A tensão é a rotina na Bela Vista

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nuno ferreira santos

Há o amarelo, o cor-de-rosa e o azul. Três cores encardidas a cobrir um complexo habitacional sobranceiro ao Sado, que vai agora beneficiar de um programa de requalificação. De quando em quando, um estouro. Como será viver num lugar assim?

A mãe prepara um estufado de frango na cozinha de azulejos levantados. As miúdas, de oito e nove anos, cruzam a rua, sobem-na, saltam o muro que contorna o supermercado, compram um refrigerante. É a liberdade que Cristina lhes dá. Não gosta de as ter na rua sozinhas. O perigo espreita nos doze blocos paralelos, de um azul já desbotado. Graffiti cobrem as paredes externas, a afastar quem passa pela rua do Forte da Bela Vista ou pela avenida Belo Horizonte. Alguns artísticos, como "Nasty Gangster". Outros tacanhos, como "Morte à bófia", "Morte ao Pereira", "Morte ao Sopas", "Pereira vai para a cona da tua mãe".
Pereira é o GNR que disparou sobre "Toninho Tchibone". Toninho levou um tiro na nuca a 30 de Abril, ao fugir de um assalto a uma caixa multibanco, num hospital particular do Algarve. Dois dias depois, morria no Hospital de São José, em Lisboa. A morte de Toninho explodiu nos bairros da Bela Vista. Em forma de pedradas, tiros, focos de incêndio.
Um rapaz de uns dez anos, cabelo rente, T-shirt larga, olha as miúdas com um ar ameaçador: "Drogadas!" Elas fingem que não o ouvem. Como há pouco, na fila da caixa do supermercado, fingiram que não viram a mulher que lhes passou à frente. Há que evitar conflitos. Sabe-se lá como podem acabar?
A Bela Vista não é um bairro. A Bela Vista é um aglomerado de bairros, cada qual com a sua cor desbotada pelo tempo e pela incúria. Amarelo (Bairro da Bela Vista), cor-de-rosa (Bairro Alameda das Palmeiras), azul (Bairro Forte da Bela Vista). O "azul" é um gueto dentro de um gueto.
Lojas de electrodomésticos ou móveis recusam-se a fazer entregas aqui - no "azul". Taxistas não entram nas suas geométricas ruas interiores - deixam os clientes perto da entrada, no cruzamento da avenida Belo Horizonte com a rua Forte da Bela Vista. Quem encomenda pizza tem de ir buscá-la à esquadra, na avenida da Bela Vista, no "amarelo".
- A esquadra também tem pizzas? - pergunta a filha de oito anos, ouvido vivo, apetite voraz.
- Não - retorque a mãe, já a dar a sopa à filha de dois anos.
- Então por que vão lá buscar?
- Os rapazes que entregam as pizzas já foram assaltados aqui muitas vezes.
A miúda enruga o nariz:
- Tu querias ficar nesta casa?
- Não tinha outro sítio para ir!
O problema não é a casa. Ao brincar às escolas, a filha de nove anos escreve no seu caderno: "Eu gosto da minha casa como ela é, um pouco grande. Muita gente gostava de ter uma casa como esta casa, mas sou eu que digo, porque há gente que pode não gostar."
Na sala-de-estar, um sofá e duas poltronas virados para um armário com televisor, leitor de DVD, aparelhagem; sobre a mesa de apoio repousa um computador portátil. No fundo da sala-de-jantar, depois da mesa rodeada de cadeiras, uma secretária e um computador fixo. No quarto da mãe, como no quarto das meninas, televisor. Na secretária delas, dois Magalhães.
Aqui dentro, nada parece faltar. Aqui dentro, três crianças e uma mulher de 31 anos a pensar no homem que a magoou e que partiu para onde estava antes de a arrebatar - para longe, para França (às vezes, à noite, uma figura acende-se no ecrã do portátil, um alerta soa: mensagem instantânea).
Lá fora é diferente. Lá fora, a noite abraça o gueto. Lá fora, mulheres conversam sentadas num muro. Um pouco abaixo, um grupo de rapazes ouve música electrónica em torno de uma carrinha branca. Quanto tempo mais falarão sobre o que fizeram ontem à noite e sobre o que farão esta noite?
Um bairro sobranceiro
Mário Pereira integrava em 1973 o gabinete de projectos da Setenave: "Perspectivava-se que a empresa [de reparação e construção naval] viesse a empregar 10 mil pessoas." Um bairro sobranceiro ao Sado, na zona Oriental de Setúbal, acolheria "chefias intermédias e suas famílias". Com a Revolução de 25 de Abril de 1974, este plano afundou e outro tomou o seu lugar.
Setúbal usava uma espécie de "colar de bairros de lata". E a tríade da Bela Vista, como outros bairros, foi construída para acolher quem nele sobrevivia. Famílias ligadas a indústrias em perda, famílias vindas dos países africanos de língua oficial portuguesa, famílias de etnia cigana.
O primeiro estabelecimento comercial da Bela Vista abriu há 25 anos. O Fundo de Fomento à Habitação, proprietário do complexo, lançara um concurso público. E Amândio Mata entusiasmara-se com a ideia. Estava a recomeçar a vida. Casara havia pouco. Aquele era "um dos sítios mais baratos" de Setúbal: custava 12 contos o metro quadrado.
A alegria daqueles primeiros tempos já não se lê nos olhos de Amândio: "Levaram 20 anos para fazer a escritura! Quando a fizeram, isto foi avaliado em 400 mil euros. Quase dois mil euros de contribuição autárquica! Paguem-me 200 mil que eu entrego já! Eu queria sair daqui! Quem compra isto? Bela Vista nem dado! É chegar um dia e fechar a porta!"
"Isto" inclui dois andares: um com mercearia e outro com café-talho-frutaria-quiosque. Quantas vezes foi "isto" assaltado? "Nem tem conta!" Há pouco, invadiram o piso superior. Cortaram a peça onde encaixa o cadeado. Abriram a porta de ferro vermelha, fechada com trancas. Abriram as grades de ferro. E a porta de alumínio. "Isto é pior do que uma prisão. Mesmo assim, rebentam tudo".
Outros comerciantes abriram os seus negócios no "amarelo". No âmbito de um plano de emergência, em 1986, à fronteira chegou a Associação Cristã da Mocidade (ACM). Em articulação com a Segurança Social, a instituição liderada por Mário Pereira criou infra-estruturas para a infância, cantina social, ginásio... Outras associações trouxeram cidade.
Mário Pereira lembra-se do principal problema sinalizado pelo primeiro inquérito feito aos moradores dos 1256 fogos: a vizinhança. E percebe a queixa: "Você convida um amigo para ir a casa e tem de passar por baixo da roupa do vizinho, pelo cão do vizinho."
No "amarelo", há varandas em vez de corredores a conduzir quem entra às portas dos apartamentos. Não é só a falta de privacidade. Rapazes montam motas e aceleram varandas fora. Alguns batem nas janelas ao passar noite dentro. Muitos atiram lixo para onde calha.
Quando os apartamentos passaram do Fundo de Fomento à Habitação para a Câmara Municipal de Setúbal, em 1993, a autarquia abriu a hipótese de compra. E os inquilinos responderam até cerca de 40 por cento das habitações serem suas por valores que oscilaram entre os sete e os nove mil euros.
Marta Rodolfo comprou o apartamento dela "por 2700 contos". "A renda ia subir de 2600 escudos para 28 contos." A auxiliar de acção médica e o pintor de construção com quem casara fecharam logo a varanda. Puseram um portão e entregaram a chave à família vizinha que por ali precisa de passar.
O gesto era repetido por outros proprietários ao longo de incontáveis 20 quilómetros de varandas - multiplicaram-se os portões de ferro ou alumínio, alguns com espigões aguçados. Não sem conflito. Agora, reina a irregularidade. Como nos pátios. Lá em baixo, num extremo do bairro, há um pátio que foi convertido em horta. Um pouco acima, um pátio com parque infantil. Neste, lixo, lixo, lixo.
Medo de entrar
Uma mulher de boné verde atira um papel pela varanda do terceiro andar. O papel dança até uma zona de passagem. Reúne-se com tecidos amarelecidos, plásticos rotos, ervas daninhas. Quando o dia se levanta, até se pode levar com um saco de lixo na cabeça.
"Ou as pessoas não gostam de viver no asseio ou não sei... Não entendo como é que mandam o lixo lá para baixo", suspira Solange, a filha mais nova de Marta, ao chegar a casa depois de um exaustivo dia de aulas - estuda engenharia civil na Escola Superior de Tecnologia do Barreiro. Não se limita a protestar. Solange e a irmã lavam as escadas e a varanda de acesso ao apartamento uma vez por semana. Com creolina, um desinfectante, anti-séptico e germicida indicado para pocilgas, galpões e estábulos. "Quando estamos a lavar, toda a gente diz: 'Esta gente é porca!' Mas sair de casa e lavar..."
No início, havia gente contratada para limpar as partes comuns. Muitos moradores não pagavam, deixou de haver. Lá fora, nos pátios, o serviço de limpeza pouco parece entrar (apesar das apregoadas "acções extraordinárias"). Há meses que Solange dá com um sofá no logradouro. Ao lado do sofá, revistas antigas, brinquedos partidos, embalagens vazias...
Com a porcaria que se acumula nalguns vazados, reproduzem-se pulgas, carraças, ratos. Ema, a mulher de Amândio, tem "estado a trabalhar com a porta [da mercearia] fechada por causa dos ratos". "Parecem coelhos para jantar", brinca um miúdo.
Há quem acredite que a imundície serve para encapotar drogas. Pacotes de batatas fritas, copos de iogurte, garrafas de vinho, milhares de esconderijos espalhados por esses pátios. Os rapazes que vendem drogas perto da ACM têm as calças a cair, os boxers a aparecer. Deixam-se estar numa varanda, transfigurada numa espécie de fortaleza. É um bom sítio para avistar a clientela e a polícia.
Chiu!!! Se os rapazes dão por alguém suspeito, a observar, a questionar, vão logo perguntar quem é, o que quer. E o melhor é não irritar o grupo de "Banana Preto". O rapaz de cabelo amarelo, espetado, e os amigos terão cobrado o pacto interno: já muitos moradores terão ameaçado, agredido.
Duas rondas diárias da PSP não chegam para obrigar a procurar outro posto. As drogas infiltraram-se há muito. Mas o tráfico só é descarado ali, no "amarelo", junto à ACM, e lá em baixo, no "cor-de-rosa", junto aos três quiosques-cafés. No resto da Bela Vista, mantém-se discreto. No "azul" nem se vê. Quantos não teriam medo de entrar?
"Toninho Tchibone"
Bruno (nome fictício) já nem estranha o movimento: "Há colegas que estão a sair de casa e vendem logo. Pessoas com automóvel conduzem até aqui, ao 'amarelo'. Alguns trazem arrumadores. Esperam no carro, o arrumador vai buscar." Nem é o tráfico a maior dor de cabeça da polícia. A maior dor de cabeça da polícia levanta-se tarde, joga Playstation, encosta-se ao muro, acelera no asfalto, anda no assalto.
Nem pensar em usar o nome verdadeiro ao falar com um jornal. "Azulão" foi detido horas depois de dar uma entrevista à SIC. A Bela Vista estava a ferro e fogo. Alguém teria visto o rapaz referenciado por assalto a entrar em casa com cocktails molotov. Mas os amigos preferem desconfiar da SIC.
Está a tornar-se um hábito acelerar até marcar o asfalto quando morre um jovem da Bela Vista. E, no período de um ano e meio, morreram três. Estavam todos referenciados por assalto e eram todos doidos por motos e por carros. "Faziam 'cavalos' e 'peões' pelo bairro inteiro".
A 7 de Maio, o corpo de "Toninho Tchibone" foi sepultado em Algeruz. Bruno adorou a homenagem: "A provocação foi fazê-la em frente à esquadra. Estávamos todos a fazer o rali. Estava um polícia na janela da esquadra com uma shot-gun de fora. As pessoas ficaram exaltadas. Alguém disparou para o ar. As pessoas ficaram ainda mais exaltadas."
Perante a homenagem, a PSP pusera-se em sentido: ao efectivo da esquadra juntaram-se quatro equipas de intervenção rápida e duas equipas do corpo de intervenção. Choveram insultos, pedras. "A polícia pensa que pode disparar contra os pretos? Somos pretos, não somos bichos!"
No dia 8 de Maio, às 17h45, um Honda Civic passou veloz junto à esquadra. Pum! Pum! Pum! Luís Teixeira, assessor do ACM, ouviu os tiros e nem ligou. Tiros, na Bela Vista, "não é coisa de todos os dias". Só que "há tantos outros barulhos que se podem assemelhar com tiros". "Muitas vezes o que parece um tiro é um carro a passar por cima de um saco cheio de ar".
A Bela Vista tinha estourado. E quando a Bela Vista estoura "só há dois grupos que se movem: os que tentam impor a ordem e os que provocam a desordem", caracteriza o presidente da junta de freguesia de São Sebastião, Carlos Almeida. Os outros fazem pouco barulho.
A tensão saltou de uns dias para outros. A comunicação social correu para aqui. Como em 2002, quando um rapaz foi morto por um polícia com uma bala de borracha. Como em 2000, quando um grupo de jovens foi detido sob suspeita de ter assaltado umas bombas de gasolina e de ter tentado violar a actriz Lídia Franco.
Cristina estava lá fora a estender roupa e viu diversos rapazes: "Estranhei serem tantos. Quando percebi, já estavam os caixotes do lixo no meio da estrada a arder. Não tive medo. Uma vizinha da minha mãe telefonou a dizer: 'Estão ai a pôr fogo!' A minha mãe também me telefonou. Eu disse: 'Não se preocupem que não fazem mal a ninguém do bairro!'"
Perto daqui, o SIS interceptava um SMS escrito em crioulo: "A polícia levou-nos o Toninho, o Patinhas, o Seedorf da Bela Vista, o B.A da Outurela, o Angoi, o Celé da Buraca, o Teti da Damaia, o Corvo da Pontinha. Temos de tomar medidas para que eles não levem mais ninguém da nossa tropa, façamos algo para que eles no céu vejam que estamos na terra a lutar por eles, para todos na zona, apelo para que se incendeie carros e caixotes de lixos."
Controlar a vista
Não houve tanto alarido quando Seedorf morreu, em Fevereiro de 2009, numa troca de tiros com a PSP de Setúbal. Embora na Bela Vista, por aqueles dias, não se falasse noutra coisa. Nem quando morreu "Patinhas", em Novembro de 2007, num acidente de viação, numa perseguição policial.
Felismina Mendes, presidente da Associação Cabo-Verdiana de Setúbal, bem avisou, em editorial, no boletim mensal "Mantenha-se", que Patinhas-Bleu-Drogba não era caso único. Outros jovens seguem os mesmos trilhos: "Jovens que confundem irreverência e rebeldia com marginalidade. Jovens que desvalorizam a sua vida e a dos outros, confundindo os alvos do seu descontentamento e insatisfação, desperdiçando a vitalidade e a inteligência da sua juventude correndo atrás não de sonhos mas de imagens construídas, imagens irreais de um mundo fantasiado nos clips do consumismo."
Desta vez, a revolta saltou do bairro. A autarquia apressou-se a apagar o que fora grafitado no túnel do Quebedo, uma das zonas de maior tráfico de Setúbal: "Não esquecemos/Não perdoamos a violência policial". E um meio quilómetro acima, na avenida D. João II: "Diverte-te com a revolta".
A vida de crime não deixara Toninho, Patinhas, Seedorf sem amigos. Pelo contrário. Bruno descreve-os como amigos generosos: "Precisava de ir a qualquer lado, eles podiam levar, levavam. Se precisasse de dinheiro emprestado, emprestavam. Não estou a dizer que emprestavam a toda a gente. Estou a dizer que quando os amigos precisavam, eles não tinham problemas."
Não lhes faltaria dinheiro. Só o chamado "gang do multibanco" terá arrecadado mais de três milhões de euros - estrada acima, estrada abaixo. No início de Julho, a Unidade de Intervenção da GNR deteve oito rapazes e apreendeu duas armas de fogo, nove automóveis, três motos, 900 euros em notas, gorros, coletes à prova de bala.... "Quinito", o suposto líder, já antes fora preso.
Os rapazes que dobram a noite no roubo e no assalto não param no "amarelo". Preferem juntar-se no "azul". Diz Bruno que "é mais fácil controlar a vista". Só há uma entrada e uma saída. Se a polícia decide entrar, vê-se a aproximar. No "amarelo" há várias entradas, várias saídas...
Vidas disfuncionais
O alarido infantil desperta o "azul". Faz parte da natureza do lugar. O "Estudo dos Modos de Vida da População dos Bairros da Bela Vista", feito no final de 2006, encontrou nos moradores uma idade média de 34 anos. No "azul", era ainda inferior: 30.
Algumas crianças brincam entre blocos encardidos, rabiscados. Cada rua interior tem a sua cara. Umas acolhem viaturas, outras foram muradas ou arborizadas e são usadas como espaço de recreio. Em tempo de aulas, entre as 8h30 e as 9h00, mães saem com os filhos.
As filhas mais velhas de Cristina saltitam de mochila cor-de-rosa às costas até à escola inaugurada há pouco. A mais nova segue, no seu carrinho, até ao Centro Cultural Africano (CCA). Há pelo menos três infantários na Bela Vista, só que deixá-la no CCA fica-lhe mais barato. Paga 60 euros pela filha de dois anos, o que inclui pequeno-almoço, almoço, lanche. Por cada uma das outras paga 25 euros. Às 17h00, terminadas as aulas, a presidente do CCA, Carla Marie Jeanne, vai buscá-las, dá-lhes lanche e, duas vezes por semana, aulas de dança. O CCA é uma alegria em dias de dança e batuques.
Cristina pensava que ia ser professora. "Desde pequena tinha aquela coisa pelos miúdos. Mas não era amiga da escola! Não tinha cabeça!" Um em cada quatro residentes não concluiu o 1.º ciclo - apenas 5,5 por cento terminou o secundário, apenas um por cento o superior.
Quem tem agora 30 anos não teve as oportunidades de quem tem agora 15. Não havia Rendimento Social de Inserção (RSI), nem Programa para a Prevenção e Eliminação do Trabalho Infantil (PETI). Muitos tinham de abandonar a escola para apoiar os irmãos mais novos.
Há dez anos, quando Solange Delicado assumiu a presidência do Agrupamento de Escolas Ordem de Santiago, "a taxa de abandono escolar era muito elevada". Ainda é. Disfarça-se de insucesso: "Alguns aparecem dois dias e desaparecem um mês". O insucesso anda entre os 20 e os 25 por cento no 1.º ciclo. Atinge um pico de 31 por cento no 7.º ano.
Solange Delicado olha para os dados relativos ao ano lectivo 2007/2008 e diz: "Já foi pior". Há, agora, "maior articulação entre a escola e as equipas que acompanham os beneficiários de RSI". E a escola tem outros meios. Desde 2006/2007, é Território Educativo de Intervenção Prioritária, o que lhe trouxe um valente reforço técnico. Só que um psicólogo, um assistente social, um animador social, um professor não substituem a família, "que em vez do pequeno-almoço dá um café e um pacote de batatas fritas".
Às vezes, os conflitos saltam o muro da EB 2/3 Ana de Castro Osório. Às vezes, os conflitos rebentam dentro da EB 2/3 Ana de Castro Osório. Disputas de namorados, discórdias nascidas à noite. Não há registo recente de alunos a bater em professores, embora sobrem episódios de "agressividade e de indisciplina". Levantam-se, dão um murro, soltam uns palavrões.
Alguns alunos ligam-se a professores ou a auxiliares de acção educativa. Desabafam vidas disfuncionais. São encaminhados para a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), para o PETI, para o programa de acompanhamento de mães adolescentes da Cáritas Diocesana de Sétubal, que ali gere o Centro Social Nossa Senhora da Paz.
A professora gostaria que houvesse maior articulação entre as várias entidades que trabalham no bairro: "A escola funciona até às 18h00. Depois das 18h00, muitos ficam entregues a si próprios". Não é o deserto. A Associação Cabo-Verdiana apoia alguns miúdos em horário pós-escolar. A ACM, o CCA, o Grupo Desportivo "Os Amarelos"- miúdos de etnia cigana exibem os seus truques na esperança de que alguém neles encontre um novo Ricardo Quaresma.
Trabalho de paciência
Cristina toma uma meia-de-leite e come uma torrada no café de Amândio - gosta de aqui tomar o pequeno-almoço com as amigas. Segue para a sogra: ajuda-a a fazer rissóis e bolinhos de bacalhau. O que ganha com a sogra complementa o RSI, o abono de família, o cabaz do Banco Alimentar.
Parece acomodada. Tirou um curso de cabeleireiro que lhe deu equivalência ao 9.º ano: "Desanimei com esse trabalho. Estive seis meses num salão e só me mandavam lavar cabeças! Não ia estar todo o dia a lavar cabeças!" Talvez seja o momento: "Dos 21 aos 31 a viver para um homem!"
Nem sempre vai à sogra. Às vezes, deixa-se estar, horas, afundada no sofá, a ver televisão. Acontece-lhe nem encontrar vontade de cozinhar, comprar algo pré-cozinhado. Mesmo sabendo que depois andará a contar os trocos.
Falta capacidade de gestão a muitas das trezentas e duas famílias (1052 pessoas) que recebem RSI na Bela Vista. Abundam "puxadas" de água, "puxadas" de electricidade, "puxadas" de televisão por cabo. Há quem deva mais de três mil euros de renda à autarquia.
Nos últimos anos, pelas contas da Câmara Municipal de Setúbal, 110 inquilinos acumularam cerca de um milhão de euros de rendas em dívida. As rendas variam entre 2,59 e 126,25 euros. Setenta casos estão em fase de regularização. Quarenta já seguiram para tribunal.
A assistente social Sandra Alves, coordenadora da equipa de RSI da Bela Vista, fruto de protocolo entre a ACM e a Segurança Social, conhece "muitas famílias sem hábitos de trabalho, dependentes desta medida há anos". Os seus processos deixaram de estar sossegadinhos, dentro das gavetas.
A equipa não requer escolta policial para fazer visitas ao domicílio, como a CPCJ. Mas nunca se sabe quando alguém pode passar da ameaça ao acto. A auxiliar de acção directa Vânia Semedo, criada no bairro, já teve de se "meter no meio - para uma utente não bater numa técnica": "Ela não queria acompanhamento, não queria visitas, só queria a prestação."
Ainda se digere o susto da véspera. Uma técnica e uma auxiliar "foram sequestradas" por um beneficiário de RSI. O homem disse que por medo trancava o portão - já fora assaltado. Elas assentiram. Ao perceberem-no alcoolizado, agressivo, quiseram adiar a conversa. E ele não as quis deixar sair. Uma delas conseguiu alertar a equipa, que alertou a polícia.
É um trabalho de paciência. "Se cortamos a prestação, como diz a lei, o que vai ser das crianças?", questiona Sandra Alves. "Não é por haver filhos que não cortamos. Tentamos é várias maneiras antes de chegar a esse limite. Se levássemos a lei à letra, cortávamos e eles requeriam e tornávamos a cortar e tornavam a requerer e nunca fazíamos nada com eles".
Há quem não saiba cozinhar, quem não saiba limpar a casa, dar banho aos filhos, gerir dinheiro... E é por isso que as equipas de RSI têm auxiliares de acção directa, como Vânia Semedo: "Vamos lá uma vez por semana ver se a casa está limpa; se não está, temos de limpar com eles".
Vânia sentou-se com Antónia a fazer contas. Antónia não pagava electricidade há um ano e meio. Devia mais de 750 euros. "Vai para cinco meses, comecei a pagar 150 euros por mês. Estou a esforçar-me para pagar a luzinha para ficar com tudo em dia. Recebo 600 e tal [de RSI]."
Quase não tem móveis dentro do apartamento. Na sala, um aparador e uma poltrona. Em cada quarto, apenas um armário e alguns colchões enrolados. Deitou fora os sofás velhos. Deitou fora as camas velhas. "Foi com intenção de ver umas coisas baratas e comprar..."
Antes de começar a pagar a electricidade também fez um acordo com a empresa de águas. Amortizou 150 euros por mês. A renda é que não arrisca: "A renda é pouco. Catorze euros e tal. Chega o abono, não deixo atrasar, vou logo pagar." Custou-lhe muito ter lugar no "cor-de-rosa".
Os pais, outrora nómadas, fixaram-se "há 20 e tal anos" na Bela Vista. Tiveram sete filhos. "Era muita gente numa casa. Pus-me debaixo de uma tendazinha, um pouco acima da Escola Ana de Castro Osório, a ver se me davam casa. Eles estavam sempre a tirar a tendazinha. A câmara, uma vez, até foi lá com a polícia. Diziam que tinha de sair. Não tinha onde ir!"
Há quem ainda agora siga a estratégia. E a Bela Vista cresce na ribanceira que dá para o Estaleiro Naval de Setúbal, construído numa ilha artificial, no estuário do Sado. De um lado, angolanos. Do outro, cabo-verdianos. De um lado, passagem estreita, antena parabólica logo na entrada. Do outro, um largo a antecipar uma rua ladeada por casebres.
A mulher da ponta está com vagar para conversar: "Tinha uma casa lá na Bela Vista que não era minha. Pagava 250 euros. Queria ter a minha casa. A câmara não me dá casa. Vim para aqui para ver se conseguia uma casa minha. Tinha um espacinho. Estou aqui há dois anos e meio."
O marido ora tem trabalho, ora não. Os homens vão todos os dias ao estaleiro ver se há. Às vezes, há; outras vezes, não. Fazem escovagem, lavagem, o que houver. "Esta semana o primo, que acabou de chegar de Cabo Verde, trabalhou um dia só. Trabalhou oito horas. Ganhou 40 euros."
Lá em cima, dentro dos apartamentos da Bela Vista, também há clandestinos. Alguns já nasceram aqui. Como Narcisa. Engravidou aos 15 anos: "Sabia lá que ia ficar grávida! Era burrinha. Não sabia tomar aqueles comprimidos. A pírula!" (sic). Já tem três filhos - 10, nove e oito anos. Irregulares, como ela.
Prisão para fazer desistir
Mónica Frechaut imagina-se a viver num sítio sem recolha de lixo apropriada, sem limpeza apropriada, sem iluminação apropriada. Imagina-se a viver num sítio que só é notícia quando há violência, rodeada de gente sem perspectivas, a ter de esconder a morada ao procurar emprego. A viver com a sensação de que o mundo pensa que quem é da Bela Vista é para abater.
Tinha 13 anos quando se mudou para a Bela Vista. Reparou que, apesar de ficar a 15 minutos a pé do centro da cidade, o complexo vivia isolado. Os moradores diziam: "Vou a Setúbal". Era 1992. A cidade cresceu, engoliu o bairro. E a frase continua em uso.
A psicóloga de 31 anos viveu pouco tempo aqui, mas nunca se desligou deste lugar. Vê-o como uma "prisão que impede a fuga à pobreza". As suas "paredes são feitas para isolar e fazer desistir". As escolhas abertas aos jovens são limitadas. Às vezes, até lhe parece "que o melhor é implodir os prédios para se construir uma vida nova".
O que Mónica Frechaut deseja é uma requalificação profunda, integrada: "A Bela Vista precisa de não estar na mesma e de ter a sensação de que não está na mesma." A presidente da Câmara, Maria das Dores Meira, concorda. "Somente uma intervenção global - que integre acções efectivas de reabilitação urbana, não só nos espaços públicos, mas também nos próprios prédios, e acções de efectivo apoio social - pode contribuir para iniciar um ponto de viragem na vida destes bairros", escreveu, no Setúbal - Jornal Municipal. Já esteve para acontecer. As verbas do Proqual "acabaram antes de se começar a intervenção já planeada". Não desistiu. Candidatou-se a outros programas. Um programa de requalificação foi aprovado a 10 de Agosto pela comissão directiva do Programa Operacional Regional de Lisboa: 7,244 milhões de euros.
Sobram ideias. "Há problemas de base que são de comportamento", sublinha Mário Pereira. "Tem de haver uma gestão rigorosa. Os moradores têm de ter regras. Direitos e obrigações. A primeira coisa é organizar condomínios com acesso restrito." Carla Marie Jeanne não se cansa de reclamar mais formação: "Muitos jovens foram criados praticamente na rua. Precisam de fazer formação para seguir a sua vida."
Diversas entidades estão a tentar promover uma oferta educativa/formativa alternativa para jovens em absentismo prolongado e/ou abandono escolar. A Ana Castro de Osório está a deixar os contentores e pavilhões que a acolhem há mais de 20 anos. A nova escola encaixará crianças e jovens de mais de 20 nacionalidades em 40 turmas de 2º e 3º ciclos e em nove turmas de Secundário.
Pelos velhos pavilhões passaram milhares de residentes da Bela Vista. O que distingue, afinal, jovens como "Toninho Tchibone" de jovens como Solange e a irmã já engenheira? "Se calhar os nossos pais davam-nos liberdade, mas impunham limites. Queriam ver as nossas notas. Não sei, se calhar, se não fossem os nossos pais teríamos seguido o caminho dos outros", diz a rapariga. A mãe sempre lhes disse: "A única herança que vos deixo é estudos. Se não querem estudar, vão trabalhar."
Há aqui muito quem acorde cedo para trabalhar. A Bela Vista não está sempre a ferro e fogo. Às vezes, até festeja na rua. O filho de Gracinda casa dentro de um mês. Sem dinheiro para alugar um espaço, a família faz num pátio "a festa dos padrinhos". A música cigana ecoa. O noivo anda por ali, de dentes cariados, camisa desabotoada quase até ao umbigo. São mais de 40 padrinhos. A juntar dinheiro para os noivos que aqui farão vida. a

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