Vinho - Histórias do vinho

As obras faraónicas da Real Companhia Velha

Muito antes de morrer, Manuel Silva Reis, o patriarca da família que detém a Real Companhia Velha, delimitou a imponente Quinta dos Aciprestes, na margem esquerda do Douro, mesmo em frente ao Tua, com enormes bolas de ferro prateadas. A ideia era poder ver bem os limites da propriedade a partir do céu. As bolas, que ainda lá estão, espelhavam bem o espírito determinado e algo megalómano do empresário. Manuel Silva Reis foi um verdadeiro fazedor de quintas. Não havia obstáculo físico que o demovesse quando se tratava de instalar mais uma vinha. A ferro e fogo, demorasse o tempo que demorasse, triturava pedra atrás de pedra, desfazia montes, arrasava cumes, se fosse preciso. Fez assim na Quinta das Carvalhas, onde rebaixou um cume para instalar lá uma vinha ao alto, hoje um belo tapete de videiras, embora na encosta contrária tenha lá deixado uma colossal escombreira. Fez o mesmo na Quinta dos Aciprestes, onde, ao fim de vários anos a criar terra e a domar a orografia, criou uma das mais belas propriedades do Douro.
Só a família Silva Reis saberá quanto custou tamanha odisseia. Mas essa revolução fundiária permitiu à empresa iniciar um novo ciclo e lançar novos vinhos com uma relação qualidade/preço quase imbatível.
Só mesmo a Real Companhia Velha, com a sua raiz majestática, se podia dar ao luxo de arrasar cumes, o maior crime ambiental que se pode fazer numa geografia de montanha. Com a subida ao poder, após a morte do patriarca, os filhos do empresário puseram-se a fazer contas e perceberam rapidamente que o arrojo do pai tinha custos incomportáveis.
Para sobreviverem à pesada herança, desinvestiram no Vinho do Porto e apostaram tudo nos vinhos de mesa, aproveitando da melhor maneira o imenso património fundiário herdado. Com os negócios novamente em alta, começaram a ajardinar as quintas, a reestruturar as piores, a plantar novas vinhas. E acabaram a imitar o pai.
Basta passar pelo Tua para perceber que o gosto pelas obras colossais, a par da paixão pela jardinagem, não desapareceu da família Silva Reis. Enquanto na Quinta das Carvalhas está a ser feito um notável trabalho de filigrana fundiária, com a recuperação de socalcos e uma aposta séria nas melhores práticas ambientais, na Quinta dos Aciprestes várias máquinas andam há meses a "derreter" a única colina que não havia sido domada.
É um trabalho descomunal, caríssimo, que só mesmo a família Silva Reis faria. Para harmonizarem toda a propriedade, rasgaram a colina em várias trincheiras e toda a pedra arrancada está a ser depositada no fundo do vale, que vai assim enchendo até poder ser também coberto de vinha.
Não se percebe como, tratando-se de uma região classificada como Património Mundial, é possível intervir desta forma na paisagem. Mesmo o argumento de que já lá existia vinha não devia ser suficiente. Mas, quando, daqui a alguns anos, o que hoje é uma bacia acidentada estiver aplanada e coberta de videiras, já ninguém se lembrará do que era antes. E o mais provável é reagir com espanto e deslumbramento ao novo tapete verde da Real Companhia Velha. As casas dos Aciprestes poderão continuar decrépitas, mas a vinha, essa, deverá estar um assombro, com o viço acentuado pelo brilho das gigantes das bolas prateadas plantadas pelo fundador. Há famílias que nunca mudam.

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