Liberdade de expressão ou incitamento à violência?

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem atribui à liberdade de expressão um valor estruturante das democracias

"Arranjem lá um grupo e corram-nos à pedrada. A sério, nós queremos gente que nos ajude e não que obstaculize o desenvolvimento. Estou a medir muito bem o que estou a dizer."Estas as palavras proferidas na Assembleia Municipal de Viseu em 26 de Junho de 2006, que determinaram a condenação do presidente da Câmara e presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 20 euros.
Segundo a comunicação social, "no mesmo dia, perante a intervenção de um deputado do PS, que disse a Fernando Ruas ser 'grave' o que estava a afirmar, este justificou que falava em 'sentido figurado', como se pôde ouvir na gravação áudio daquela reunião levada a tribunal".
O crime praticado por Fernando Ruas, no entender do tribunal de 1.ª instância, foi o de instigação pública a um crime, previsto no Código Penal nos seguintes termos: "Quem, em reunião pública, através de meio de comunicação social, por divulgação de escrito ou outro meio de reprodução técnica, provocar ou incitar à prática de um crime determinado é punido com pena de prisão até 3 anos". Em causa estava a actuação dos guardas florestais ao imporem coimas aos autarcas.
Dado que o processo terá, naturalmente, recurso, não devo (como advogado) contribuir para a sua discussão pública, mas este caso permite reflectir, uma vez mais, sobre os limites da liberdade de expressão.
Nos EUA, a questão dos limites da liberdade de expressão quando está em causa a instigação à prática de um crime, encontra-se basicamente decidida de forma estrutural na decisão do caso Brandenburg v. Ohio proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 1969.
Clarence Bradenburg era um líder do Ku Klux Klan que num comício tinha afirmado que "os negros deviam ser devolvidos a África, os judeus devolvidos a Israel" e também que "nós não somos uma organização vingativa, mas se o nosso Presidente, o nosso Congresso, o nosso Supremo Tribunal continuarem a suprimir os brancos, caucasianos, é possível que tenha de se tirar alguma vingança". Condenado no estado do Ohio, por ter incitado a conflitos raciais, Bradenburg recorreu ao Supremo Tribunal alegando ter sido violado o seu direito à liberdade de expressão.
O Supremo deu-lhe razão, passando a estabelecer um novo teste/requisito para se determinar se a restrição à liberdade de expressão é justificada: expressões como as proferidas por Brandenburg só poderiam ser criminalizadas se fossem dirigidas "a incitar ou a produzir actuações ilegais iminentes ou se fosse provável que incitassem ou produzissem tais actuações". O que não ficara provado.
Como refere Richard A. Parker na obra Free speech on trial: "Nos anos 60, quando o sentimento antiguerra e antigoverno era um lugar-comum, os juízes do Supremo perceberam que era essencial estabelecer um critério para distinguir entre os casos claramente de incitamento que deviam ser perseguidos criminalmente das controvérsias que envolviam 'expressão protegida', isto é, casos de liberdade de expressão. Um princípio, de alguma forma, aceite pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), na sua aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ao atribuir um valor estruturante à liberdade de expressão nas sociedades democráticas, para além do seu valor pessoal, como garantia e forma de desenvolvimento da personalidade de cada um.
Muito recentemente, o TEDH proferiu um importante acórdão na busca da definição do que é a liberdade de expressão e quais os seus limites.
M. Jean Claude Fernand Willem, um autarca francês, afirmou publicamente, numa assembleia municipal, ter dado ordens aos serviços autárquicos para boicotar os produtos israelitas, especialmente os sumos de frutas, como protesto contra uma politica "antidemocrática" acrescentando que "o povo israelita não está em causa, é um homem, Sharon, que é culpado de atrocidades, que não respeita nenhuma decisão da ONU e continua a massacrar".
Mais tarde, explicando o que afirmara, Willem esclareceu que a decisão da comuna de Seclin de boicote aos produtos israelitas era a tradução directa da sua recusa de ajudar economicamente o poder militar de Sharon nas suas práticas de repressão, de invasão e de ocupação militares".
O Ministério Público acusou Willem de "provocação à discriminação nacional, racial, religiosa por palavra, escrito ou de meio de comunicação audiovisual". O tribunal de 1.ª instância absolveu Willems considerando que estava no uso da liberdade de expressão considerando que o boicote era dirigido a produtos comerciais e não a pessoas, rejeitando a acusação. Mas o Ministério Público recorreu. E o tribunal de recurso, considerou que Willems era culpado de um crime de discriminação em função da nacionalidade, ao "entravar o exercício normal de uma actividade económica" quando decretara o boicote. E condenou-o a pagar uma multa de mil euros. Willems recorreu para a Cour de Cassation mas não foi feliz: a vara criminal lembrou que a condenação estava justificada tendo em conta que a "publicação da decisão do boicote num site acompanhada de um comentário militante, era de natureza a provocar comportamentos discriminatórios".
Willems recorreu para o TEDH alegando que havia sido violada a sua liberdade de expressão, mas também não teve êxito: o TEDH considerou que o boicote já não "era" liberdade de expressão, mas sim agir contra a lei, e absolveu a França. A distinção entre "expressão" e "acção", por vezes, não é fácil de fazer... Advogado (ftmota@netcabo.pt)

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