Quando Pintasilgo convenceu Marcello a defender as mulheres

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Licença de maternidade de 90 dias, rede de escolas, igualdade de salários. Direitos hoje banais, há quase 40 anos eram propostas radicais. Maria de Lourdes Pintasilgo foi a responsável pela sua introdução em Portugal. Ideias que levou à pratica com a conivência
de Marcello Caetano. Todo o processo vai ficar on-line. Por São José Almeida e António Marujo

a Há perto de 40 anos, quando ninguém em Portugal falava de igualdade e de direitos das mulheres, Maria de Lourdes Pintasilgo chamou a si a missão de pôr o Estado a defender estas questões. Determinada em atingir os objectivos que se propunha, a ex-primeira-ministra era também senhora de uma discreta e elegante capacidade de persuasão na forma de levar os seus interlocutores a colaborar com esses mesmos objectivos. E foi com essa determinação que, ao longo de um processo que durou de 1970 a 1973, conseguiu convencer o então presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, a aceitar e a promover a criação de um organismo de Estado destinado a fiscalizar, a defender e a apoiar a situação das mulheres na sociedade portuguesa.Assim nasceu, em 1973, a Comissão para a Política Social Relativa à Mulher, a antecessora da Comissão de Igualdade Feminina, criada em 1975. As várias etapas do processo da sua constituição podem agora ser conhecidas ao pormenor - o protocolo para a divulgação destes documentos foi assinado, na segunda-feira, entre a actual Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) e a Fundação Cuidar o Futuro. Amanhã completam-se cinco anos sobre a morte de Maria de Lourdes Pintasilgo; e na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, tem lugar a última conferência do ciclo A Dimensão do Cuidar na Resignificação do Espaço Público. Com Maria de Lourdes Pintasilgo
em Fundo.
Documentos on-line
A Fundação Cuidar o Futuro (FCF), criada por Maria de Lourdes Pintasilgo e que gere o seu espólio, irá organizar e colocar on-line toda a documentação relativa ao processo de formação destas comissões que existe no arquivo da CIG - e a que o P2 teve acesso. Numa segunda fase, pretende organizar e sistematizar a documentação que está no Ministério do Trabalho, à época Ministério das Cooperações e da Previdência Social, de que dependiam a Comissão para a Política Social Relativa à Mulher e os grupos de trabalho que a antecederam.
Desde a sua criação, em 2001, a FCF já disponibilizou na Internet cerca de 15 mil documentos do espólio de Pintasilgo. Entre os objectivos do protocolo de cooperação agora assinado, relativo a um período específico, está também o da eventual publicação de trabalhos sobre Maria de Lourdes Pintasilgo e de textos acerca da antiga primeira-ministra.
"Ela tinha uma visão extremamente pioneira e radical do mundo, que ainda hoje surpreende, mas não era impositiva, antes actuava pelo convencimento estratégico e traçava uma estratégia para agir e obter resultados", afirma Regina Tavares da Silva, que trabalhou com Maria de Lourdes Pintasilgo nesta época. Ao perceber que internacionalmente "a agenda feminista estava a ser institucionalizada" em vários países e organismos, Pintasilgo "foi estratégica a convencer Marcello Caetano da necessidade de avançar também", conta. Primeiro, "com um pequeno grupo de trabalho com mandato restrito, depois um grupo mais alargado e, finalmente, a Comissão para a Política Social Relativa à Mulher".
A capacidade de persuasão de Lourdes Pintasilgo está patente, por exemplo, na carta que escreve a Marcello Caetano no Natal de 1970, desejando-lhe Boas Festas. Nela fazia pressão para que fosse adoptada também em Portugal uma agenda feminista, sob a direcção do próprio presidente do Conselho. Procurando concretizar conteúdos de uma audiência de dias antes com Marcello Caetano, Pintasilgo frisa que só aceita tomar a tarefa em mãos se Marcello estiver empenhado.
Carta a Marcello
"Embora considere que a comissão relativa ao estatuto da mulher pode ser um elemento de interesse no processo de evolução do país, só me considero vinculada a esta tarefa na medida em que ela me apareceu, quando me foi proposta, como decorrendo de uma iniciativa que era do conhecimento de V. Ex.ª", escreve. E insiste: "Tendo aceitado a tarefa na base desse pressuposto e sabendo que o Senhor Presidente do Conselho é que pode ser juiz do lugar neste momento, sinto-me responsável pelo trabalho empreendido unicamente até ao termo da definição de objectivos e do modo de funcionamento."
Foi esta capacidade de persuasão estratégica que, no entender de Regina Tavares da Silva, fez com que Maria de Lourdes Pintasilgo conseguisse levar a tarefa a bom porto. Presidiu ela mesma a todos os grupos de trabalho constituídos na fase de preparação, à própria Comissão para a Política Social Relativa à Mulher e à Comissão da Condição Feminina que, aliás, seria definitivamente criada sob a sua tutela como ministra dos Assuntos Sociais, em 1975.
Esta carta, uma das que integram o espólio da FCF, irá juntar-se ao material que existe no arquivo da CIG, que diz respeito a esse período inicial. Essa documentação foi elaborada directamente por Pintasilgo ou sob sua tutela. Em grande parte, refere-se à preparação de legislação em assuntos como a equiparação do trabalho de homens e mulheres, regulação de salários ou promoção dos cuidados na maternidade.
A investigadora Paula Borges Santos, da FCF, diz que o arquivo, predominantemente administrativo, revela ainda que Pintasilgo e a Comissão acompanhavam o que se produzia em toda a Europa em questões como o aborto e a saúde reprodutiva da mulher, a contracepção e o planeamento familiar, a violência doméstica e contra menores, o casamento e o divórcio, o assédio sexual ou o estatuto da mulher no direito português.
Também temas como a participação na vida política (com destaque para os sindicatos) ou o direito de família, a diferenciação salarial entre homens e mulheres e os equipamentos sociais estão ali presentes. Isto além dos documentos sobre o Ano Internacional da Mulher, assinalado precisamente em 1975, e dos registos da participação da delegação portuguesa na Cimeira do México, nesse mesmo ano, que foi presidida por Pintasilgo. Ainda que ela tenha acabado por não se conseguir deslocar à Cidade do México e o discurso, baseado em notas suas, tenha sido proferido por Regina Tavares da Silva.
O protocolo esta semana assinado abrange também os processos de preparação de legislação de protecção materno-infantil aprovada após o 25 de Abril: a licença de 90 dias ou a criação de uma rede de escolas estão nesses casos, destaca Regina Tavares da Silva. Embora o seu pensamento sobre os direitos das mulheres não ficasse fechado apenas nesta corrente, Lourdes Pintasilgo era herdeira de concepções feministas que defendiam precisamente o papel da mulher enquanto mãe e educadora, razão pela qual esta devia ser defendida e apoiada pelo Estado, já que a formação de cidadãos era um problema da comunidade - logo, do mesmo Estado.
Constituição feminista
Alguns dos documentos do espólio dizem respeito à participação, já depois do 25 de Abril, da Comissão no processo de elaboração da Constituição de 1976. Entre eles um texto intitulado Para uma óptica revolucionária da condição feminina na Constituição (que foi à época publicado no boletim da comissão e pode ser já consultado no Arquivo Pintasilgo (http://www.arquivopintasilgo.pt/arquivopintasilgo/Documentos/0022.05).
É aí visível a defesa da igualdade entre mulheres e homens no que concerne à garantia de direitos individuais, laborais, familiares, de educação e de saúde. E também uma proposta, não consagrada, de adopção de critérios de igualdade e equilíbrio na representação. Ou seja, aquilo a que hoje se chama paridade, só parcialmente adoptada pela lei eleitoral em Portugal em 2007, com a imposição de quotas mínimas de 33,3 por cento de cada sexo nas listas eleitorais, bem diferente do texto que seria consagrado no artigo 48.º: "As mulheres e os homens têm igualdade de direitos e deveres na construção do socialismo pela participação na vida cívica e política, devendo todos os órgãos de decisão das instituições cívicas, profissionais e políticas representar adequadamente a composição dessas instituições em número de mulheres e homens."
Esse projecto, da autoria de Maria de Lourdes Pintasilgo, tinha ainda um interessante artigo, não-adoptado, que expressava outra grande preocupação desta pensadora: o direito à alimentação e à saúde preventiva e que dá a dimensão de como o seu pensamento era global enquanto concepção. "As mulheres e os homens têm direito inalienável à alimentação e à preservação da saúde, devendo as prioridades do desenvolvimento ser determinadas em função das exigências de nutrição da população em cada zona geo-humana do país e cabendo a toda a população a prestação mútua de cuidados sanitários, como indispensável rede de apoio humano ao serviço nacional de saúde."
O documento foi elaborado depois de reuniões que juntaram Maria de Lourdes Pintasilgo, mais as técnicas da Comissão, Aurora Fonseca e Maria de Jesus Belo, com várias deputadas da Assembleia Constituinte: Maria José Sampaio, do CDS, Amélia Azevedo, do PPD, Alda Nogueira, do PCP, e Etelvina Lopes de Almeida, Maria Emília Moreira da Silva, Maria Helena Oliveira Lopes e Sophia de Mello Breyner, do PS.
Na acta da reunião realizada a 25 de Junho de 1975, vê-se que Maria de Lourdes Pintasilgo aparece com um estudo de direito constitucional comparado feito pela então técnica da Comissão Ana Maria Braga da Cruz. E lembra que, "apesar de quase todas as Constituições do Mundo se referirem, directa ou indirectamente, à igualdade entre o homem e a mulher, essa igualdade nunca foi atingida, como o provam os relatórios da Conferência Internacional do México".
Modelo familiar em causa
Pintasilgo justifica as reuniões com o objectivo de "encontrar a maneira de estabelecer a afirmação de uma efectiva igualdade entre os sexos, em todos os campos, nomeadamente no do trabalho, no sentido de ser estabelecido salário igual para trabalho igual e no campo familiar". É neste último contexto que o modelo familiar da época era posto em causa: o modo como era concebido não passava "de uma estrutura que atrofia[va] a capacidade de tomada de posição das mulheres".
Alda Nogueira lembra que na Conferência de Roma, no âmbito do Ano Internacional da Mulher, se concluíra que "uma das razões fundamentais que impedem a mulher de participar da vida política, cívica e sindical é essencialmente a falta de aparelho social de apoio que lhe permita a libertação".
Sophia de Mello Breyner perguntaria ainda "se não teria interesse acrescentar na Constituição qualquer coisa sobre responsabilidade familiar". Na família, justificava, o homem só entrava com o dinheiro, enquanto a mulher tratava de tudo, desde os estudos "até ao lavar das mãos antes de se ir para a mesa".
A questão da desigualdade social atravessava as várias intervenções registadas em acta. Amélia Azevedo dizia, a dada altura, que a nova Constituição deveria "consagrar uma efectiva igualdade de oportunidades", que exigia uma reforma "económica e social profunda". E Maria Helena Lopes, do PS, acrescentava que, numa situação de desemprego, quem primeiro sofria eram as mulheres.
Socialização dos filhos
Indo para além da visão puramente marxista da opressão social que dominava à época o discurso político, Maria de Lourdes Pintasilgo faz uma defesa do combate contra a opressão da mulher baseada na sexualidade e na reprodução. Nela é visível mais uma vez a radicalidade do seu pensamento político - muito do qual teria consagração internacional no relatório Cuidar o Futuro, da Comissão Independente População e Qualidade de Vida, por ela presidida, publicado em 1998.
"Numa perspectiva marxista, disse, os homens e as mulheres são oprimidos pelos meios de produção", lê-se na acta. "Mas os problemas das mulheres são muito mais vastos, pois além de se encontrar sujeita a esta opressão, é também oprimida pelos meios de reprodução, pelas concepções de sexualidade existentes e ainda pela sua própria imagem".
Daí que Maria de Lourdes Pintasilgo defenda que "a libertação da mulher passa por tudo isto e ainda por uma nova concepção de família que poderá levar, inclusivamente, à socialização dos filhos". Por outras palavras: que a educação dos filhos seja tarefa do Estado.

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