Os heróis não reconhecidos dos campos de batalha

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fernando veludo

A bandeira da ONU deixou de ser à prova de bala. Já não protege os humanitários nem as equipas das ONG

Há seis anos atrás, hoje, o meu pai, Sérgio Vieira de Mello, foi morto num trágico ataque em Bagdad que mudou o mundo humanitário. Uma carrinha que carregava bombas explodiu numa delegação das Nações Unidas, matando 22 trabalhadores humanitários e ferindo muitos mais. Alguns não foram magoados fisicamente mas feridos psicologicamente. Anos depois, muitos continuam vulneráveis.O meu pai liderava a equipa da ONU em Bagdad. Alguns dias antes de ter sido morto, escreveu: "A situação é, de facto, difícil. Mas vamos ser bem-sucedidos, porque vamos fazê-lo com o povo iraquiano".
A sua dedicação em servir as pessoas em necessidade é partilhada por milhares de trabalhadores humanitários em todo o mundo que sacrificam o seu tempo, energia e, muitas vezes, a sua vida para ajudar aqueles que precisam, em sítios onde as guerras matam e mutilam e levam vítimas inocentes a procurar campos de refugiados ou o exílio. Darfur, Chade, República Democrática do Congo e Uganda são apenas algumas dessas áreas.
Como reconhecimento do seu compromisso, a minha família procurou marcar 19 de Agosto como o Dia Mundial do Humanitarismo - data em que o meu pai e os seus companheiros morreram enquanto ajudavam pessoas desamparadas. Depois de negociações com a nossa fundação, o Brasil, a França, o Japão, a Suécia e a Suíça patrocinaram uma resolução das Nações Unidas que foi adoptada pela Assembleia Geral a 11 de Dezembro de 2008. Assim, pela primeira vez, hoje é oficialmente o momento para reflectir sobre a situação dos humanitários em campo.
Infelizmente, as condições para os trabalhadores humanitários, já precárias, estão a deteriorar-se. Desde 2006, ataques aos trabalhadores aumentaram fortemente, indicam os relatórios do Instituto de Desenvolvimento Externo. A região do Darfur, no Sudão, o Afeganistão e a Somália são os locais mais perigosos, com mais de 60 por cento de violência contra os trabalhadores.
O ano passado foi o pior em 12 anos, com 260 trabalhadores humanitários mortos, raptados ou gravemente feridos em ataques violentos, segundo o instituto. Este valor ultrapassa o número de vítimas entre as tropas de paz das Nações Unidas.
O ataque bombista de Bagdad que matou o meu pai revelou, dramaticamente, uma realidade com que os trabalhadores humanitários lidam desde o início dos anos 1990: a bandeira da ONU deixou de ser à prova de bala. Já não protege os humanitários nem as equipas das organizações não governamentais.
Antes dos anos 1990, a maioria das guerras no mundo desenvolvido eram guerras "por procuração", em que duas partes manipulavam terceiros para combater uma causa entre si. Existia uma espécie de acordo tácito entre cavalheiros, no qual os superpoderes respeitavam tanto quanto possível os direitos e o trabalho das forças humanitárias.
No entanto, isso não impediu a morte de muitos humanitários. Mas a maioria das vítimas era pessoas que estavam no sítio errado, à hora errada, apanhados no fogo cruzado. Raramente os alvos eram trabalhadores humanitários.
Contudo, a situação mudou drasticamente. Com a ascensão do nacionalismo desde a queda do comunismo e o fim das "guerras por procuração", os trabalhadores humanitários não mais beneficiam dessa protecção, por muito fraca que fosse antes. Hoje, as vítimas são, frequentemente, alvos marcados.
Estamos a falar de pessoas que servem na linha da frente, para aqueles de nós que se emocionam ao ver na televisão crianças a chorar ao lado dos corpos das mães, mortas por fogo de canhão - e pensam que alguma coisa tem de ser feita para ajudar essas vítimas e outras como elas.
Os trabalhadores humanitários são os heróis não aclamados do nosso tempo. Não são reconhecidos como tal. E vejam os seus esforços, a tentar convencer os senhores da guerra a deixá-los ajudar os civis inocentes expostos ao frio, ao calor, a doenças e outras ameaças.
Eles nunca têm fundos e equipas para responder totalmente às necessidades. Eles levantam-se todas as manhãs, convictos da grandiosidade da sua tarefa, apesar do sentimento torturante de que tudo o que possam fazer será sempre apenas uma gota no oceano. Eles podem ajudar, os seus esforços podem e conseguem salvar vidas, mas estes trabalhadores estão conscientes de que as suas acções serão quase nada face a alguns dos mais graves problemas do mundo.
A realidade do seu trabalho deixaria em desespero muitos de nós. Mas não a eles.
Como um trabalhador humanitário me disse uma vez: "Nós não temos o direito de desesperar quando vemos que aquelas pessoas que perderam tudo, até a família, ainda têm esperança".
É tempo de a comunidade internacional enfrentar as suas responsabilidades e parar de se esconder por trás de acções humanitárias. O mundo deve parar de utilizar os esforços humanitários como uma desculpa. Não pode evitar agir enquanto fica de consciência tranquila por enviar agentes humanitários para zonas de morte. Há vidas em risco.
E neste dia, pela sua coragem, dedicação, generosidade e humildade, os trabalhadores humanitários merecem o nosso respeito. Devemos não só dar graças pelo seu trabalho como também recordar ao mundo que devemos protegê-los, que devemos forças os senhores da guerra, se tiverem alguma réstia de humanidade, a proteger e ajudar estes trabalhadores. Devemos lembrar ao mundo que os trabalhadores humanitários são agentes neutros e ajudam os necessitados, independentemente da cor, raça, religião ou convicções políticas. Eles merecem os nossos esforços e o nosso agradecimento. Presidente da Fundação Sérgio Vieira de Mello, Exclusivo PÚBLICO/Washington Post

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