Criança do Lapedo Esta era a cara do miúdo há 25 mil anos

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Tinha uns quatro anos quando morreu, há 25 mil anos. Em 1998, descobriram o esqueleto. Mas só víamos ossos ou visões artísticas. A primeira reconstituição forense revela-lhe o rosto.
Este texto foi publicado a 28 de Novembro de 2007

a Brian Pierson trabalhou mais de dez anos em Hollywood, como artista de efeitos especiais em filmes como Titanic, O Último Samurai, Alien: o Regresso ou Star Trek: Insurreição. Não lhe faltam monstros e seres fantásticos no currículo, mas procurava outros desafios intelectuais, pelo que decidiu fazer um doutoramento em Antropologia e especializar-se em reconstituições faciais forenses na Universidade de Tulane, em Nova Orleães. Foi assim que, este ano, um artista de efeitos especiais se cruzou com a criança do Lapedo e lhe reconstituiu a cara com técnicas forenses. Tal e qual como faz o FBI.É esse rosto que pode ver-se agora pela primeira vez. O arqueólogo português Francisco Almeida apresenta hoje esta reconstituição facial à comunidade científica, no Simpósio sobre Realidade Virtual, Arqueologia e Património Cultural em Brighton, no Reino Unido.
Brian Pierson aparece nesta história por causa de Francisco Almeida, do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar), que tem participado, como comissário científico, na criação de um pequeno museu no local onde se descobriu o esqueleto da criança - o Abrigo do Lagar Velho, no vale do Lapedo, perto de Leiria.
No início do próximo ano, o museu deverá abrir ao público num terreno sobranceiro ao vale, onde há 25 mil anos alguém sepultou a criança, de quatro a cinco anos, com todo o cuidado, seguindo um ritual. Purificaram a sepultura com fogo e embrulharam a criança numa mortalha, com oferendas e ocre vermelho.
Em Novembro de 1998, espeleólogos que procuravam arte rupestre no vale encontravam o esqueleto, deixado à vista por uma máquina que abriu uma estrada.
Mestiça ou não
Numa escavação de emergência, os arqueólogos Cidália Duarte, Ana Cristina Araújo e João Zilhão, então do Instituto Português de Arqueologia (agora integrado no Igespar), recuperaram o esqueleto da primeira e ainda única sepultura paleolítica encontrada na Península Ibérica. Nem no dia de Natal pararam de escavar. Afinal, na altura, aquele era também o único esqueleto quase completo de uma criança do Paleolítico Superior na Europa, o que, só por si, já era um achado arqueológico de relevância mundial.
Só que a história da criança do Lapedo teria um picante adicional: podia ser mestiça. Erik Trinkaus, um antropólogo norte-americano a quem João Zilhão (então presidente do Instituto Português de Arqueologia) falou da descoberta, detectou nos ossos características morfológicas resultantes de um cruzamento reprodutivo entre dois tipos de homens. Tal implicava a ocorrência de sexo entre dois grupos humanos distintos: o homem moderno, a espécie da criança do Lapedo, que é a mesma que a nossa, e o homem de Neandertal, extinto há 28 mil anos.
Assim, o esqueleto passou a estar no meio de um debate intenso sobre evolução humana, já que o relacionamento destes dois grupos humanos estava (e continua a estar) envolto em polémica. Fizeram amor e tiveram filhos? Ignoraram-se, e por alguma razão os Neandertais desapareceram? Ou guerrearam-se, até à chacina completa dos Neandertais pelos homens modernos? Fizeram amor - foi a resposta da equipa que estudou o esqueleto, pelo que a criança do Lapedo se tornou notícia mundial.
Apresentava, por exemplo, as pernas curtas como os Neandertais e as ancas estreitas como os homens modernos. Também possuía queixo, um traço dos humanos modernos, inexistente nos Neandertais, só que estava metido para dentro de forma invulgar.
Descendência Neandertal
Não há dúvidas de que os dois humanos coexistiram alguns milhares de anos no espaço e no tempo (os humanos modernos chegaram à Europa há cerca de 40 mil anos, enquanto os Neandertais sempre só cá estiveram, desde há 300 mil anos).
Mas, além de sexo, outro pormenor apimentava a história: a criança nasceu três mil anos depois da extinção dos últimos Neandertais, na Península Ibérica, para onde vieram recuando do Médio Oriente e do resto da Europa.
Portanto, seria um descendente longínquo desses híbridos de humanos modernos e Neandertais, que poderia resolver o mistério sobre o relacionamento de ambos.
Punha em causa, na interpretação da equipa, a ideia dominante de que os Neandertais se extinguiram sem descendência: continuaram a existir, só que através de nós. Uma ideia que, no entanto, outros cientistas não aceitam. Só quando surgirem novas provas esmagadoras, um dos lados da discussão poderá ceder.
Até lá, esgrimem argumentos, com uma nova frente de debate, agora centrada no ADN de Neandertais e de homens modernos.
Depois da descoberta da criança, fizeram-se mais escavações no vale do Lapedo, coordenadas por Francisco Almeida. Ao mesmo tempo, ia tomando forma a ideia de criar um Centro de Interpretação do Abrigo do Lagar Velho, com a Câmara Municipal de Leiria, até porque, durante as escavações, o local recebia muitas visitas de cientistas e curiosos. "Uma das perguntas frequentes era: mas onde está o menino?", conta Francisco Almeida.
Estava em Lisboa, no Igespar, onde vai continuar guardado numa caixa construída para o efeito. É frágil de mais para estar num museu pequeno, onde o controlo ambiental é complicado, por isso Francisco Almeida foi pensando em alternativas ao esqueleto para pôr no Centro de Interpretação. Uma réplica do esqueleto na sepultura, em tamanho real? Por que não?
Para isso, bastava recuperar os ficheiros das tomografias axiais computorizadas (TAC) feitas, em tempos, ao esqueleto e ao crânio no Hospital Curry Cabral, em Lisboa: tinham sido enviados ao neurologista Christoph Zollikofer e à antropóloga Márcia Ponce de León, especialistas em reconstituições tridimensionais da Universidade de Zurique (Suíça). Foram eles que reconstituíram, em computador, o crânio da criança a três dimensões (para ver se havia sinais de mestiçagem, por exemplo). Desde então, passou a haver imagens tridimensionais de como seria a cabeça da criança, porque o crânio está muito fragmentado (só cerca de cem fragmentos se conseguem montar em pauzinhos de bambu e outros cerca de 240 estão tão partidos que nem se podem colar). Com essas imagens virtuais, construíram-se também as primeiras réplicas em resina translúcida.
O caso do enforcado
Foi a partir daquelas imagens tridimensionais, reenviadas da Suíça para Portugal, que o Instituto Politécnico de Leira fez uma réplica do esqueleto, através de impressão tridimensional (uma técnica que deposita gesso por camadas, banhado depois com resina). A ideia é, no final, colocar os ossos pintados numa réplica da sepultura, construída com silicone e sedimentos.
Ao mesmo tempo, Francisco Almeida ia enviando imagens deste trabalho a Trent Holliday, um antropólogo da Universidade de Tulane que tem participado em escavações no vale do Lapedo. "Ele disse-me: 'Tenho um estudante de doutoramento que se está a dedicar a reconstituições faciais'", conta Francisco Almeida.
Brian Pierson já tinha feito a reconstituição forense do rapaz de Turkana (ou de Nariokotome), o fóssil de um Homo erectus com 1,6 milhões de anos, descoberto no Quénia. Também ajudou a identificar o esqueleto de um homem encontrado enforcado na zona de Nova Orleães: depois de a reconstituição forense do rosto ter passado na televisão, a família reconheceu-o.
Agora, as capacidades de Brian Pierson na indústria cinematográfica e na reconstituição facial forense permitiram revelar como seria o rosto da criança do Lapedo. "Se a família do puto fosse viva, também ia reconhecê-lo", remata Francisco Almeida.

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