O que é que Chico tem?

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Enquanto a academia o distingue como voz autónoma, a crítica literária divide-se

Alguns escritores "têm preconceito contra o facto de artistas de outra área se envolverem, com maior ou menor comprometimento, na seara da literatura", conta-nos o escritor e argumentista Marçal Aquino. Ele não pensa assim. Acha que a boa literatura tem muito a ganhar quando "um artista da estirpe do Chico Buarque" resolve dedicar-se aos livros. Chico, que começou a sua carreira como músico e compositor, escreveu em 1974 a novela "Fazenda Modelo" e mais tarde os romances "Estorvo" (1991), "Benjamim" (1995), "Budapeste" (2003) e "Leite Derramado" (2009) - que, editado pela Dom Quixote em Portugal [ver crítica no Ípsilon de 12 de Junho de 2009], está nos "tops" e vai já na terceira edição, com a quarta a caminho, e mais de 10 mil exemplares vendidos. "Imagine: um poeta com a estatura dele só pode fazer bem à literatura, seja fazendo prosa ou poesia. Isso não importa. E é o que vejo nos livros do Chico. Um trabalho cuidadoso de linguagem, mais 'insights' poéticos estupendos e uma enorme consciência do fazer literário. Nesse sentido, 'Budapeste', romance sobre a escrita, é um livro formidável", continua o autor do romance "Cabeça a Prémio".

Quando "Leite Derramado" saiu no Brasil, o poeta Augusto Massi, professor de Literatura na Universidade de São Paulo (USP), escreveu no jornal "O Estado de S. Paulo" que desde a publicação de "Estorvo" Chico "vem alterando o campo de forças da nossa tradição literária". Segundo ele, um dos factores que "diferenciam fortemente a prosa de Chico Buarque dos escritores actuais é que, assim como Machado de Assis, seu olhar se esforça para descrever com precisão os comportamentos da classe dominante. Nesse ponto, ele diferencia-se até da sua condição de compositor que sempre bebeu na longa tradição da malandragem da MPB [Música Popular Brasileira]".

Samuel Titan Jr., professor de Teoria Literária na Universidade de São Paulo, moderou a mesa em que Chico Buarque e Milton Hatoum participaram na Festa Literária Internacional de Paraty. Crê que a ficção de "Budapeste" e "Leite Derramado" se destaca no cenário actual da literatura brasileira "por sua força e por sua felicidade verbais", disse ao Ípsilon. "Sem ter nada de superficialmente musical, o fraseado de Chico Buarque tem o mesmo acabamento rítmico de suas melhores canções; sem cair na oralidade fácil, sua prosa recolhe as sugestões mais poéticas e as camadas mais crassas do registo coloquial brasileiro e as transfigura segundo as necessidades da invenção romanesca". Considera ainda que, "sem o menor traço de exibicionismo letrado", os romances de Chico "revisitam e actualizam o melhor da produção literária e ensaística brasileira, do Machado de Assis de 'Dom Casmurro' aos romancistas da década de 1930, da prosa modernista ao ensaísmo da geração de seu pai, Sérgio Buarque de Holanda".

"Muito disso deve ter a ver com a história familiar do autor, criado no seio de uma tradição intelectual à qual acaba de acrescentar um capítulo interessantíssimo. Outro tanto deve ter a ver com a sua outra carreira, de compositor - sobre a qual agora podemos lançar um olhar retrospectivo instruído pelos romances. Seria tolo afirmar que as canções prepararam os romances: de um lado, porque as coisas não procedem de modo linear assim; de outro, porque dizer algo do género seria aderir a uma hierarquia de géneros que o autor rejeita. Mas se é verdade que aquelas contribuíram para aqueles, não será também interessante, finda a leitura de 'Budapeste' e 'Leite Derramado', ler também o conjunto de suas canções como um grande corpo ficcional?", pergunta Titan Jr.

"É difícil classificar Chico Buarque porque é complicado dissociar o músico e o letrista do escritor. A música é sempre uma sombra para ele", explica Ubiratan Brasil, jornalista de "O Estado de S. Paulo". "Na sua poesia, na música, ele tem uma paixão, uma coisa muito calorenta. Já a sua obra literária tem uma narrativa pouco colorida - com um ritmo mais escasso -, mais áspera, mais dura. E ele tenta muitos experimentalismos nessa escrita."

No Brasil, diz Ubiratan, ainda não se acredita que ele é tão bom romancista como letrista. Embora ele tenha evoluído. "Chico sempre parte de boas ideias, consegue criar umas tramas muito interessantes. Mas às vezes tenta se superar nessa escrita e nem sempre consegue. Melhorou bastante no 'Leite Derramado'. Mas aí vejo muito a influência da obra do pai."

Crítica não unânime

A crítica a "Leite Derramado" não foi unânime no Brasil. Houve quem escrevesse bem e quem destruísse o livro com violência. Chico é uma figura emblemática, símbolo sexual, um herói mítico. "Ele sofre uma avaliação, uma crítica muito mais pesada do que qualquer outro escritor. E como não produz livros com tanta constância, sempre tem um prazo de anos, entre um e o outro, quando chega um novo livro há toda aquela expectativa", diz o jornalista.

É um autor que já se inscreveu na literatura brasileira mas como conta ao Ípsilon Manya Millen, editora do suplemento "Prosa & Verso" de "O Globo", há ainda um certo preconceito de alguns sectores de escritores, porque, "na verdade, ele é um músico".

"Você pensa em Chico Buarque e pensa no compositor que faz parte da memória afectiva de várias gerações. E quando ele resolve se intrometer na seara alheia, em outro departamento que é a literatura, as pessoas ficam com o pé atrás. Mas desde 'Estorvo' que Chico Buarque teve reconhecimento. Não é um compositor que escreve livros. É um autor." Tal como Ubiratan Brasil, Manya Millen também acha "que ele vem melhorando". "Não podemos ignorar mais Chico Buarque no meio literário, ele já veio para ficar há muito tempo."

"Não se tem que gostar 'a priori' porque é Chico Buarque, mas também não se tem que detestar 'a priori' porque é Chico Buarque. A cada livro, ele prova que escreve, escreve bem, tem um domínio da linguagem muito bom. Pode não ser uma obra-prima. Pode ser que o próximo romance dele seja muito melhor que todos, pode. Pode ser muito pior, pode. Mas ele escreve. É isso, Chico Buarque escreve."

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