo" por "Yesterday") e junta-se à esmagadora maioria dos compositores pop do planeta no aplauso aos "fab four": "Obviamente eram belíssimos escritores de canções e grandes instrumentistas". Afinal de contas, diz Rui Reininho, eles foram os "avozinhos da chamada pop, ela foi inventada por eles". Para Hélder Gonçalves, dos Clã, os avós foram Elvis, Bob Dylan ou Jimmy Hendrix, mas "sem 'Abbey Road', 'Sgt. Pepper's' ou 'White Album' a música pop-rock contemporânea não seria a mesma". O evangelho dos Beatles deixou uma marca tão profunda que Alexandre Monteiro (The Weatherman) considera que, mesmo que fizesse reggae, "a influência estava lá". "Eles descobriram a pólvora", assegura o músico, que nasceu quase dez anos depois do fim do grupo. Os quatro de Liverpool representaram coisas muitas coisas diferentes para pessoas das mais variadas áreas e gerações, em todo o mundo. Quisemos fazer-lhes um retrato a partir da experiência de alguns músicos portugueses.

A primeira conclusão a retirar da amostra ouvida pelo Ípsilon é que "o álbum branco" bate todos os outros discos em termos de referência. "Para mim, é a Bíblia. Reflecte-se muito nos meus álbuns, porque tem músicas muito diferentes umas das outras, demonstra uma grande versatilidade", explica Alexandre Monteiro, cujos dois discos assinados como The Weatherman não escondem influências marcadas dos Beatles e dos Beach Boys. Rui Reininho, vocalista dos GNR, nunca teve muita paciência para canções "melosas" como "Michelle" ou "Ob-la-di, ob-la-da" e também elege o experimentalismo do disco de 1968 como o auge criativo da banda. O crescente envolvimento dos músicos com drogas, especula, também terá contribuído para uma abertura da paleta de sons: "Se não fosse isso, acho que se arriscavam a ser uns totós". Já Hélder Gonçalves, dos Clã, elege "Revolver" (cujo alinhamento inclui "Eleanor Rigby" e "Yellow Submarine") como "o álbum onde os quatro melhor se fundem como artistas e melhor funcionam como banda". "A partir daí, os discos continuam a ser fabulosos, se não melhores, mas já me parece que o Paul [McCartney] e o John [Lennon] se distinguem criativamente e ressalta mais a personalidade individual do que o conjunto", acrescenta.

José Cid encara mesmo os dois últimos anos da banda como um período de declínio: "Quando aprenderam as regras de composição e a escrita em pauta, perderam uma certa loucura". A primeira metade da década dos Beatles parece algo desvalorizada, mas tem grande importância para Carlos Mendes, que considera temas como "Love me do" ou Please please me" uma "lufada de ar fresco". "Depois, quando ouvi a 'She loves you' (1963) pensei: 'isto é o fim'. Estava cansado do rockabilly, do rock & roll mais convencional, do Ricky Nelson ou dos Everly Brothers", conta. Em 1963, com Paulo de Carvalho, Fernando Chaby e Jorge Barreto, fundou os Sheiks, que muitos apelidaram de "Beatles portugueses". Carlos Mendes tinha como modelo John Lennon: "Foi o meu ídolo de miúdo. Tentava copiar o modo de compor, estar e de andar dele".

O fim?

Ao contrário de Paulo Furtado, Carlos Mendes considera que os Beatles "não eram grande instrumentistas", o que acabou por ser uma das maiores revoluções que operaram: a criatividade podia ser mais importante do que a técnica. "Eles eram o contrário daqueles músicos de estúdio que surgiam pela via dos blues em Inglaterra, como o Jimmy Page ou o Eric Clapton", destaca Reininho. Alexandre Monteiro é um assumido beatlemaníaco, mas nunca procurou a faceta virtuosa do quarteto. Aliás, dá-lhe mais prazer ouvir algumas gravações piratas do que os trabalhos finais: "Sentia-se mais a força da banda, o processo criativo". Os ingleses tratavam o estúdio como mais um instrumento, com potencialidades infinitas.

Olhando em retrospectiva para os anos 60, é quase inevitável dividir o mundo em duas facções: uma defendendo os Beatles, a outra os Rolling Stones. José Cid subverte esta dicotomia e elege os Deep Purple como a maior influência da década. Porém, não é por acaso que o seu próximo álbum se intitula "Clube dos Corações Solitários do Capitão Cid" (a capa é uma parodia a "Sgt. Peppers") e que a faixa bónus é uma versão de "Strawberry fields forever". No período em que tocava versões para "sobreviver", não eram os Beatles que davam mais "pica" a Cid, mas o músico reconhece uma admiração especial por George Harrison: "Era mais discreto e tem menos obra, mas a qualidade é pelo menos igual à do McCartney e do Lennon. Era um esteta, com um bom gosto sublime".

Reininho concorda: "Ele tinha um toque especial. Por isso escolhi a 'Within you without you' para fazer uma 'cover' num espectáculo na Casa da Música. Tem as citaras, os gongos, aquela influência do Ravi Shankar".
A importância de rever a obra da banda traz este improvisado painel de volta ao consenso. "Hoje em dia os putos mais novos têm muito menos memória, porque há tanta oferta, tantas coisas novas. É importante perceber que as bandas inglesas vêm de algum lado e que se faça algum barulho à volta disso", observa Paulo Furtado. José Cid julga que "as novas gerações perderam a noção da grande musicalidade", até porque, no presente, "há muita produção e pouca alma". Mas Rui Reininho lança a dúvida sobre o impacto desta reedição: "Para as gerações mais novas, os Beatles não significam absolutamente nada, e não sei se terão paciência para absorver o conceito de álbum". O quarteto deu um contributo decisivo para a transformação da imagem dos LP, que eram muitas das vezes um conjunto de "singles" com outras músicas "a encher". Esta concepção perdurou até aos nossos dias, mas o vocalista dos GNR considera a hipótese de esta reedição ser "o canto do cisne" - do álbum como formato e dos Beatles como nossos desconhecidos.

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