Queres ser Charlie Kaufman?

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Dez anos depois de Spike Jonze ter rodado "Queres Ser John Malkovich?", a estreia na realização do seu argumentista, Charlie Kaufman, chegou ontem às salas portuguesas. "Sinédoque, Nova Iorque" é apenas o seu sexto guião original, mas é síntese, súmula e desconstrução da voz autoral de um dos mais peculiares argumentistas dos últimos anos.

Há um velho adágio que diz que Hollywood paga bem aos seus argumentistas mas depois compensa tratando-os abaixo de cão.
Charlie Kaufman é a excepção que confirma a regra. Sobretudo porque o guião que fez o seu nome andou anos aos tombos por Hollywood, com toda a gente a dizer-lhe que era espantoso mas infilmável. Um Oscar (e duas nomeações) depois, Kaufman é um dos guionistas mais intocáveis, mais influentes e mais raros do cinema americano. Intocável porque ninguém consegue escrever como ele, influente porque ninguém desiste de o tentar, raro porque em dez anos apenas produziu seis guiões.

Seis guiões que cristalizaram uma voz autoral com uma identidade narrativa tão forte que nem mesmo uma mudança de realizador (quatro, até agora) a consegue apagar ou diluir. Seis pontos de vista diferentes que concentram em si a essência do seu tema central: a identidade. Ou a vida. Ou a morte. Ou a perda. Ou, apenas, a mente de Charlie Kaufman.
Num filme-Kaufman, o verdadeiro autor (coisa rara no cinema contemporâneo, venha ela dos EUA ou de outros sítios) é o argumentista, e o que varia de filme para filme é o modo como cada realizador se entrosa, ou não, com o seu peculiar modo de olhar o mundo, com uma das escritas mais originais que o cinema americano revelou em muito tempo.
Tão original que não percebemos exactamente de onde ela vem, como é que chegou aqui e como é que a formatação de Hollywood ainda não deu cabo dela.

Questões de identidade

Em "Confissões de uma Mente Perigosa" (2002), George Clooney, no papel de um agente da CIA, diz à vedeta televisiva interpretada por Sam Rockwell: "Jesus Cristo morreu e ressuscitou aos 33 anos. Você tem 32 e ainda não fez nada que se visse. É melhor despachar-se".

Charlie Kaufman estudou cinema em Nova Iorque, mas chegou aos trintas a trabalhar no departamento de assinaturas de um jornal de Minneapolis com a sensação de que a vida lhe estava a passar ao lado. Foi para Los Angeles trabalhar como argumentista, passou anos em séries televisivas que nunca foram a lado nenhum, e expressou a sua frustração no tal guião espantoso mas infilmável, "Queres Ser John Malkovich?", história de um marionetista frustrado que, forçado a trabalhar para ganhar a vida, descobre um portal que permite passar quinze minutos dentro da cabeça do actor John Malkovich - e o preço de se querer ser quem não se é.

Filmado em 1999 por Spike Jonze, "Queres Ser John Malkovich?" transformou-se num fenómeno, integrando Kaufman numa nova geração de criativos  capitaneada por Jonze e pela (sua então esposa) Sofia Coppola que parecia prestes a redefinir o cinema americano.
No espaço de dois anos, depois de ter passado anos a batalhar em vão, Kaufman viu três guiões colocados em produção - o melhor dos três, ironicamente, a "encomenda" feita por um estúdio (a Columbia).

"Inadaptado" (2002), de novo dirigido por Jonze, distorcia o caderno de encargos (a adaptação do "best-seller" não-ficcional de Susan Orlean) para se tornar num fervilhante laboratório formal meta-narrativo, encenando, em vez da narrativa do livro, o processo da sua própria adaptação ao cinema: um filme sobre a criação do próprio filme, com Nicolas Cage a dar corpo a uma personagem chamada "Charlie Kaufman" e ao seu irmão gémeo "Donald", aliás creditado como co-autor do argumento. E se a tentação de ver autobiografia nisto é grande (como é, aliás, em todos os seus filmes, tal é a componente emocional que Kaufman consegue injectar no que à partida são conceitos demasiado secos e teóricos), considerem o seguinte: Donald Kaufman não existe.

"Inadaptado", filme sobre um artista que procura compreender o seu lugar no mundo, ressoa directamente em "Sinédoque, Nova Iorque" (2008), a sua estreia na realização, ontem chegada às salas portuguesas depois de ter estado a concurso em Cannes 2008, também sobre um artista à procura do seu lugar (embora de modo muito mais elíptico). Mas encontramos também ecos seus em "Human Nature" (2001), espécie de "negativo" do "Menino Selvagem" de Truffaut, e no vaivém entre a verdade e a mentira de "Confissões de uma Mente Perigosa" (2002), adaptação da "autobiografia" do apresentador televisivo Chuck Barris, que se apregoava uma suposta vida secreta como assassino contratado da CIA.

Com a questão da identidade - quem somos; como chegámos a sê-lo; pode alguem ser quem não é? - como chave de leitura comum, "Inadaptado" destacava-se pela sintonia entre realizador e argumentista: nem Michel Gondry nem George Clooney, ambos em tempo de estreia na realização, souberam fazer inteira justiça às explosões criativas de Kaufman, tombando em armadilhas clássicas de primeiro filme.
A lição de "Human Nature" foi aprendida por Gondry, que partilhava com Jonze um passado de inovador no campo do teledisco e que deu carta branca a Kaufman para trabalhar uma ideia que desenvolvera com um amigo. A colaboração entre ambos, cristalizando a meditação do argumentista sobre a identidade através de um artesanal desvio Gondryano pelos mecanismos da memória, deu origem a um dos mais notáveis filmes da década, o sublime "O Despertar da Mente" (2004), valendo a Kaufman o Oscar do argumento (depois de duas nomeações não concretizadas por "Malkovich" e "Inadaptado").

Esta história de amor que literalmente se recusa a ser esquecida (porque esquecer implicaria apagar a verdade das emoções e da identidade, perder a humanidade de quem somos) é ao mesmo tempo a sequela perfeita aos filmes anteriores e a introdução ideal a "Sinédoque, Nova Iorque", desenvolvido inicialmente como (pasme-se) um filme de terror para Spike Jonze dirigir.

Universos paralelos

Concebido como um filme de género, "Sinédoque, Nova Iorque" transformou-se numa meditação claustrofóbica sobre a identidade, a arte e a vida que a Columbia não quis financiar, que Jonze (retido na produção conturbada de "O Sítio das Coisas Selvagens") não pôde realizar, e que Kaufman acabou por dirigir sozinho na sua estreia atrás da câmara. Confirmando ao mesmo tempo duas coisas.

Primeira: Kaufman é mais argumentista (teórico de ideias) do que realizador (praticante de imagens), e a sua inexperiência confirma que é preciso uma invulgar conjugação de talentos para levar a bom porto um filme seu - "Sinédoque" é muito mais filme de argumentista do que primeira obra de realizador estreante.
Segunda: não há ninguém que consiga sequer aproximar-se de Kaufman no que diz respeito à construção de universos paralelos. "Sinédoque" é um labirinto em constante mutação, onde é tão fácil perder o pé entre os vários níveis de referencialidade que, alegadamente, o próprio autor se terá perdido pelo meio.

A história de um encenador de teatro preso numa espiral obsessiva afina, refina e pormenoriza a invenção de uma realidade paralela que reencontramos em todos os filmes escritos por Kaufman, a meta-narrativa que navega entre a arte a vida, a incapacidade de esquecer o passado que fez de nós quem somos, a necessidade de tentar fazer sentido do mundo que nos rodeia (mesmo que esse mundo seja um casulo puramente interno...). É uma espécie de "Kaufman redux", só que sem a escapatória de um final mais ou menos feliz ou de um regresso à realidade: "Sinédoque" é uma toca de coelho que se esboroa atrás de nós em direcção a um final abrupto mas inescapável.
"Só existe um único final para qualquer história. A vida humana acaba com a morte. Até lá chegarmos, a vida vai andando, vai ficando mais complicada. Tudo implica perda."

As palavras são do próprio Kaufman, à revista "Wired", aquando da estreia americana de "Sinédoque". E se elas sugerem que a estreia na realização do argumentista é um filme deprimido/depressivo, pensemos apenas no seguinte: para quem imaginou a reencarnação no corpo de John Malkovich, o sacrifício de um irmão gémeo que nunca existiu ou uma memória que se recusa a ser apagada, admitir que daqui ninguém sai vivo é um triunfo de pragmatismo.

A não ser, claro, que tudo isto apenas exista na cabeça de Charlie Kaufman.

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