José de Guimarães mestiço

Foto
À primeira vista, muitas das peças não diferem por aí além das máscaras e das estatuetas que pululam pelas feiras de artesanato africano Enric Vives-Rubio/PÚBLICO

O que têm os trabalhos ultra-coloridos de José de Guimarães a ver com a monotonia cromática da arte tribal africana? Aparentemente nada. Mas o artista garante que as peças que colecciona há quatro décadas marcaram e continuam a influenciar todo o seu trabalho. A partir de amanhã (a inauguração é hoje às 22h) e até ao final de Setembro uma das maiores colecções privadas de arte tribal africana de Portugal será exposta no Pátio da Galé, no Terreiro do Paço. É a primeira vez que José de Guimarães mostra no país parte deste espólio, que já foi visto em Espanha e no Brasil e que no ano que vem deverá seguir para Roma.

À primeira vista, muitas das peças não diferem por aí além das máscaras e das estatuetas que pululam pelas feiras de artesanato africano. O valor acrescido provém, para José de Guimarães, da sua autenticidade: não se trata de reproduções de peças usadas em rituais mágicos de tribos já extintas ou em extinção, mas dos objectos originais utilizados nessas funções. Por isso, o artista olha com orgulho para as manchas que alguns deles ainda conservam, vestígios de sangue de animais sacrificados. O interior dos relicários que vão estar no Terreiro do Paço não se encontra vazio: lá dentro há ossos, pequenas pedras e outros objectos usados em feitiçaria. Mas afinal isto é mesmo arte?

É, garante José de Guimarães, sem no entanto negar o "valor etnográfico" que o fez adquirir muitas destas peças. E acrescenta que não é à toa que o Museu do Louvre dedica seis salas à arte africana.

No Pátio da Galé saltam à vista as figuras humanas revestidas a missangas, esculturas de grandes dimensões fabricadas por uma etnia com fama de gente avarenta nos Camarões, os bamileké. E também os imponentes pássaros da Costa do Marfim, um deles com mais de cem quilos. Mas se o proprietário da colecção tivesse de eleger uma entre todas escolheria algo bem mais discreto: um pequeno e tosco cavaleiro fabricado pelos dogon do Mali - uma etnia que há quem defenda descender dos antigos egípcios -, o tronco do homem montado inclinado para trás, suspenso no ar, numa posição improvável. Pela sua raridade destaca ainda um relicário do Gabão, uma figura humana de ventre descomunal adornada com pequenos crânios de macaco. Isto tem valor estético? Sem dúvida, confirma o comissário da exposição, o antropólogo Rui Pereira, que estabelece paralelismos com a arte sacra europeia.

Desde os anos 90 que José de Guimarães constrói os seus próprios relicários, caixas com objectos do quotidiano dentro - espinhas de peixe, escovas, néons. Também vão poder ser vistos nesta exposição - que intitulou África, Diálogo Mestiço -, juntamente com vários outros trabalhos seus, incluindo um inédito da série Favela, composta por instalações em caixotes. A mostra incluirá ainda trabalhos seus dos anos 70, altura em que inventou um alfabeto baseado na arte daquele continente, para criar "uma espécie de osmose" entre a cultura ocidental e a africana.

Fascínio de Picasso

Mas como é que as rudes peças tribais de madeira e de terracota podem ter inspirado uma arte tão urbana e dominada pela exuberância cromática? No catálogo da exposição, a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva dá-nos algumas pistas: "Entre o mítico passado da África pré-colonial, as culturas modernistas da Europa de 1900 e o frenesim criativo das periferias contemporâneas há elos substantivos de partilha e pertença que o artista continua a indagar e provocar." Trata-se de uma relação em primeiro lugar conceptual: "É evidente que são os dispositivos do primitivismo que sobretudo lhe interessam", observa Raquel Henriques da Silva. Ou seja, "as artes integradas na comunidade, participando nela, garantindo a fecundidade, a saúde, o esconjuro da morte (...), a evocação perturbada dos deuses, a fraternidade cúmplice com os animais". Para a historiadora de arte, o trabalho de José de Guimarães recria a gestualidade sagrada e a carga mítica das culturas africanas, numa reactualização do olhar dos modernistas do início do século passado, os primeiros a interessar-se por este tipo de produção artística. Picasso esteve entre os que se deslumbraram com estes objectos exóticos, embora nem sempre tenha reconhecido a sua influência no seu trabalho.

Não foram fáceis os primeiros tempos no continente negro deste oficial do Exército de origem minhota a quem o serviço militar em Angola, no final dos anos 60, ajudou a mudar o destino. "Ao confrontar-me com aquele novo continente, o choque cultural não podia ter sido maior", descreve, a propósito dos primeiros dois anos ali passados. "Foi angustiante. Senti-me alheio e incapaz de entender o que quer que fosse." O fascínio pela cultura africana só surgiu depois. Em Cabinda comprou os primeiros objectos desta colecção, uns cavalinhos de madeira sem cabeça. "Há 40 anos ninguém ligava a isto, era baratíssimo." Hoje o seguro da exposição, que inclui 360 das mais de mil peças do acervo e várias obras da sua autoria, tem um valor de cinco milhões de euros.

Berardo também colecciona

A maior parte do seu espólio não veio, no entanto, directamente de África, mas das mãos de outros coleccionadores. "Muitas destas peças estavam condenadas ao desaparecimento", nota. Se tudo correr como está previsto, esse risco desapareceu: deverão ir todas em 2012 para o futuro centro de arte contemporânea de Guimarães, que será a capital europeia da cultura, juntamente com a arte asiática e da América Latina que também possui. O pintor e escultor conta como aconteceu: José Sócrates viu parte da colecção em São Paulo e perguntou-lhe que destino lhe iria dar; contou-lhe do seu sonho de a deixar na sua terra natal e um dia foi surpreendido com o anúncio oficial da construção do centro cultural. Há um mês teve outra surpresa: ia a sair do atelier, na zona do Castelo de S. Jorge, quando deu de caras com Joe Berardo, outro coleccionador de arte africana, que não resistiu à curiosidade de ir admirar as suas peças. A colecção do comendador também vai estar no Pátio da Galé, a partir de 22 de Outubro.

A iniciativa destas mostras pertence à Câmara de Lisboa, e não está isenta de críticas, devido aos elevados custos envolvidos. Só a climatização do Pátio da Galé, que pertence ao Estado mas está cedido à autarquia, custou cerca de 200 mil euros, a que há que juntar outro tanto para o transporte e montagem das peças. Mas não havia outro remédio, garante o comissário da mostra, porque se o ar das salas não for humidificado artificialmente as figuras de madeira correm o risco de estalar.

Diálogo Mestiço estará aberta todos os dias entre as 12h e as 20h, excepto às segundas-feiras.

Sugerir correcção
Comentar