Tudo o que Bill Callahan sabia estava errado

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"Sometimes I Wish We Were An Eagle", o belíssimo e recente disco de Callahan, é o resultado de tudo o que o americano pensava saber ter ruído. É ele que o diz, numa entrevista em que fala da morte, de filhos, da juventude e do seu horror à exposição.

Um detalhe é apenas um detalhe enquanto não conhecemos a história toda. Exemplo de um detalhe sem o mínimo interesse: a propósito de "Sometimes I Wish We Were An Eagle", o mais recente disco de Bill Callahan (anteriormente conhecido por Smog), dizia-se que Callahan tinha deixado uma maquete ao produtor com as bases das canções do disco, e que o produtor tinha feito tudo enquanto o senhor Callahan andava a dar concertos, de modo que quando chegou foi só cantar.

Detalhe desinteressante, este. Mas imaginem que vos dizíamos que Bill Callahan é o maior criador de canções vivo. E que vos dizíamos que os dados oficiosos acerca do senhor retratamno como um perfeccionista obsessivo, misantropo, que muda de banda a cada disco, e que, controlador nato, até 2005 tinha produzido todos os seus discos.

O detalhe começa a ganhar contornos mais interessantes: aqui está um tipo que de súbito abdica das rédeas do seu bem mais precioso, as canções. A isto acrescentem-se alguns factos: até "Rain On Lens" (de 2001 e ainda assinado como Smog), os discos que Callahan fazia eram sonicamente sufocantes, as canções fugiam à estrutura habitual, eram de um minimalismo áspero e doloroso, a voz ou falava ou gania (mas não se pode dizer que cantava), as letras (mínimas e secas) eram tratados da disfunção humana. E não havia um único dado sobre a vida pessoal de Callahan, excepto, quando muito, o nome da fanzine em que escreveu, ou da cidade em que vivia. E, em cada entrevista, Callahan respondia às questões (por norma também não muito interessantes) com comentários bruscos e curtos, muito curtos.

Depois, lentamente, a luz começou a entrar naqueles discos, cada vez mais despidos de tudo o que não fosse beleza. Por alturas de "A River Ain''t Too Much To Love" (2005) as fotografias de promoção vinham assinadas pela música Joanna Newsom, que também tocava no disco e andou na respectiva digressão. (Newsom também foi vista várias vezes com um cinto em cuja fivela estava incrustada a palavra "BILL"). Era a forma de Callahan assumir um romance que durava desde 2003. Para o comum dos mortais, é uma forma seca e enviesada de assumir uma relação. Mas na biografia de Callahan é um exagero de exposição sem fim.

Callahan editou então o seu primeiro disco em nome próprio, "Woke On a Whaleheart" (2007), em que chegava a arriscar uma espécie de funk branco. Depois lentamente regressou o silêncio. Newsom, algures em 2007, foi embora. E na primeira canção de "Sometimes I Wish We Were An Eagle", Callahan canta "I used to be darker, then I got lighter, then I got dark again", como se quisesse gozar com os profetas da autobiografia. Detalhe: Callahan passou quase vinte anos de carreira a ser acusado de misoginia, misantropia e autobiografismo encapuçado, acusação esteticamente irrelevante, mas que sempre entreteve muito as gentes muito sérias e preocupadas com o bem do mundo.

Há dados que indicam que Callahan está mais manso: a música em "Sometimes I Wish We Were An Eagle" é calma e, ao contrário dos seus primeiros discos enquanto Smog, pouco ruidosa. É estranhamente solar, melodicamente irrepreensível e ornamentada com uma graça tal que parece de outro tempo.

A hipótese de estar mais suave (mas melhor que nunca) parece confirmar- se nas entrevistas recentes, em que surge mais acessível. Com o Ípsilon admite que chora em filmes, que o amor lhe é importante, que a morte deve ser um alívio, que quer ter filhos, que quando era novo estava a mostrar as garras, que nunca gostou de professores. Mas, sendo quem é, só aceita entrevistas por e-mail. Diz que por escrito é mais preciso e não é mal citado.

E, sendo quem é, as perguntas a que não respondeu são, obviamente, as que implicavam maior grau de exposição. Mas tudo isto, que a maior parte das gentes consideraria bastante estranho num meio em que toda a gente se põe em bicos de pés e aos saltinhos, faz sentido num homem que, por mais declarações infames que produzisse nas canções, sempre foi racional até ao osso. A seu favor diga-se que ele é de uma precisão tremenda a escrever. A seu favor diga-se que "Sometimes I Wish We Were An Eagle" é uma obra-prima. A seu favor diga-se que não são muitos os que melhoram com a idade.

Neil Michael Hagerty e Brian Beattie, produtores, respectivamente, do seu penúltimo e último disco, põem o dedo em cada uma das canções desses álbuns e o Bill deu-lhes rédea livre. Que se passou para de repente abdicar do controlo absoluto das canções?

Bem, eu não diria que eles tiveram controlo absoluto. Em ambos os discos fiz os arranjos de voz, guitarra, baixo e bateria. Isso são coisas bastante importantes, primordiais. Mas sim. Sim. Gosto da mudança. Gosto de fazer coisas que nunca fiz. Esse foi o ímpeto por trás da decisão de trazer produtores e arranjadores para o processo. Porquê agora? Ao longo dos anos tenho melhorado lentamente as minhas proezas musicais. Com "A River Ain''t Too Much To Love" senti que os meus arranjos tinham atingido a perfeição. Ou, quer dizer, estavam quase perfeitos. Por isso senti que tinha de facto alcançado qualquer coisa e que estava na hora de, de vez em quando, entregar as rédeas a outros.

Quis, desde o início do processo, encher "Sometimes I Wish We Were An Eagle" com orquestrações? Como é que as descreveria?

Logo à partida queria orquestrações. Queria que o disco todo tivesse um tom cerebral. Não no sentido de inteligente" mas de "da mente". Como se os sons ilustrassem a história do narrador, como se fossem os sons do seu cérebro.

Conhecia bem Brian Beattie? O que é que o fez confiar neste tipo ao ponto de se ir embora deixando-o com as canções?

No ano passado gravei quatro canções ao vivo com ele, num gravador de duas pistas. Gostei da velocidade e da mente dele, das suas opiniões e do seu sincero entusiasmo pela música. Não foi exactamente como se eu me tivesse ido embora deixando-o com as canções. Deixei-lhe notas com o que queria e à medida que ele trabalhava mantivemos várias reuniões em que ouvíamos e discutíamos as canções. Mas sim, por causa do que antes mencionei, depositei muita confiança nele. Sou bom a avaliar pessoas.

Será que o homem que escreveu "Prince alone in the studio" (de "Wild Love", 1995) confiava tanto nas ideias dos outros como o homem que gravou este disco?

Não, esse homem não confiava tanto nos outros. Mas também ele não sabia o que estava a fazer. O que pode ser bom. Acho que a minha ingenuidade fez com que esse disco tivesse um som único. E esse homem, nesse dis- co, estava a trabalhar sob condições muito mais ADVERSAS [em caixa alta no original]. O engenheiro era malicioso e estava sempre a rebolar os olhos. Não era nada divertido trabalhar com ele. Todos os dias eram uma batalha.

Os seus discos costumavam ser sonicamente sufocantes. Depois de "Rain On Lens" (2001), começou a surgir uma certa luz. O que se passou?

Comecei a tocar guitarra de maneira diferente. Comecei a deixar pequenos buracos onde a minha voz pudesse pousar. Por isso a minha voz passou a estar ao centro em vez de estar no topo, com tudo o resto por baixo dela. É um som mais aberto.

Comparemos as letras de canções antigas como "I break horses" ou "River guard" com as de canções mais recentes como "Sycamore" ou, deste disco, "My friend": antes parecia querer sublinhar a crueldade, o egoísmo e a violência que atravessam as relações humanas, e agora existe uma espécie de "warmth for the community" (citação de uma canção antiga de Callahan).

As canções antigas eram mais cruas, mais imediatas. Eu estava a pintar com aguarelas. Queria imediatez. Queria fazer dois discos por ano. Como é que eu posso explicar a minha juventude? Há muito a dizer. Estava a aprender. Estava a fazer. Era importante para mim estar a fazer, por oposição a não fazer. Vai-se para a escola e os professores falam-nos de coisas. Nunca funcionou comigo. Nunca acreditei nos professores ou concordei com eles. Não falavam do coração, apenas regurgitavam o currículo. Diziam- nos o que não podíamos fazer. E eu só queria "fazer" e descobrir por mim próprio.

A sua relação com a natureza mudou? A natureza costumava aparecer nas canções como um figurante numa cena violenta ou depressiva. Agora parece usá-la para simbolizar a nossa incapacidade de termos verdadeiro controlo sobre as nossas vidas, ou para simbolizar algo que não conseguimos alcançar.

Já não estou assim tão interessado na ideia de que há coisas que não conseguimos alcançar. Se não conseguimos alcançar uma coisa, então ela não existe. Basicamente, comecei a reavaliar tudo o que sabia, ou tudo o que pensava que sabia. Um tipo, quando é novo, cria por si próprio umas definições, uma base sobre a qual construir uma vida. Mas ultimamente as coisas levaram um valente abanão. Pelo que cheguei à conclusão de que talvez não tivesse feito um trabalho assim tão bom a definir algumas coisas. Isto veio de ler livros de biologia e afins. Tive de reconstruir tudo o que eu pensava que sabia. E é mais ou menos esse o assunto deste disco.

Costumam dizer-me que o Bill é um tipo que conhece as mulheres. Mas por alguma razão, liricamente, nem por uma vez abordou o assunto "fêmeas" com a leveza de um "És tão gira". Porquê?

O amor é-me verdadeiramente importante. Mas por vezes também penso que não me é de todo importante. Tenho os dois lados. Como no signo gémeos. Mas sei uma coisa sobre mulheres. Sei que não raras vezes me surpreendem. Tal como os homens. É o mesmo que eu dizia há pouco: pensava que sabia umas coisas, mas isso está a mudar.

Por mais do que uma vez as suas letras valeram-lhe acusações de misantropia. Assumamos que o que o narrador daquelas canções cantava não era o mesmo que o que o Bill pensava. Quão grande era a distância entre si e os narradores das canções?

Escrevo sobre a vida e a humanidade, não sobre a minha vida e a minha humanidade. Nunca percebi por que razão é que as pessoas colocam tanta ênfase na questão de as canções serem ou não autobiográficas. Ser autobiográfica torna a canção melhor ou pior? Será que isso muda, de todo, a canção? Não me parece. Por ser autobiográfica? Porque é que a forma como se vê a história de uma canção é diferente da forma como se vê um livro de ficção?

Deus aparecia em "Supper": "God is a word/ and the argument ends there". Agora, na canção "Death/Void", canta "It''s time to put God away". Alguma vez namoricou com algum tipo de religião? Porquê abordar o assunto Deus se é ateu?

Porque, exista ou não um Deus, o conceito de Deus existe de facto. E é isso, o conceito de Deus, que é tempo de pôr de lado. Já espiolhei todos os tipos de religião. O judaísmo tem boas histórias. Mas não consigo entregar a minha vida a nenhum tipo de texto. Excepto talvez o "Farmer''s Almanac" [publicação americana antiquíssima, cheia de informações que podem ir do estado do tempo a trivialidades].

Quando escreveu "I used to be darker, then I got lighter, then I got dark again" para a canção de abertura deste disco, sabia que as pessoas iam tomá-la como autobiográfica, certo?

Sim. É uma espécie de cereja no topo do bolo para todos aqueles que gostam de rotular as pessoas com esse simplismo. É degradante rotular as pessoas assim.

Nessa canção canta "I ended up in search of ordinary things". Aquele "ordinary" refere-se às "pequenas coisas da vida" ou a quê?

É acerca do fascínio com as coisas que vemos todos os dias. O vento a soprar numa árvore ou a vida de uma onda do mar. É perguntar porque havemos de nos preocupar com o sobrenatural quando o natural é espantoso.

Em "My friend" canta a frasetítulo de uma forma rara em si, como um grunhido, como se fosse a personagem de um filme de série B. Era uma forma de enfatizar a importância que a amizade tem para si?

Era suposto soar a coisa de vilão de filme noir. Como se fosse alguém a agarrar outro tipo pela lapela e a encostá- lo à parede. Mas com afecto. Também é suposto soar à forma como as pessoas falam com os seus animais domésticos. Há muita gente que faz leituras sinistras da forma como canto essa expressão. Mas não é suposto ser sinistro. É uma canção muito afectuosa. Originalmente foi escrita a pensar numa pessoa especifica, mas esse facto já não me parece importar minimamente.

Nos últimos anos mencionou Lil'' Wayne, Lady Sovereigne e The-Dream como alguns dos seus artistas actuais favoritos - e disse uma vez que os Wu-Tang Clan estavam no seu topo de todos os tempos.. O que é que lhe agrada tanto no hip-hop? O minimalismo? As letras?

Gosto do lado imediato da coisa. Por exemplo, a forma como o Lil'' Wayne faz tantas mixtapes, tantas canções tão depressa. Há uma energia tremenda nas coisas dele e do The-Dream. Uma excitação, um sentido de aventura, de individualidade, uma ausência de medo que faltam em muito do rock que se faz hoje em dia.

É mesmo verdade que adora a Dolly Parton? É mesmo verdade que chorou a ver "Knocked Up"? E mais importante que tudo: prefere Kobe Bryant ou Lebron James [respectivamente melhor e segundo melhor jogadores de básquete do mundo; Callahan é um fã de desporto]?

A Dolly está mesmo nos meus dez mais. E sim, chorei a ver "Knocked Up", mas só da segunda vez que o vi. E eu choro em quase todos os filmes. Prefiro o Lebron. O Kobe parece-me um pouco "fácil" depois do caso dele [há uns anos Kobe Bryant foi acusado de violação. O caso acabou fora de tribunal depois de se descobrir que a acusadora tinha um passado de distúrbios psíquicos. Kobe fez as pazes com a mulher graças à oferta de um anel de diamantes cujo valor - especulou-se - rondava o milhão de dólares].

Recentemente li duas coisas que me deixaram a pensar que estava a gozar com o entrevistador. Primeira: que já não tinha medo da morte. Segunda: que andava com vontade de ter um filho.

Não estava a gozar. Não gosto de gozos. Gosto da verdade. Perdi mesmo o medo da morte, recentemente. É estranho. No entanto, desde que eu disse isso, a coisa de certo modo modificou- se um pouco. A minha vida mudou um pouco e o medo da morte está a tentar voltar a infiltrar-se. Mas, para ser honesto, de certo modo a morte deve ser um tremendo alívio, não? E sim, se acontecesse, não me importava de ter um ou dois filhos.

Ao longo dos anos nunca falou da sua vida pessoal, o que parece sensato. Há alguma razão para isso (alguma ética) ou é medo de que o que diga acabe por voltarse contra si?

Sempre senti que isso poderia diminuir a música ou a minha relação com a audiência. Sempre me pareceu uma saída fácil. Nem sequer gosto que as bandas digam em palco "Hoje jantámos no restaurante Tal & Coisa e estava óptimo". Prefiro encontrar- me "cara a cara" com o ouvinte. Sem as luvas de boxe, se me faço entender. Sem conversa de chacha. Muita gente não gosta disso, mas acho que só lhes fazia bem.

O que é que pensa hoje do homem que era quando escreveu "Wild Love" ou "Julius Ceaser"? O que é que esse tipo não sabia que o Bill agora sabe?

Ah, acho que as pessoas vagueiam por diferentes vidas. Nessa altura eu era uma pessoa diferente, mesmo. Penso que esses discos eram ambos bons e crus. Estava apenas a rugir como um tigre, estava a mostrar as minhas garras.

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